Maioria absoluta: o voto do medo

O título do meu artigo da semana passada era A Surpresa. E de facto verificou-se uma enorme surpresa – só que exatamente ao contrário daquela que eu admitia poder acontecer. Não se verificou uma vitória (que seria surpreendente) de Rui Rio mas sim uma (não menos surpreendente) maioria absoluta de António Costa. E houve outra…

O título do meu artigo da semana passada era A Surpresa. E de facto verificou-se uma enorme surpresa – só que exatamente ao contrário daquela que eu admitia poder acontecer. Não se verificou uma vitória (que seria surpreendente) de Rui Rio mas sim uma (não menos surpreendente) maioria absoluta de António Costa.

E houve outra surpresa, essa sim no sentido que eu tinha antecipado: os partidos à direita do PSD conseguiram muito mais votos do que os situados à esquerda do PS, alcançando mais do dobro dos deputados.

É a primeira vez que isto acontece depois do 25 de Abril: a direita assumida ter mais votos do que a esquerda comunista.

E por isso é um momento importante.

 

Resultados foram bons

Numa primeira leitura, acho que os resultados eleitorais foram bons. 

Toda a vida defendi a estabilidade política.

Sem estabilidade não se constrói nada.

Isso vê-se em todo o lado: nas empresas, nas coletividades, nos clubes de futebol.

A mudança permanente conduz ao caos.

Ora, a partir de agora há condições para haver estabilidade política e desaparecem os problemas de governabilidade.

O PS deixa de estar refém da extrema-esquerda e não tem desculpas para não fazer reformas.

Claro que todos sabemos que não gosta de as fazer.

O PS é o ‘partido do sistema’ – e por isso o seu objetivo é manter as coisas como estão. 

Alimentando-se do sistema, não tem qualquer vontade de o mudar.

Mas até para que tudo continue na mesma é preciso que alguma coisa mude.

Oxalá o PS tenha essa lucidez – pois tem condições políticas para isso.

Já não depende de ninguém.

Quanto ao facto de a direita assumida ser maior do que a extrema-esquerda, pode ter consequências relevantes. 

Toda a tralha ideológica que o BE potenciou – a ideologia de género, a instrumentalização do racismo, o feminismo radical, a propaganda ostensiva LGBT, etc. – perde força com o trambolhão do Bloco e com a enorme subida do Chega. 

Por outro lado, o ódio às empresas, a diabolização do lucro, a aposta na igualdade em vez da valorização do mérito, atenuam-se com a queda do BE e do PCP e a subida da IL. Um destes dias, Mariana Mortágua elogiava as empresas que não têm lucros, como se fosse essa a situação ideal. «Há empresas que vivem para pagar os salários aos trabalhadores», explicava. Mas como é possível alguém pensar que uma sociedade assim pode funcionar e crescer? É de pasmar!

 

A campanha não serviu para nada

Olhando um pouco para trás, António Costa fez uma péssima campanha eleitoral. Não me lembro de uma campanha tão trapalhona de um candidato a primeiro-ministro. Mudou de discurso a meio, deu o dito por não dito, não foi acutilante nos debates, não foi galvanizador nos discursos, perdeu o duelo com o seu principal opositor. 

Como se explica então a maioria absoluta? 

É que a campanha eleitoral não serviu para quase nada. O voto dos portugueses seria basicamente o mesmo caso a campanha não tivesse acontecido. 

A ideia que nós tínhamos acerca do posicionamento dos partidos antes de a pré-campanha começar (debates incluídos) era a que veio a verificar-se nas urnas. 

O voto das pessoas pode ter evoluído durante a campanha, mercê das suas incidências, mas acabou por ser quase o mesmo que seria um mês antes.

Com uma pequena diferença, de que falarei a seguir. 

 

Sondagens falharam e foram enganosas

As sondagens voltaram a errar estrondosamente.

Tornou-se óbvio que as sondagens são boas à boca das urnas, para as TVs poderem dizer às 20h00 quem vai ganhar e como se posicionam os partidos, mas antes das eleições, como indicador de voto, não servem para nada. 

Pelo contrário: dão indicações erradas sobre o que poderá passar-se. 

E tiveram alguma influência na votação, pois a ideia de um empate técnico estimulou o voto útil – que acabou por funcionar sobretudo à esquerda.

