Televisão. Quando a violência é palco de audiência

O caso de Bruno de Carvalho tem-nos feito interrogar sobre a maneira como os meios de comunicação, em particular a televisão, lida com situações de “violência”. Ljubomir Stanisic é conhecido por ser “rígido”. Os seus programas também não “normalizam a violência”?

Sabemos que as redes sociais têm o poder de nos aproximar, mantendo-nos atentos não só àquilo que se passa no nosso país, como em todos os cantos do mundo. Nela temos tido acesso às mais diversas informações, histórias e alertas e, graças à mesma, talvez até possamos dizer que nos fiquemos a conhecer melhor uns aos outros, ou mesmo a colocar em “cima da mesa” questões cruciais para a evolução social.

O problema está, muitas vezes, na sua também capacidade exacerbada de nos fazer julgar, o que pode acabar por transformá-la num “campo de guerra” onde o alvo é apenas um. Por outro lado, talvez tenha de ser mesmo assim.

Nas últimas semanas temos assistido a uma “onda” de indignação que tem feito “tremer” o online, colocando várias pessoas a discutir sobre a violência doméstica e sobre aquilo que devem ser “comportamentos aceitáveis transmitidos pela televisão nacional”.

Começou naquela que é considerada “a casa mais vigiada do país”, no programa da TVI, Big Brother Famosos, viajou até às redes sociais, transportou-se a várias casas portuguesas, chegou até à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) e encontra-se, neste momento, a ser tratada pelo Ministério Público. Bruno de Carvalho, ex-presidente do Sporting, e agora ex-concorrente do reality show, voltou a ter os olhos postos em cima de si, depois de começar a ter comportamentos alegadamente “violentos” e “abusivos” com a sua namorada (com a qual começou a namorar no programa), Liliana Almeida, cantora.

Além da denúncia da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) apresentada ao Ministério Público por crime público de violência doméstica e anunciada no domingo passado, na gala do programa, ao i, a ERC confirmou “a receção de participações, submetidas por cidadãos e associações representativas”, a respeito dessas mesmas situações, onde o gestor, por exemplo, agarra Liliana com “brutalidade” para lhe dar um beijo, ou a “proíbe de falar com outras pessoas”.

Estas participações encontram-se, neste momento, em apreciação pelos serviços da Entidade e, quando houver uma decisão a respeito das mesmas, a ERC procederá como habitualmente à sua divulgação pública no seu sítio eletrónico. “Nessa altura ficará também público as emissões em causa e o número de participações apreciadas”, garantiu. 

No mesmo dia em que o ex-concorrente do Big Brother Famosos – já que acabou por ser expulso pelo público no domingo tendo a estação decidido que não o expulsaria por iniciativa própria, recusando os pedidos impostos pela CIG – fez uma conferência de imprensa, num hotel de Lisboa, onde procurou defender-se das respetivas acusações, ao i a Procuradoria-Geral da República (PGR) confirmou ter aberto um inquérito a Bruno de Carvalho na “secção especializada integrada de violência doméstica”. 

Os ataques não têm sido apenas realizados contra o ex-presidente do Sporting. Em causa tem estado também o “brio e rigor” de um canal de televisão acusado de “monitorizar a violência”. 

Também ao i, João Lázaro, presidente executivo da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) já havia admitido condenar a “normalização da violência” que o programa tem passado, tal como Elisabete Brasil, membro da Associação União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR). “A comunicação social tem uma importância imensa naquilo que é a questão da consciência coletiva, na forma como passa a notícia, como a trabalha, mas também como age em situações em que pode estar em causa uma potencial situação de violência”, explicou no princípio desta semana. 

Acusação de assédio em direto Mas estaremos nós perante um caso único? Porque será Bruno de Carvalho o “epicentro” da polémica, quando é visível noutras estações e programas, personalidades também elas “pouco simpáticas”?

Os gritos e insultos de Ljubomir Stanisic, tanto no programa Pesadelo na Cozinha, como atualmente em Hell’s Kitchen, exibidos na SIC, são “boa televisão”? Não estaremos nós diante de uma situação “idêntica” à de Bruno de Carvalho? Há quem lhes ache piada, por fazer parte de uma persona que nos assusta e, ao mesmo tempo, cativa. Outros julgam que a fórmula presente em ambos os programas continua “a assentar na banalização da humilhação como garantia de audiências”.

