Os ciganos do Chega

O Chega passa de um deputado para um acampamento deles em S. Bento

António Costa decidiu ouvir todos os partidos com assento parlamentar com exceção do Chega após ter tido alta da covid-19 e ter sido convidado pelo Presidente Marcelo a formar novo Governo, ou seja, uma vez indigitado primeiro-ministro.

A discriminação do Chega tem em conta as linhas vermelhas traçadas pelo líder socialista, para quem o partido liderado por André Ventura é de direita radical, racista, xenófobo, não integra o espetro da democracia e, como tal, o PS não tem qualquer relação com ele.

Esta estratégia de António Costa é obviamente legítima: tirando os casos a que está obrigado por lei, o primeiro-ministro conversa com quem quiser, quando quiser e onde quiser.

Afinal, não é o próprio Chega quem se autoproclama antissistema, contra o sistema? 

Daí serem os dirigentes ou deputados do Chega os últimos a poderem queixar-se de o sistema não lhes conceder as audiências ou os lugares a que os partidos do sistema têm direito.

Acontece, porém, que o Chega, para todos os efeitos, é um partido do sistema.

Porque está inscrito no Tribunal Constitucional, concorreu a eleições e os seus candidatos foram legitimamente eleitos.

E um partido do sistema tem de respeitar a Constituição e a Lei, mesmo quando não concorda com o que nelas está inscrito, com seus ditâmes.

Ora, isso é tão válido para o Chega como para outro partido qualquer. 

A começar, obviamente, pelo partido no poder, o PS.

Não é ao partido no poder – mesmo com maioria absoluta – que cabe decidir quem são os partidos que podem ou não ter assento na Assembleia da República e que fazem ou não parte do arco de governação ou da democracia representativa. 

Se é ao Tribunal Constitucional que cumpre admitir ou excluir um partido político, o poder executivo nada tem de botar foice em ceara alheia. Ou o princípio da separação de poderes só é intocável quando interessa?

António Costa gaba-se de ter sido ele quem derrubou o muro de Berlim na política portuguesa ao trazer um partido marxista-leninista (PCP) e outro trotskista (BE) para o chamado arco da governação.

E tem completa razão.

Mas, se foi ele, de facto, quem mudou a praxis democrática que ditava que o partido mais votado em eleições legislativas era quem indicava o nome do primeiro-ministro, formava Governo e escolhia o candidato à presidência da Assembleia da República, também não é menos verdade que essa estratégia de subversão do sistema – que lhe possibilitou chegar ao poder e apear a direita, bem como tomar de assalto a Mesa do Parlamento – foi a mesma que lhe permitiu dar o abraço de urso ao PCP e ao BE.

Hoje, com o PS a preparar-se para governar com maioria absoluta e o PCP e o BE reduzidos a bancadas parlamentares que já cabem naquelas carrinhas da Uber, é indubitável que a ‘geringonça’ só serviu à estratégia de poder dos socialistas.

Foi mesmo o abraço do urso. António Costa serviu-se deles para chegar ao poder e acabou a anulá-los, porque deixaram de ser partidos de protesto.

Dominada a esquerda pela inclusão, Costa está agora apostado em dividir a direita para que o PS possa continuar a reinar por muitos e bons anos.

E, para isso, aniquilado o CDS, só lhe falta enfraquecer definitivamente o partido da alternância, o PSD.

Como? Dando protagonismo ao Chega.

Em 2019, António Costa não excluiu o Chega destes encontros. E o partido de André Ventura elegera apenas como deputado o próprio líder.

Hoje, o Chega assentou arraiais no Parlamento. 

Ao ostracizá-lo, o que António Costa está a fazer é exatamente o mesmo que condena ao Chega em relação à comunidade cigana – chama-se discriminação (não é racismo nem xenofobia, mas, sim, discriminação).

E dá-lhe protagonismo e capital de protesto e de oposição. Enquanto o PSD fica cada vez mais condicionado.

Ou seja, Costa age como aqueles comentadores e políticos que se recusam a dizer o nome de André Ventura e do Chega mas, depois, não falam de outra coisa.

Por este caminho, André Ventura ganha cada vez mais fôlego para dizer que sem o Chega a direita não voltará ao poder.

E daí também a insistência de Costa em traçar as linhas vermelhas.

Trata-se de uma estratégia com evidentes e enormes riscos.

Mas, quando conduziu o país para eleições antecipadas convencido que podia ganhar a maioria absoluta e que era agora ou nunca, Costa também foi arrojado.

Sendo que, neste caso, ganhou.