Raquel Duarte. “Enquanto houver uma parte da população não vacinada, há o risco de novas variantes”

A médica Raquel Duarte, da equipa que tem apresentado as propostas de desconfinamento ao Governo, diz que a pandemia não acaba por decreto e importa, em cada momento, adaptar as medidas ao nível de risco para garantir a adesão da população. É o que propõem agora. O que pode trocar-nos as voltas? “Uma nova variante”,…

Houve um consenso entre os peritos na reunião do Infarmed de que há condições para aliviar medidas de resposta à covid-19. Propõem duas etapas, o nível 1 e o nível 0. O país pode passar já ao nível 1?

Sim, estamos em condições de passar já para o nível 1, que consiste basicamente em aliviar algumas restrições mas continuar a utilizar as medidas de proteção individual e medidas mais específicas em contextos de pessoas mais vulneráveis.

No caso das máscaras, propomos que se mantenham as medidas atualmente em vigor, nomeadamente o uso de máscara em locais interiores públicos, nos transportes e nos locais exteriores de grande densidade populacional em que não é possível manter o distanciamento. Temos de continuar a garantir a vacinação e apostar mais na ventilação do que se tem feito até agora. De resto, entendemos que pode deixar de haver o pedido de certificado e lotações reduzidas em estabelecimentos comerciais.

No caso do certificado, defende que seja usado apenas em contexto de saúde ocupacional, por exemplo na admissão de um novo trabalhador. No caso da testagem, propõe também alterações, mas mantendo os testes para admissão nos lares e antes do internamento hospitalar por exemplo.

Propomos por um lado que seja feita uma testagem como objetivo de monitorização, como foi apresentado pela Dra. Ana Paula Rodrigues do INSA, como forma de vigilância para se perceber o que está a acontecer na comunidade.

Simultaneamente nesta fase propomos que se mantenha a testagem em locais de maior risco, onde pode haver surtos com consequências mais graves, e aqui estamos a falar de residenciais para idosos e do contexto de internamento hospitalar, em que propomos que os testes sejam feitos por rotina na admissão. Incluímos também na proposta neste nível 1 a testagem de funcionários do pré-escolar, porque as crianças não estão vacinadas e portanto há um maior risco de infeção.

Falam nesta primeira etapa do alívio de medidas de testar pessoas sintomáticas no contexto de diagnóstico. Significa que deixariam de ser testadas pessoas sem sintomas?

Quisemos referir a necessidade do teste para diagnóstico e indicação terapêutica, que irá manter-se, mas não incluímos propositadamente as questões relacionadas com rastreio de contactos e isolamento, pois são matérias a ser equacionadas pela Direção Geral da Saúde.

Fizeram as propostas mais focadas na forma como se lida com a pandemia no contexto comunitário, em que não se farão testes regularmente sem indicação para tal.

Exatamente.

Este alívio de medidas para o nível 1 será já uma situação de normalidade? 

A normalidade será quando passarmos ao nível 0, em que propomos que deixe de haver limitações e deixe de haver obrigatoriedade do uso de máscara. O que defendemos é que isso seja acompanhado por uma promoção de comportamentos que devem ficar para lá da pandemia, nomeadamente o uso de máscara quando estamos com sintomas respiratórios, a higienização das mãos, manter a distância quando é necessário.

Propomos que passemos para este nível 0 quando estivermos abaixo do nível de alerta do ECDC (Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças) para a mortalidade associada à covid-19, se estivermos abaixo da linha de alerta de ocupação de cuidados intensivos (abaixo de 170 camas ocupadas) e obviamente se não houver em circulação uma nova variante de preocupação. Nesse sentido propusemos que seja feita uma avaliação quinzenal.

Como já disse, na reunião defendeu que é preciso ‘ritualizar’ alguns hábitos da pandemia. Baltazar Nunes, do Instituto Ricardo Jorge, disse também que este inverno o país está a registar uma mortalidade abaixo de anos anteriores, mas notou que estão em vigor medidas, defendendo que poderão ser equacionadas no futuro para prevenir excessos de mortalidade que se viveram no passado. É uma discussão que gostavam de ver agora?

