As esperanças na cura da Sida. Testemunhos de quem sofre com a doença

Será que, depois do “Paciente de Berlim” e do “Paciente de Londres”, a “Paciente de Nova Iorque” ficou curada? O i falou com Miguel Neto, que vive com o VIH há quase três anos, e Cristina Sousa, presidente da Associação Abraço, para entender a suposta cura para o VIH.

“A primeira reação foi de curiosidade, mas sem grande expectativa, e isso levou-me a ler a notícia e tentar perceber o que seria. Creio que é uma boa novidade, mas um passo muito pequenino. Estamos longe”, começa por explicar Miguel Neto, de 38 anos, referindo-se ao facto de uma norte-americana seropositiva ter sido supostamente curada do vírus da imunodeficiência humana (VIH) através da transfusão de sangue do cordão umbilical de um bebé, parcialmente compatível, com resistência genética ao vírus.

Neste caso, os médicos não recorreram ao habitual transplante de medula óssea de um dador de etnia semelhante. Tendo em conta que a maior parte dos dadores é de origem caucasiana, este tratamento abre janelas de oportunidade a muitos mais portadores do vírus.

Em 2008 curou-se o primeiro paciente com VIH, que viveu livre do vírus durante 12 anos, até morrer com cancro há dois anos: Timothy Ray Brown – “Paciente de Berlim” –, que tinha VIH e leucemia. Em 2019, Adam Castillejo – “Paciente de Londres” – foi curado, sendo que os dois receberam células estaminais de dadores compatíveis tal como a mulher – “Paciente de Nova Iorque” – que sofre de VIH e leucemia mielóide aguda. Os médicos Koen van Besien, Jingmei Hsu e Marshall Glesby, do New York-Presbyterian Weill Cornell Medical Center, foram responsáveis pelo tratamento desta doente. 

“Já perto do fim da gravidez da minha mulher, acabei por entrar em burnout por problemas do trabalho. E a gravidez era de risco, complicada, mas estávamos na reta final. Tive zona e fui à médica de família ver o que poderia ser. Ela mandou fazer várias análises para entender que doença poderia estar a comprometer o sistema imunitário. Foi assim que descobri que sou seropositivo”, diz Miguel, que há quase três anos teve a infeção viral zona – também conhecida por herpes zóster – que se manifesta por meio de erupções cutâneas. Acima de tudo, por pequenas bolhas com líquido.

“Não desconfiava de todo. Estava a recuperar do burnout e recebi uma notícia destas. Não me deitou assim tão abaixo quanto isso porque tentei focar-me mais no facto de ir ser pai pela primeira vez. Não posso dizer que o impacto tenha sido devastador”, explica o eletricista, adiantando que “o primeiro teste é para detetar anticorpos. Depois, faz-se um mais específico e um que não deteta anticorpos, mas o vírus e a carga viral. E foi detetada uma relativamente pequena”, sendo que a partir desse momento começou “a ser acompanhado e a fazer a medicação”. Contando sempre com o apoio de Marta Santos, de 37 anos, sua companheira.

“Na altura, assustei-me um bocadinho, não sabia o que havia de fazer. Nestes dois anos e pouco, eu próprio que sempre fui curioso, percebi o quanto não sabia sobre este vírus. Pensava que teria de usar contracetivos para o resto da vida, mas posso ter uma vida praticamente normal. Distraímo-nos com tantas coisas secundárias e não nos dedicamos a saber mais sobre outras como esta”, sublinha o homem natural de Sintra que reside em Matosinhos desde 2011, sendo acompanhado por um médico infeciologista no Hospital Pedro Hispano com o qual tem consultas de seis em seis meses.

“Não me posso queixar do impacto a nível físico nem da medicação. Vai variando conforme a evolução. Não dei a notícia a quase ninguém. Uma das primeiras coisas de que me mentalizei foi de que não estava mal. As pessoas têm ideias erradas e percebo que tal aconteça, mas a primeira pessoa que não me deve estigmatizar sou eu mesmo”, adiciona, sendo um dos 61.433 casos de infeção por VIH, dos quais 22.835 casos em estádio Sida, que o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) e a Direção-Geral da Saúde (DGS) divulgaram no relatório anual sobre a situação da infeção por VIH e síndrome de imunodeficiência adquirida (Sida).

Pandemia deixou Portugal sem dados atualizados “Não tenho nada de errado nem vou fazer mal a ninguém. Não tenho de o esconder, mas também não tenho de fazer publicidade. Tenho cuidados especiais em não falar deste assunto porque a ignorância dos outros vai fazer-me sofrer e criar problemas que não tenho. Se me perguntarem abertamente eu digo que sim, mas se perguntarem o que é que eu tenho digo que é algo pessoal”, afirma o homem que foi diagnosticado no ano anterior ao do surgimento da pandemia, sendo este o último em que foram veiculados dados atualizados.

