O que esperar do próximo Governo?

João César das Neves, João Ferreira do Amaral, António Bagão Félix e Eugénio Rosa dizem ao Nascer do SOL o que esperam do próximo Governo em termos económicos. Entre dúvidas e riscos admitem que tendo maioria absoluta, o diálogo com outros partidos será quase ‘impossível’ e que o crescimento da economia irá depender do comportamento…

César das Neves: ‘Apresentar o mesmo OE será um erro’

«Na campanha, o primeiro-ministro disse que iria reapresentar o Orçamento do Estado (OE) chumbado em outubro. Isso seria evidentemente um erro, pois estes meses mudaram significativamente o cenário macroeconómico e, por isso, uma boa gestão implicaria uma revisão das metas e medidas do OE, mesmo se o essencial não mudasse. Isso acontecerá certamente (sobretudo se mudar de ministro das Finanças) pois as promessas de campanha são sempre mutáveis», a garantia é dado ao Nascer do SOL, pelo economista César das Neves.

Ainda assim, admite que um Governo maioritário do PS não deve ser muito diferente do anterior, uma vez que defende que as concessões aos parceiros de coligação foram poucas. No entanto, acredita que será «um Governo mais estável e previsível», prevendo que se «faça algumas reformas substanciais», referindo que pode ser «possível, mas não provável».

Mas deixa um alerta em relação ao próximo Governo. «O que mais temo é o acréscimo da contestação social que a extrema-esquerda, agora livre de compromissos de Governo e ansiosa por marcar posição, certamente irá provocar. Podemos estar a entrar na fase descendente e de desgaste do Governo socialista, semelhante aos últimos anos de Cavaco Silva». E admite que «nem António Costa acreditou nessa promessa de António Costa de dialogar com todos os partidos. Um Governo maioritário pode simular diálogo, mas teria de ser muito excecional para realmente negociar substantivamente».

Quanto a prioridades em relação ao novo Executivo, o economista diz que aproveitando a ‘boleia’ da estabilidade política deveria apostar na realização de reformas, no crescimento e na transformação da economia, «integrando Portugal na grande evolução tecnológica a que o mundo assiste».

No entanto, mostra-se reticente em relação se este é o caminho que deverá ser seguido. «Isso certamente não é o que vai acontecer», acrescentando que o novo Governo terá como grande tarefa a aplicação do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), «o que o afastará do certamente crescimento e transformação da economia, pois o plano aprovado é mais do mesmo, centrado em burocracia e construção».

E vai mais longe ao defender que o PRR «nunca foi pensado para ser cumprido, por isso é que foi feito em tempo recorde. Ainda vai ter muitas alterações porque os interesses instalados vão esquartejar os fundos a seu favor». Como tal acredita que «ninguém vai notar a diferença entre PRR e o resto dos fundos. Nem a Europa».

César das Neves garante que os próximos anos serão «bastante» complicados em termos de crescimento da economia e da redução da dívida. «Para o crescimento, a receita são as ilusões do PRR, que vão empolar a economia sem realmente a mudarem. Na redução da dívida (que está em níveis recorde) teremos o problema do aumento das taxas de juro e, sobretudo, a mudança do clima político interno», acrescentando que «após tantos anos de austeridade, centrando a aposta política no défice zero, não é credível regressar ao princípio do processo só porque a covid estragou tudo. O país está à espera de um tempo de facilidades, financiados por fundos europeus e será muito difícil resistir a essas ambições».
 
João Ferreira do Amaral: ‘Há o risco do compadrio e do autismo que as maiorias costumam agravar’

João Ferreira do Amaral acredita que a proposta do Orçamento do Estado do próximo Governo será «provavelmente» uma atualização da proposta que foi chumbada. No entanto, entende que, se assim for, «faz sentido» por considerar que a proposta chumbada «era boa». 

Para o economista, as prioridades do próximo Executivo deverão ser tomadas no âmbito da realização do PRR. «O país tem desafios de médio/longo prazo que exigem que se tomem desde já medidas, como sejam as relacionadas com as opções energéticas e o caminho para a neutralidade carbónica, o envelhecimento galopante da população e a revolução digital. O PRR será um instrumento importante para isso e o facto de deixar de haver coligações negativas na Assembleia da República pode facilitar a realização dessas medidas», diz ao Nascer do SOL.