Temos mesmo de o fazer. Havia comportamentos que tínhamos como aceites no passado que hoje espero que já não o sejam. Era normal termos sintomas respiratórios e irmos trabalhar, estar à beira dos nossos colegas e familiares, sabendo que íamos ficar todos infetados. Era normal não lavar as mãos adequadamente. Há uma série de comportamentos que devemos manter para além da pandemia. 

Incluindo as máscaras?

Também, quando for necessário. 

O que pode trocar-nos ainda as voltas?

Uma nova variante.

No Reino Unido, além da segunda linhagem da Omicron, está a ser estudada uma recombinação da variante Omicron com a Delta, não havendo muita informação ainda. É algo que também tiveram presente nesta proposta?

É preciso perceber de facto que o que pode alterar a situação é uma qualquer mudança do vírus em circulação e que se mantém a monitorização. Enquanto houver uma grande parte da população mundial não vacinada e vírus a circular, haverá a possibilidade de novas variantes e recombinações de variantes que podem ter características diferentes que importa avaliar.

Hoje temos ferramentas que nos ajudam, temos as vacinas, temos antivíricos, sabemos como é que o vírus se transmite e o que podemos fazer para reduzir esse risco de transmissão, mas o que também sabemos é que as variantes mais competentes são as que vão sobreviver. Temos de jogar com as armas que temos, sabendo que o que mudou o jogo completamente foi claramente a vacinação.

Conhecemos a transmissão do vírus neste contexto em que, entre alívio e reforço de medidas, se mantiveram nestes dois anos alguns cuidados. Quando nos libertarmos por completo destas regras, não pode haver um aumento de infeções na primavera mesmo pensando-se que o vírus circulará mais no inverno?

Há sempre um grau de incerteza. No passado já houve muita gente a datar o fim da pandemia. Costumo dizer sempre que a pandemia não acaba porque queremos ou por decreto. Acabará quando, tendo as armas todas ao nosso dispor, virmos que na realidade acabou. Nos próximos tempos teremos de perceber como é que o vírus se vai comportar sem medidas, qual será a proteção conferida ao longo do tempo pelas vacinas, e ir monitorizando a situação em cada momento, daí o sistema de monitorização proposto.

Temos de ser suficientemente prudentes para ir ajustando as medidas e o nosso comportamento ao nível de risco. E isso é o que neste momento precisa de ser ajustado, porque sabemos que a população entra num nível de cansaço e que as medidas, quando não estão em linha com o nível de risco, não são cumpridas. Para haver adesão, as medidas têm de ser proporcionais ao nível de risco.

Falou-se na reunião do Infarmed da importância do reforço vacinal, não abordando a quarta dose, que alguns países começam a dar aos mais velhos. É o momento para tomar decisões ou pode não ser necessário no imediato?

Parece-me que nesta altura pensar numa quarta dose é prematuro. Penso que neste momento devemos preocupar-nos em garantir que a terceira dose é administrada a toda a gente que tem indicação para o fazer. Poderemos então avaliar se será preciso ser vacinado novamente, quem, com uma quarta dose ou com uma nova vacina. 

A responsável do INSA ao apresentar o novo modelo de vigilância explicou que vai envolver diferentes parceiros e vai implicar recursos dedicados, um quadro normativo e acesso a dados, área em que houve algumas limitações durante a pandemia até por questões de proteção de dados. Existe o entendimento da necessidade investimento para que este sistema avance?

Estou convencida que sim. Se alguma coisa a pandemia nos mostrou foi que houve uma grande vontade de todos para que as coisas funcionem. Houve uma grande revolução em termos de qualidade e de partilha de informação e isto é para manter seguramente, é das lições apreendidas.

E o investimento?

Outra das lições da pandemia é que este tipo de investimentos são necessários.