Muita gente do PCP e do BE, com medo do papão da direita, concentrou o voto no PS. Ana Gomes confessou que muitas pessoas das suas relações, que votam habitualmente em partidos mais à esquerda, concentraram o voto no PS com «medo» de uma vitória da direita. A direita foi o papão que meteu medo à esquerda e deu ao PS o suplemento que faltava para a maioria absoluta.

A maioria absoluta foi construída, pois, em cima do medo de um regresso da direita ao poder. E esse medo foi criado pelas sondagens.

Em conclusão, as sondagens não serviram para dar um retrato minimamente ajustado das tendências de voto, falharam em toda a linha e só tiveram o efeito pernicioso de dar pistas falsas ao eleitorado. 

 

Comentadores discutiram o que não interessava

Uma novidade destas eleições foi o inusitado número de comentadores nas televisões.

Nunca se tinha visto tanta gente a comentar, a opinar, a dar sentenças.

Todos os dias se aventavam múltiplos cenários pós-eleitorais – o PS com o PAN, o PS com o Livre, uma nova ‘geringonça’, um Governo do PSD com a IL, uma possível negociação do PSD com o Chega… Curiosamente, o único cenário que ninguém analisou a fundo foi exatamente aquele que viria a acontecer: uma maioria absoluta do PS.

Dir-se-á que as sondagens excluíam essa hipótese.

Mas para navegar ao sabor das sondagens, não seriam necessários comentadores.

Foram palavras, palavras e mais palavras – que às 20h00 da noite eleitoral ficaram vazias de sentido, pois os cenários longamente debatidos esvaneceram-se. 

Todo o palavreado só tinha servido para encher horas de emissão e para mais nada.

 

O que contou

O resultado das eleições foi, antes de qualquer outra coisa, determinado por uma ideia: continuidade e estabilidade. Perante isso, tudo o resto perdeu importância.

Aliás, foi sempre assim.

Como recordei há oito dias, todos os primeiros-ministros que se recandidataram no exercício do cargo ganharam as eleições. 

É verdade que José Sócrates e Pedro Santana Lopes não foram reeleitos. Mas já não eram primeiros-ministros quando se recandidataram: o primeiro tinha-se demitido e o outro fora demitido pelo Presidente. Não por acaso, António Costa, depois do chumbo do OE, fez questão de dizer que não se demitia…

Portugal é um país envelhecido – e as pessoas mais velhas têm medo da mudança. 

Por outro lado, há um vasto conjunto de gente dependente do Estado – funcionalismo público, fornecedores do Estado, empregados das empresas públicas, beneficiários dos subsídios, etc., etc. – para quem uma mudança de Governo significa sempre um risco. São milhões de eleitores a desejar a continuidade. 

Acresce que António Costa, não sendo brilhante em campanha, como se disse, tem uma qualidade importante: transmite uma sensação de segurança. 

Isto junto, mais o ‘suplemento’ dado pelo voto útil da esquerda, explicam a maioria absoluta.

 

A ‘manha’ de António Costa

Costa tem outras duas importantes características: é politicamente muito hábil, mesmo manhoso, e é implacável.

Veja-se como, após ter perdido as eleições em 2015, se agarrou ao PCP e ao BE para conseguir chegar ao poder, numa manobra nunca vista na política portuguesa. E depois serviu-se do PCP e do BE para se aguentar no poder durante quatro anos. E finalmente, na primeira oportunidade, deu um pontapé no PCP e no BE e alcançou a maioria absoluta.

De perdedor a vencedor absoluto – não eram muitos os que o conseguiriam.

O PCP e o BE queixam-se hoje do ‘abraço de urso’ de António Costa. Mas foram eles que se deixaram abraçar. E a História está cheia de casos destes. 

Adiante-se que a maioria absoluta era vital para Costa, como várias vezes escrevi. Se não a alcançasse, ir-se-ia embora na primeira oportunidade, como aconteceu com Guterres. Seria impensável para ele ficar mais quatro anos no poder tendo permanentemente de negociar os votos no Parlamento, como aconteceu nos últimos dois anos. 

 

Os perdedores

Ao contrário de António Costa, Rui Rio fez uma excelente campanha, chegando a dar a ilusão de que podia ganhar – e assustando a esquerda. 