Já em relação à bazuca acredita que não irá ser alvo de alterações. E explica porquê: «Não vejo razões para isso. É um processo exigente, mas que não é substancialmente diferente com maioria absoluta ou sem ela». 

Quanto a riscos não deixa margem para dúvidas: «O que temo é o enviesamento tradicional da política em Portugal para o curto prazo esquecendo a importância dos desafios de longo prazo e também o compadrio e o autismo político que as maiorias absolutas costumam agravar». 

E face a este cenário de maioria absoluta, João Ferreira do Amaral acredita que «inevitavelmente a capacidade dos partidos de esquerda verem aprovadas as suas propostas irá reduzir-se», afastando assim um diálogo com todos os partidos.

Lembra ainda que o crescimento da economia e a redução da dívida acenados pelo próximo Governo irá estar dependente do comportamento da economia mundial. «Se a economia mundial voltar a um crescimento sustentado, poderemos ter em Portugal uma nova fase. Poderá ser um período de crescimento rápido em relação ao que tem sido o nosso crescimento nas duas últimas décadas, o que só por si facilitará o equilíbrio orçamental e matematicamente diminuirá o peso da dívida no PIB», diz ao nosso jornal. 

Bagão Félix: ‘Governo não deve ficar refém de propostas de retalho dos partidos à esquerda’

António Bagão Félix não espera grandes surpresas em relação ao Orçamento do Estado que irá ser apresentado, lembrando que a «resposta foi dada por António Costa, ou seja, o mesmo que foi apresentado e chumbado no anterior quadro parlamentar», e lembra que o novo Executivo ao ter a maioria de deputados não irá «ficar ‘refém’ de propostas de retalho dos partidos à sua esquerda e de devaneios proibicionistas do PAN. Tem, portanto, a obrigação de fazer mais e melhor».

Mas por ser um Governo de maioria, o economista receia «que o entusiasmo da vitória eleitoral leve o Executivo e a maioria a não aproveitarem o primeiro ano para reformar verdadeiramente o que é necessário».

E, para isso, aponta como prioritário algumas reformas que deveriam ser levadas a cabo. «São necessárias reformas de fundo na Justiça, na Educação e no obeso e ineficiente aparelho do Estado. Mas também a procura de um consenso, sobretudo com o PSD, para uma reforma fiscal que seja duradoura e dê estabilidade, segurança, eficácia e maior equidade tributária dos rendimentos e da poupança», diz ao Nascer do SOL.

Quanto às metas definidas pelo PS em matéria de crescimento da economia e da redução da dívida acredita que, nestes como em outros objetivos macroeconómicos, Portugal está fortemente dependente do que não domina. E dá como exemplo, as taxas de juro, as taxas de câmbio, a procura externa e a evolução dos preços das fontes de energia. «E, agora, também dos efeitos da inflação que veio para ficar e que tem consequências ao nível dos rendimentos e ativos (a mesma que, porém, pode beneficiar o rácio da dívida pública por causa de um PIB nominal maior)», refere.

Mostra-se, no entanto, mais otimista em relação à aplicação do PRR ao considerar que grande parte da afetação do dinheiro está pré-determinada pelas regras estabelecidas a nível europeu. Mas, ainda assim, deixa um alerta: «A pressão está sobretudo e cada vez mais do lado da execução, que tem datas definidas para a sua conclusão. É aqui que se deve concentrar o esforço e não tanto em alterar aspetos de pormenor».

E deixa um recado quanto aos restantes fundos comunitários ao defender que devem ser aproveitados, na medida do possível, «para fortalecer os pilares de uma economia mais robustecida, de uma produtividade acrescida e de uma distribuição social justa».
 
Eugénio Rosa: ‘Espero que a política não seja dominada pela obsessão do défice’

«A proposta de OE 2022 que foi chumbada por todos os partidos, com exceção do PS e do PAN, é uma proposta que não responde aos principais problemas do país», a garantia foi dada ao Nascer do SOL por Eugénio Rosa. 

