Ucrânia à beira de uma guerra

A Rússia avança com a ‘maior mobilização de tropas desde a II Guerra Mundial’, enquanto Donetsk é evacuada.

Ucrânia à beira de uma guerra

Se os últimos meses foram de tensão na Ucrânia, nos últimos dias assistimos a um contagem decrescente para a guerra. Mulheres, crianças e velhos estão a ser retirados de Donetsk pelos separatistas russos, enquanto os homens em idade militar foram proibidos de sair da região, prontos para serem lançados na linha da frente a qualquer momento.

O anúncio surge após o recomeço de bombardeamentos, que atingiriam um infantário ucraniano na quinta-feira, um dia antes de começarem a circular imagens de veículo a arder à frente do centro administrativo de Donetsk, resultado de uma bomba colocada no jipe de um líder separatista, escreveu a agência estatal russa TASS. Já na imprensa ocidental – entre alertas da Casa Branca, que denunciou que as tropas russas na fronteira passaram de cem mil para 190 mil, na «maior mobilização de tropas desde a II Guerra Mundial» – multiplicam-se os avisos. Será este o ‘ataque de falsa bandeira’, o pretexto para uma invasão, que a Casa Branca há tanto tempo acusa Vladimir Putin de querer fabricar?
«Temos que ser muito cautelosos nas leituras que fazemos», apela Licínia Simão, investigadora do Centro de Estudos Sociais (CES) e docente de Relações de Internacionais na Universidade de Coimbra. «Importa não perdermos de vista que a opinião pública ocidental, a imprensa e os analistas também fazem parte deste jogo», 

No entanto, «há um risco real» de uma escalada, admite a investigadora. Lembrando que no arsenal da política externa do Kremlin, «o recurso a atividades militares é equacionado de uma forma que nós no Ocidente já não equacionamos da mesma maneira».

Já Alexandre Guerreiro é perentório. «Há uma provável hipótese de escalar para guerra», frisa estes investigador de Segurança Internacional e antigo oficial do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED), horas após Denis Pushilin, líder da autoproclamada República Popular de Donetsk, ir ao canal Rossiya 24 proclamar que «infelizmente» estamos perante uma guerra. 

«No momento em que temos o líder de uma das milícias a fazer uma afirmação dessas, naturalmente tem significado», salienta Guerreiro, regressado há dias de uma conferência sobre direito internacional em Moscovo, onde se cruzou com vários conselheiros do Kremlin. E o tema mais recorrente nas conversas era a intervenção da NATO no Kosovo.
Nesse conflito, quando os albaneses começaram a ser massacrados – o Kremlin têm traçado um paralelo entre estes e os russos do leste da Ucrânia, chegando o próprio Putin a falar num «genocídio» – a NATO varreu Belgrado com bombas, em 1994, voando acima da altitude alcançada pelas armas antiaéreas sérvias, numa campanha quase sem baixas.

Talvez sejam essas as tais «medidas militares-técnicas» que Moscovo ameaçou utilizar, numa carta dirigida à embaixada americana, esta quinta-feira, caso as suas exigências – que a NATO se comprometa a nunca aceitar a Ucrânia como Estado membro e retirar as suas tropas da Bulgária e Roménia – sejam ignoradas.

«Querem evitar que se repita o que aconteceu na Bósnia e no Kosovo, onde civis acabavam por ser vítimas», descreve o antigo espião português. Os russos estão dispostos a invocar «algum dever de proteção daquela população», com o Kremlin a aproveitar o precedente estabelecido no Kosovo, de que um território poderia declarar sucessão com o motivo de que as minorias não estariam protegidas. E, como tal, a «mobilizar os militares para aquela região de Donbass para permitir que possa haver um referendo, para que as pessoas decidam se querem ser independentes», descreve Guerreiro. 

«O que aconteceu na anexação da Crimeia foi exatamente a utilização desses argumentos, quando não era verdade», rebate Simão. «Sabemos isso hoje. Que base sólida de credibilidade é que tem a Federação Russa, sem haver quaisquer provas vindas de organizações internacionais? Ninguém consegue entrar naqueles territórios. Vamos acreditar na Federação Russa?», questiona a investigador do CES. «Há muitas coisas a criticar no Governo ucraniano. E se calhar podemos conversar sobre isso, mas quando esta crise passar». 

«Seja qual for a decisão que Moscovo venha a tomar em relação aos territórios no leste da Ucrânia – seja de os reconhecer, integrá-los na Federação Russa, ou continuar a insistir para que tenham mais autonomia – tem um objetivo. Que é diminuir a capacidade do Estado ucraniano, criando dificuldades, e através disso impedir que a Ucrânia adira à NATO», garante. «A NATO não se quer meter com países que têm este tipo de complicações e vulnerabilidades. E os russos sabem perfeitamente disso». 

Russos em defesa de Donbass
Seja como for, é muito difícil imaginar que uma intervenção russa mais direta em Donbass não signifique uma guerra com Kiev. Ou que não haja um elevado risco de que o Kremlin aproveite para se apropriar de alguns territórios extra, como Mariupol.

Esta cidade, que tem menos de meio milhão de habitantes, e fica a apenas 15km da linha da frente, é apontada como um dos alvos mais prováveis de uma eventual invasão russa – poderia muito facilmente ser cercada por via marítima, com o apoio de forças navais no mar de Azov. E, sendo um dos grandes polos industriais da Ucrânia, muito graças à metalurgia Illich, poderia tornar a criação de um Estado no leste mais viável, caso caísse nas mãos dos separatistas russos. 

O que não dá para deixar de reparar é que a escalada na sexta-feira bate exatamente no período que analistas apontavam como o crucial para uma invasão da Ucrânia pela Rússia. Os exercícios militares russos na Bielorrússia, vistos como um pretexto para Moscovo ter tropas às portas de Kiev, acabam já este domingo. Nesse dia acabam os Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim – Putin precisará do apoio da China para enfrentar sanções dos países-membros da NATO, e todos concordam que não quereria estragar a festa do seu amigo Xi Jinping, sendo de recordar que o Kremlin esperou até ao final dos Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi, em 2014, para anexar a Crimeia – e umas semanas depois acaba o inverno.

É que, ao avançar das estepes russas para a Ucrânia, a grande dificuldade são sobretudo os pântanos e rios, dificultando a mobilidade. No inverno o solo mais pantanoso congela, endurecendo, o que facilitaria o avanço de blindados russos, e na primavera «o degelo torna vales em riachos, e riachos em rios», salientou Kirill Mikhailov, do Conflict Intelligence Team, ao Washington Post. «Se tiveres de levar a cabo uma operação, deverá acontecer em janeiro ou em fevereiro».