Sabe-se que, há três anos, foram diagnosticados 778 novos casos de infeção por VIH em Portugal, o que equivale a uma taxa de 7,6 casos/100 mil habitantes, “não ajustada para o atraso da notificação”, alertou o INSA no seu site oficial. Foram notificados 172 novos casos de Sida e 197 óbitos ocorridos em 2019 em casos de infeção por VIH ou Sida.

“Encontram-se registados cumulativamente 61.433 casos de infeção por VIH, dos quais 22.835 casos em estádio Sida, em que o diagnóstico aconteceu entre 1983 e final de 2019. No mesmo período, foram notificados 15.213 óbitos em casos de infeção por VIH”.

“Disse ao meu chefe de equipa para ele saber a situação em que eu estava. Além dele, sabe o médico da Medicina do Trabalho e um colega meu em quem confio bastante. Da minha família ninguém sabe. A minha mãe já tem uma certa idade e podia ficar confusa. Iria ouvir coisas das outras pessoas e se calhar ia haver ideias muito erradas em relação à minha situação”, elucida o pai de Leonardo, de dois anos e cinco meses, que acredita que “o maior problema é o estigma, não é o vírus nem a medicação”.

Recorde-se que, em julho desse mesmo ano, por volta da altura em que o VIH de Miguel foi detetado, a DGS anunciou que Portugal entrara no lote de países que haviam alcançado todos os objetivos traçados no programa “90/90/90” lançado pelas Nações Unidas para o combate ao VIH/SIDA. Este visava que dos 90% dos infetados diagnostiscados, 90% estivessem em tratamento e 90 % destes apresentassem uma carga viral não detetável.

No ano anterior, no decorrer da apresentação do programa “Infeção VIH e SIDA – Desafios e Estratégias 2018”, dois dos três noventas tinham sido alcançados, ou seja, aqueles que estão relacionados com o diagnóstico do vírus e com a eficácia do tratamento do mesmo. Portugal terá atingido esta meta dos “três noventas” em 2017, pois apesar de os resultados só terem sido divulgados há três anos, as estatísticas apresentadas referiam-se ao ano anteriormente referido. 

Segundo a diretora do Programa Nacional para o VIH/Sida, Isabel Aldir, o país tinha em 2017 mais de 92% de pessoas com infecção já diagnosticada e 90,2% destes já estariam em tratamento. Naquilo que concerne à meta da carga viral não detetável, os dados indicavam que 93% dos doentes tinham o vírus suprimido. Contudo, a informação tornou-se escassa com o aparecimento do novo coronavírus. Em dezembro do ano passado, aquando da celebração do Dia Mundial de Luta contra a SIDA, o Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças fez um balanço da epidemia na região europeia, procurando refletir já o impacto causado pela pandemia. 

“Entre os 27 estados membros, Portugal foi o único a não reportar qualquer informação, constata-se no documento publicado ontem pelo ECDC, que aponta para uma quebra de 24% nos diagnósticos de VIH nos países europeus no ano passado, que o organismo considera que em parte se deverá à perturbação causada pela covid-19 nos serviços de saúde, quer nos diagnósticos, quer no seu reporte atempado, isto numa avaliação preliminar”, noticiou o i, reforçando que, nas notas do documento, era possível ler que “todos os países da UE/EEA reportaram dados para 2020 mas Portugal optou por não publicar os seus”.

Independentemente da falha na atualização dos números, Cristina Sousa, presidente da Associação Abraço, foca-se em cada doente e indica que “as esperanças que estas notícias trazem para estas pessoas são preocupantes”. “Podem ser cientificamente muito significativas, mas não vão chegar à população que sofre da doença facilmente. Para terem isto, têm de ter outra doença grave associada e, ao tratarem essa doença, revertem a Sida. Mas não é algo que possa ser disponibilizado para quem vive somente com VIH”. 

“Acaba por criar muitas ansiedades porque, de imediato, temos doentes a fazerem-nos perguntas e a quererem obter o mesmo tratamento. Temos de trabalhar isto, tentando que a pessoa perceba que, nos dias de hoje, o VIH não se transmite se a pessoa estiver em tratamento e torna-se indetetável”, clarifica a dirigente da associação privada que foi fundada a 5 de junho de 1992 como Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) sem fins lucrativos.

“Sentindo-se bem, não precisam de estar agarradas à ideia da cura final. Na associação, queremos acreditar que é um avanço da Ciência que poderá contribuir para se descobrir a cura efetiva. Não conseguimos é palpá-la tão diretamente como a notícia é expressada, mas é uma esperança para desenvolver toda a investigação”, aponta, esclarecendo que tal é motivado pelo preconceito, na medida em que “a pessoa que vive com VIH, nos dias de hoje, não devia ter tanto o peso de querer a cura final”. 