O economista dá alguns exemplos. «Em relação ao SNS, uma matéria considerada prioritária pelos portugueses, prevê-se um aumento de 700 milhões face ao orçamento inicial de 2021. A execução do orçamento do SNS de 2021 terminou, segundo o Ministério das Finanças, com um saldo global negativo de 1100 milhões, portanto, o previsto no OE 2022 para o SNS é ainda inferior ao efetivamente gasto em 2021».

E lembra que, com o disparar dos preços de muitos produtos utilizados pelo SNS, a manutenção da proposta do Orçamento causará uma maior degradação do serviço. O cenário repete-se em relação às remunerações dos trabalhadores da Função Pública lembrando que aumentaram 0,9%, enquanto as pensões dos reformados e dos aposentados subiram entre 0,24% e 1%, já a inflação em 2022 subirá mais de 4%. «A manter-se esta situação, os trabalhadores da administração pública e os pensionistas sofrerão este ano mais uma redução significativa do seu poder de compra, ou seja, cerca de três milhões de portugueses. E não foi certamente para isso que muitos votaram no PS», afirma. 

Como prioridade do próximo Executivo, o economista destaca a necessidade ‘urgente’ de aumentar o investimento público, o que no seu entender, «tem ficado sempre muito aquém do previsto que é já reduzido», referindo que, em 2021, foi executado menos 1.347 milhões do que o constava no OE desse ano, assim como a necessidade urgente de dotar a administração pública de quadros técnicos com as competências necessárias para conseguir responder aos desafios do país, nomeadamente o crescimento económico e a melhoria da qualidade dos serviços públicos.

Quanto a riscos, Eugénio Rosa não tem dúvidas: «Que o futuro Governo não esqueça que só foi possível conseguir a maioria que o sustenta com uma grande deslocação dos votantes do PCP e do BE e que não os defraude, não executando uma política dominada pela obsessão do défice e pela pretensão de reduzir de uma forma drástica e rápida a dívida pública, ou seja, uma política de austeridade que certamente Rui Rio aplicaria se tivesse obtido a maioria, o que a acontecer determinaria a degradação das condições de vida dos trabalhadores e dos pensionistas e dos serviços públicos». E face a esse cenário, Eugénio Rosa acredita que esta é a «hora da verdade para o PS de fazer opções claras, de mostrar o que vai fazer, já que não pode se esconder por detrás das dificuldades criadas pela oposição».

Para o economista, se o objetivo de redução da dívida presente no programa do PS for cumprido – diminuir a dívida pública dos 127,5% do PIB atuais para 116% em 2024 e 110% do PIB até 2026 – só poderá ser obtido com uma forte contenção da despesa pública, «o que significaria a degradação dos serviços públicos (SNS, ensino público, pensões, etc.) para responder às necessidades do país». 

A solução, de acordo com o mesmo, seria encontrar consensos nomeadamente à esquerda «que é aquela que traduz melhor os anseios e os interesses dos trabalhadores que constituem a maioria da população». Mas admite que essa tarefa não será facilitada: «Vivi a experiência da maioria absoluta do PS com José Sócrates. Constatei o poder da maioria absoluta que subiu rapidamente à cabeça do Governo. Estava na altura na AR como deputado e assisti às atitudes dos deputados do PS que não se atreviam a fazer qualquer alteração numa proposta vinda do Governo, mesmo que as nossas propostas fossem justas e facilmente exequíveis». 

Mostra-se ainda reticente em relação à aplicação dos fundos comunitários. «Contrariamente ao que o Governo pretende fazer crer, a execução do Portugal 2020 financiado com fundos comunitários tem-se feito de uma forma não atempada e ineficiente. É fácil de concluir que, tendo em conta a experiência passada, perante esta enorme dimensão de fundos comunitários a que se junta uma componente nacional de empresas (que estão descapitalizadas) e do Estado (que está dominado pela obsessão do défice), será certamente uma missão quase impossível, para não dizer mesmo impossível, utilizar de uma forma atempada e eficiente os fundos comunitários postos à disposição do Estado. Até porque a aprovação das sucessivas ‘tranches’ pela CE está dependente da implementação de ‘reformas’ que ninguém conhece».