Também no programa passado, mais do que os gritos, ou postura rígida de Ljubomir, pudemos assistir àquilo que foi uma denúncia em plena televisão nacional de um caso de assédio. Durante as gravações da nova temporada do concurso de culinária que a SIC exibe nas noites de domingo, todos os concorrentes ficam isolados numa casa, onde se mantêm até ao último dia de gravação e, pelos vistos, as coisas não parecem estar a correr bem.

Viktoriia, de 30 anos, de origem ucraniana, acusou o colega Pedro de enviar mensagens escritas, via telemóvel, com convites às colegas do programa para “pinar”. Ljubomir nem queria acreditar no que estava a ouvir e acabou por felicitar a coragem da concorrente, por revelar tais factos e conseguir “resolver os problemas da equipa”.

A concorrente Olga, de 41 anos, confirmou que recebeu mensagens de Pedro: “Eu fui a primeira a receber mensagens e piropos e… basta ser mulher!“. Já Pedro, de 34 anos, justificou-se para as câmaras: “Essa é boa. De vez em quando nós bebemos álcool, né? E um gajo está sozinho. E elas também são solteiras“, disse, justificando os convites que fez às colegas.
 
As polémicas em torno dos programas de Stanisic A questão que se coloca é: como reagir a isso? Não houve queixas a propósito da situação? “Relativamente à segunda temporada do programa Hell’s Kitchen, emitido na SIC, a ERC – Entidade Reguladora para a Comunicação esclarece que, até ao momento, não recebeu qualquer participação”, admitiu a Entidade ao i.

Apesar disso, sabe-se que a anterior temporada começou igualmente com polémica e uma queixa, quando um dos concorrentes admitiu um passado ligado às drogas e o chef – apesar de o ter apoiado – afirmou que este era “um gajo de altos e baixos, que ri e chora e que já tido namoradas menos complicadas”.

Nessa altura, a associação feminista União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) acusou o chef de proferir comentários “discriminatórios” e de perpetuar “estereótipos de género”. E, um estudo publicado no ano passado pela socióloga Ellen T. Meiser, estabeleceu precisamente a ligação entre a violência verbal e comportamental que vemos nos reality shows de aprendizes de culinária com o que acaba por acontecer nas cozinhas reais. 

O Bureau of Labor Statistics estima que existam 2,53 milhões de cozinheiros e chefs nos EUA. Desses, um em cada quatro relata ter sofrido violência física no local de trabalho – aproximadamente 632 500 vítimas. Segundo a investigação, embora chocante, esse número “não leva em conta a violência psicológica e sexual que também assola as cozinhas comerciais”. Além disso, o assédio e o bullying no local de trabalho não se limitam aos EUA e foram documentados ainda, segundo o estudo, em cozinhas escocesas, inglesas, escandinavas, francesas, malaias, coreanas e australianas.

Usando dados de 50 entrevistas em profundidade com trabalhadores de cozinha, a investigação mostra que, “embora a violência no local de trabalho na cozinha possa ser atribuída a causas típicas, como stress ocupacional, há uma fonte negligenciada: a normalização da violência através dos meios de comunicação”.

Ao explorar programas de televisão, como Hell’s Kitchen ou Bourdain’s Kitchen Confidential, os leitores acabam por ver bullying e o assédio romantizados, “glorificados como produto da subcultura da cozinha e, consequentemente, normalizados na cozinha”.

Não será motivo para preocupação? Na emissão de 23 de janeiro, os concorrentes partilharam alguns pormenores das suas vidas privadas e, entre os testemunhos, esteve a história de Pedro Coelho (acusado agora de assédio). O candidato revelou que teve de ultrapassar o divórcio dos pais e que tem um passado marcado por violência.

Na sequência do desabafo, Ljubomir Stanisic sugeriu que Pedro lê-se um livro de Inteligência Emocional, dando-lhe com ele na cabeça. Depressa surgiram as críticas dos internautas: “Como é que isto passa na televisão? Humilhação para todo o país ver”, escreveu um. “Como é que ainda se investe em programas com uma moral tão baixa?”, interrogou outro.

Apesar de muitos acreditarem que as atitudes mais “exageradas” de Ljubomir Stanisic possam ser “encenadas” propositadamente para o formato que cumpre este linha tanto em Portugal como no estrangeiro, a que ponto é que deveríamos perpetuar comportamentos que, segundo os estudos, são perigosos para a forma como nos relacionamos?

“Acredito que isto seja tudo encenado. O problema é como é que será a realidade das cozinhas porque devem existir montes de ‘chefes’ que são um verdadeiro demónio para quem os escravos têm que trabalhar, só mesmo quem lá está e que pode falar”, acredita um outro internauta. 

