Formalismos, trapalhadas e males maiores

O PR deu mais um mau exemplo ao precipitar-se na indigitação de António Costa. Como se já não bastassem os atropelos à Constituição durante a pandemia

Nos últimos tempos, o Tribunal Constitucional declarou inconstitucionais as ordens de confinamento preventivo de estudantes sem testagem positiva estando em vigor o estado de calamidade (e já não o de emergência) e, nesta semana, decidiu também determinar a repetição do ato eleitoral nas assembleias de voto do círculo eleitoral da Europa em que foram detetadas ilegalidades.

Quanto aos estudantes ilegitimamente obrigados a confinamento, a declaração de inconstitucionalidade não chegou a tempo de produzir qualquer efeito útil nos casos concretos dos reclamantes, nem para eles nem para outros em situação similar – uma vez que a partir do Conselho de Ministros desta semana apenas os cidadãos que testarem positivo terão de ficar em isolamento. Que sirva, ao menos, para o futuro.

Já quanto aos votos dos emigrantes, a decisão, por unanimidade, foi célere e plenamente eficaz: independentemente das responsabilidades a apurar, os votos dos cidadãos residentes além fronteiras não podem nem serem deitados para o lixo nem serem considerados devidamente validados se não cumprirem todos os requisitos legais – e, consequentemente, o processo eleitoral, face às ilegalidades verificadas, tem de ser repetido.

Em todos estes casos, os juízes conselheiros do TC foram fieis aos formalismos constitucionais e legais, grosseiramente desrespeitados pelos principais órgãos de soberania e pelos líderes políticos nacionais. Sem uma única exceção.

A pretexto da pandemia, também os direitos, liberdades e garantias fundamentais foram por diversas vezes negados e violados pelos vários poderes – e em particular pelo poder Executivo, com o beneplácito do Presidente da República e da Assembleia da República e sem que nem um dos partidos aí representados (tirando vozes isoladas dentro dos dois mais votados e de alternância no poder) reagisse contra esses flagrantes excessos.

Para a classe política e poderes dominantes, passou a ser normal fazer letra morta da Constituição face ao superior interesse da Saúde Pública e à necessidade de ganhar a guerra contra a covid-19.

E a normalidade de tratar a Constituição com os pés rapidamente foi extensível à lei, conduzindo a situações tão estapafúrdias como a dos votos dos emigrantes que acabaram no lixo ou a mistura de votos regulares com votos irregulares. 

Já para não falar de outras situações igualmente anómalas, como a do ministro que se afirmou mero passageiro no seu carro oficial ou a de ainda hoje haver ministros em funções que estão em investigação há anos e inclusivamente fizeram com que o primeiro-ministro fosse apanhado em escutas que constam dos autos do inquérito.

Será tudo isto mesmo normal?

É tão normal como a PJ exibir fotografias da detenção de um arguido em pijama ou de objetos arrestados na casa onde a mulher daquele está em prisão domiciliária e das respetivas divisões despojadas de decoração ou mobília. Arbitrariedades desprovidas de humanismo e completamente desajustadas da racionalidade e razoabilidade do legislador.

E é tão normal como o Presidente da República, cujo juramento é cumprir e fazer cumprir a Lei Fundamental – acrescendo o facto de se tratar de um dos mais insignes professores de Direito Constitucional da Nação – apressar-se a indigitar o líder do partido vencedor das eleições legislativas e a convidá-lo a formar Governo sem esperar sequer pela contagem dos votos dos emigrantes, uma vez que ainda não fora feito o escrutínio dos círculos eleitorais da Europa e de Fora da Europa.

É verdade que os votos dos círculos distritais de Portugal Continental e das ilhas da Madeira e dos Açores foram suficientes para confirmar a maioria absoluta do PS no futuro hemiciclo parlamentar.

Mas, ao antecipar-se ao apuramento dos votos dos emigrantes para indigitar António Costa, o Presidente Marcelo foi o primeiro a menosprezar ou a desprezar todos aqueles que, residindo no estrangeiro, fizeram questão em participar ativamente na vida política do país.

E não se ganhou absolutamente nada com isso. Nem ganharia, já que o simples facto de antecipar a indigitação nunca permitiria encurtar prazos para a tomada de posse do Parlamento, que só pode ocorrer após a publicação dos resultados oficiais, nem para a posterior tomada de posse do novo Governo.

Ao fazê-lo, o Presidente deu apenas mais um mau exemplo. Que foi seguido pelos líderes partidários, pelo Governo e pela CNE no tratamento que deram aos votos do círculo eleitoral da Europa.

A Constituição está manifestamente desajustada destes novos tempos, é demasiado programática e garantística.

Tudo isso já se sabe e desde há muito.

Mas não pode passar-se, sem mais, para o polo oposto. 

Dá azo a arbitrariedades e discricionariedades inaceitáveis em Estados de direito democráticos.

E o Presidente tem de ser o primeiro a impor um travão. Sobretudo quando há maioria absoluta no Parlamento.