Mas os resultados mostraram que um político com as suas características dificilmente chega a primeiro-ministro. 

Um homem com uma sinceridade que roça a ingenuidade, que diz o que pensa, que se recusa a fazer promessas fáceis, que não ataca por atacar e é incapaz de fazer oposição pela oposição, muito dificilmente chega ao topo. 

Mas até no discurso da derrota esteve bem: assumiu-a, não dramatizou, usou palavras simples. E disse com singeleza que não vê argumentos que lhe permitam pensar que poderá continuar a ser útil ao PSD na nova conjuntura. 

Foi um modo de dizer, doutra maneira, que não se vai manter na liderança.

Esta confissão originou, aliás, um episódio hilariante: o jornalista da CMTV, não percebendo aparentemente o que Rio tinha dito, perguntou-lhe se se demitia. Ao que ele respondeu em alemão. Foi o melhor momento da noite: se o interlocutor não percebia (ou fingia não perceber) o óbvio em português, a solução era responder noutra língua. 

No plano político, verificou-se que Rio seguiu a estratégia errada ao tentar captar votos ao centro desguarnecendo a direita – e facilitando a vida à IL e ao Chega.

O PSD só poderá ganhar eleições fazendo como Sá Carneiro fez em 1979, promovendo a bipolarização, mobilizando toda a direita e fazendo-a vibrar em conjunto; ou como Cavaco Silva fez em 1987, metendo a direita no bolso.

Ora, Rui Rio escolheu outro caminho.

Colocou-se ao centro para disputar os votos ao PS. 

E escorraçou o Chega, que se configurava como o terceiro maior partido e não poderia ser descartado no eventual apoio a um governo de direita. Se o PSD tivesse ganho as eleições – admitindo que não conseguia a maioria absoluta – que Governo poderia formar? Nenhum. 

Esta evidência também terá contribuído para a má votação. 

Estas eleições tiveram um outro perdedor de que pouco se falou: Pedro Nuno Santos.

Depois de Costa dizer que se demitiria caso perdesse as eleições, o ministro das Infraestruturas já se via sentado no lugar do líder – e quiçá com a hipótese de chegar a primeiro-ministro. Com este resultado, Costa sai muito reforçado e Pedro Nuno terá de adiar todos os planos, pelo menos, por quatro anos. E perde o seu grande trunfo, que era a necessidade de o PS precisar da extrema-esquerda para governar. 

Uma última palavra para Francisco Rodrigues dos Santos. Fez pena. Fez uma excelente campanha, foi combativo, argumentou bem nos debates, tentou posicionar ideologicamente o CDS com algum rigor, não teve receio de se assumir como de direita.

Mas também foi vítima de a campanha não ter servido para nada. Caso contrário, teria tido muito melhor votação. 

Abandonado por todos os barões e baronetes (com exceção de Ribeiro e Castro, honra lhe seja), teve ainda de ouvir Adolfo Mesquita Nunes vir dizer que votava na IL. Não lhe ficou bem. Foi uma vingançazinha desnecessária.

E como um azar nunca vem só, Rodrigues dos Santos até foi penalizado pelo método de Hondt.

Tendo mais votos do que o PAN e o Livre, viu estes elegerem um deputado cada um – enquanto o CDS não elegeu nenhum.

Não foi por Francisco Rodrigues dos Santos que o CDS acabou. 

Por muito que os barões lhe apontem o dedo, o destino do CDS estava traçado. A verdade é que não se soube posicionar há muito tempo. Não era peixe nem carne. Não era liberal nem de direita. E quando apareceu o Chega, primeiro, e a IL, depois, ficou sem espaço. 

Foi muitas vezes um partido politicamente correto e, em momentos decisivos, não teve coragem de enfrentar a esquerda e a extrema-esquerda. Não soube liderar a luta contra a liberalização do aborto, nem contra a liberalização das drogas, nem contra a ideologia de género, nem contra o achincalhamento da História de Portugal, nem contra tudo aquilo que a direita deveria naturalmente combater. Parecia ter medo das palavras. E pagou caro essa falta de comparência. 

Deixou de ter utilidade.

Mas isso não foi agora – passou-se há muito tempo. 

Os barões que responsabilizam Rodrigues dos Santos são os verdadeiros responsáveis pelo que agora aconteceu.