“Efetivamente, sentir-se-ia muito bem se se livrasse de uma doença que tem um fardo muito estigmatizante. Há uma discriminação camuflada. Por exemplo, num centro de saúde o atendimento não é igual, num banco é bloqueada a questão dos direitos de aceder a créditos e outros fins por apresentação de relatórios médicos, na medicina do trabalho têm medo de que o profissional de saúde diga ao chefe que são doentes… Legalmente, isto não pode acontecer, mas acontece”, continua, frisando que a Abraço tem três centros de trabalho na grande Lisboa bem como nas delegações do Porto, Funchal e Setúbal.

“Continuamos a investir na partilha e sensibilizar a população no geral para o facto de ser importante sabermos que estamos doentes, mas não devemos ter receio de quem tem a doença, mas sim de quem não sabe que a tem! Fazemos um acompanhamento em vários projetos para pessoas que vivem com VIH: desde as mais dependentes até às pessoas e famílias que nos procuram para apoio psicológico, nutricional, etc. Somando tudo, 160 no Porto, 200 em Lisboa, 100 famílias no Funchal – crianças filhas de portadores – e Setúbal aproximadamente 50”, observa. “Arredondando, seguimos 500 pessoas e ainda temos os centros de rastreio no Porto, em Lisboa, em Braga e em Aveiro”.

“O estigma tem a ver com a questão da sujidade, de associarem a infeção ao sexo. É quase como se aquela pessoa tivesse VIH, mas tem porque é diferente de mim! Mas é o contrário! São comportamentos que assumo que não tenho, mas tenho! E não me identifico nada. No dia-a-dia, se perguntarmos à pessoa se sabe como se transmite a doença, quase toda a gente sabe. Se perguntarmos se tem medo, quase todos dizem que não. Mas quando estão perante alguém com a doença, a cabeça muda completamente e fica com receios irracionais”. Como é natural, a perspetiva de Cristina vai ao encontro da de Miguel, que decidiu viver de outra forma quando entendeu que a sua vida era mais frágil do que pensava.

“Acho que obrigou-me, de certa forma, a pôr a vida de outra perspetiva. Para já, decidi não me chatear com coisas que não valem a pena, evitar perder tempo e desgastar-me física e psicologicamente. Comecei a aprender a tocar guitarra, que era algo que queria fazer há anos. Num dos grupos de que faço parte, no Facebook, uma fotógrafa amadora decidiu fazer uma exposição de pessoas nuas que tenham HIV. Inscrevi-me, fiz as fotografias e sei que é algo que não faria de outra forma”, confessa. “Comecei a dar valor ao tempo e a relativizar muitas coisas”.

“Ao início, a Marta não lidava tão bem com a situação, mas nunca notei nela falta de esforço em relação a isso. Acho que nunca fui muito abaixo e, das poucas vezes que fui, guardei muito para mim porque tenho esse mau hábito. Não falo, não desabafo”, explica, reconhecendo que a vida sexual alterou-se. “Foi perfeitamente normal. Tinha um impacto negativo em mim, mas entendi”, declara o homem que toma o medicamento Dovato (Lamivudina + Dolutegravir). “Tomava dois e tomo só um agora”. 

“Toda a gente devia fazer o teste: o vírus ou a doença não é, de todo, uma sentença de morte. Talvez para quem descubra o maior conselho é que ter VIH não é ser VIH. Ter este vírus não nos deve mudar. Não devemos ter pena de nós próprios nem nos sentirmos sujos. Sentia-me sujo e que era perigoso, ao início, mas eu não sou o VIH. Continuo a ser o Miguel”, raciocina, constatando que há muitas pessoas a sofrerem por serem seropositivas, pois “o grande efeito secundário é a estigmatização”. 

“Não tive muitos comportamentos de risco, mas basta uma vez, ninguém tem escrito na testa que é seropositivo… Se a mentalidade das pessoas vai mudar? Acho que não. Muda quando nos toca a nós ou a alguém chegado, mas não acredito que procuremos mudar ativamente. É como se só acontecesse aos outros”, nota.

“No trabalho, um colega não sabe que tenho VIH, estava a falar de outra pessoa e disse ‘Não tenho nada contra, mas nem consigo apertar a mão a essa gente’. Neste sentido, tenho muito mais fé na Ciência do que nas pessoas. Não falamos da doença, parece que desapareceu. Isto não devia ser assim. Vivemos numa sociedade tão polarizada, mas as pessoas esquecem-se de que nem tudo é preto ou branco. Nada é tão linear quanto julgamos”.