Além disso, duas outras concorrentes, Catarina e Olga, que já afirmaram diversas vezes ao longo da temporada “não se identificarem uma com a outra”, entraram em conflito na cozinha, escalando o tom para ameaças. “Sai daqui! Vai fazer serviço, não tens o teu trabalho para fazer. Já não te posso ouvir”, disse Catarina ao perceber que Olga vinha em sua direção depois desta se ter retirado do serviço para “respirar”. Entraram então num ataque mútuo e, numa das vezes, Olga chegou mesmo a confessar: “Eu não vou perder as estribeiras porque se eu tiver que perder as estribeiras, a GNR tem de me vir buscar ou a PSP para me levar presa porque eu prego-lhe um par de estalos e desmancho-a toda”.

Publicitar a pornografia Aliada à preocupação com a “normalização da violência”, está também, muitas vezes a preocupação com a publicidade alusiva à prostituição, feita por vários meios de comunicação. Em 2010, a ERC concluía que os “Anúncios de alegada promoção de prostituição nos classificados de várias publicações periódicas de imprensa” eram uma “matéria complexa”.

Hoje, interrogada sobre o facto de meios de comunicação fazerem alegadamente publicidade alusiva à prostituição e de estarmos ou não diante de um crime de lenocínio, a Entidade Reguladora da Comunicação Social recordou o i que, em 20 de outubro de 2021, emitiu a Deliberação ERC/2021/306 (OUT-I), a respeito de uma participação anónima recebida contra os jornais Correio da Manhã e Record, por alegada “promoção da atividade de prostituição em anúncios diários”.

Nessa pronúncia, a Entidade esclareceu que “não tem competência em matéria criminal e que sempre que no decurso da sua atividade encontra indícios da prática de um crime dá conhecimento dos mesmos à entidade competente para a sua investigação”.

Na deliberação, o Participante referia que o n.º 1 do artigo 170.º do Código Penal pune – com prisão de 6 meses a 5 anos – quem, “profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição ou de atos sexuais de relevo” e que o Tribunal Constitucional tem defendido “que a prostituição supõe sempre uma exploração contrária à dignidade da pessoa humana”.

Segundo o mesmo, “dia após dia, ano após ano, constata-se que as edições diárias dos dois jornais do Grupo Cofina incluem abertamente e com fotografias ilustrativas de anúncios de promoção de serviços sexuais, sendo a sua inserção no corpo dos órgãos de comunicação social objeto de pagamento de acordo com tabela comercial de publicidade”. O participante solicitou por isso “a abertura de um processo de avaliação da violação diária do artigo 170.º, n.º 1 do Código Penal – lenocínio simples – pelas edições dos órgãos de comunicação social em questão”.

A análise detalhada acabou por concluir que “as imagens presentes nos anúncios representam na sua esmagadora maioria mulheres (e alguns homens) em poses sensuais ou com motivos sexuais, de lingerie ou com outras roupas de cariz sensual e intimista”. Por isso, lê-se na deliberação, “não se traduzem propriamente em imagens pornográficas, mas sim em imagens erotizadas ou sexualizadas”.

Contudo, a análise do discurso dos anúncios e dos sites de internet referidos nos mesmos (promotores) permitiu identificar “fortes indícios da existência de organizações envolvidas na promoção de serviços sexuais por via do pequeno anúncio”, pelo que o Conselho Regulador da ERC decidiu “dar conhecimento à PGR da presente deliberação e do relatório, para os efeitos tidos por convenientes”, dada a sua falta de competência em matéria criminal.

Por sua vez, a PGR não remeteu à ERC o resultado da sua análise aos factos e o Conselho Regulador deliberou pelo arquivamento do processo. Refira-se que não são só os jornais da Cofina que publicitam os tais anúncios, pois o JN também o faz, além dos jornais regionais. 

“A prostituição não é ilegal em Portugal, embora não esteja regulamentada. Por exemplo, não existe um código de atividade económica para efeitos fiscais e de pagamento de contribuições”, explicou ao i uma jurista que preferiu manter o anonimato. “O que está proibido é a exploração da prostituição – o lenocínio –, que constitui crime, isto é, proíbe-se que alguém obtenha vantagem com a atividade de prostituição”, acrescentou.

De acordo com a mesma, existe atualmente um movimento mesmo europeu no sentido da ilegalização da prostituição “por entenderem que é contrária à dignidade da pessoa humana e, particularmente, da mulher”, embora haja quem contrarie este argumento “invocando a liberdade individual para decidir a sua vida”.