Charlie Chaplin. A verdade sombria por trás do génio da comédia

Os seus filmes dão-nos a impressão de que o conhecemos e que facilmente nos identificaríamos com ele. A verdade é que, até agora, o seu passado esteve na sombra dos seus personagens. Um novo documentário, ‘O verdadeiro Charlie Chaplin”, vem “tirar-lhe o bigode” e, talvez, “destruir” a imagem que todos criámos e admirámos.

“O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém, perdemo-nos. A ganância envenenou a alma dos homens, criou uma barreira de ódio e guiou-nos no caminho do assassinato e do sofrimento. Desenvolvemo-nos a uma grande velocidade, mas fechámo-nos a nós mesmos. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado na penúria. Os nossos conhecimentos fizeram de nós cínicos. A nossa inteligência, cruéis e severos…. Pensamos em demasia e sentimos muito pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de carinho e bondade. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo estará perdido”, dizia Hynckel (uma paródia de Hitler) no Discurso Final do O Grande Ditador, de 1940.

A personagem interpretada por Chaplin dizia também no filme que “não queria ser imperador”. Mas afinal o que queria ser, ou o que era, o artista que tem um dos rostos mais conhecidos do mundo? Para onde “caminhava”?

Quarenta e quatro anos depois da sua morte, ainda é difícil responder a estas perguntas. Sabemos que foi uma das estrelas mais famosas e amadas de Hollywood até à sua escandalosa queda em desgraça. Ao longo da vida, a sua persona no “palco” e o retrato incendiário dos media definiram a maneira como o mundo o compreendia, mas a sua vida privada esteve sempre escondida por trás do eyeliner carregado que caracterizava o personagem que criou. Agora, talvez estejamos mais perto das respostas… Gravações nunca antes ouvidas, filmes caseiros íntimos e filmes clássicos recém-restaurados revelam um lado de Chaplin que o mundo nunca viu. Narrado “suavemente” pela atriz Pearl Mackie, conhecida pela sua participação na série televisiva de ficção científica, Doctor Who, The Real Charlie Chaplin, em português O Verdadeiro Charlie Chaplin, o novo documentário sobre a vida do artista, estreou no dia 18 de Fevereiro após sua passagem pelo Festival de Londres. E apesar de também estar cheio de perguntas, como “quem é ele?”, “porque é que nos filmes O Vagabundo, passa tanto tempo olhando-nos diretamente pelas lentes?”, “o que significa para nós o palhaço de bigode conhecido e amado em todo o mundo, que cresceu fora do circuito de Vaudeville e interpretou o homem comum numa época de conflitos económicos?”, os realizadores Peter Middleton e James Spinney propuseram-se a tentar responder-lhes e a partilhar a história que nos mostrará a “impossibilidade de conciliar o seu lado problemático com a empolgante inocência vista na telas”. “Aproveita qualquer Charlie Chaplin que tiveres a sorte de encontrar, mas não tentes ligá-lo a qualquer coisa que possas entender. Há muitos!”, lê-se numa citação do escritor Max Eastman, no início do documentário. Ou seja, não importava a maneira com que o conheciam, qual das personas teriam oportunidade de encontrar, ou se conheciam o seu trabalho ao pormenor ou não… O rosto sem bigode de Chaplin, foi sempre, ao longo da vida, emocionantemente “nu” e “estranho”.

O enredo O Verdadeiro Charlie Chaplin começa com a infância pobre do ator no sul de Londres, segue as suas primeiras “façanhas” no palco do music hall e a sua mudança para os EUA, em 1910, aos 21 anos. Desdobra-se depois em algumas das suas produções, até que “mergulha” na sua queda, estimulada por um escandaloso processo de paternidade e um rancor mútuo contra ele partilhado pelo diretor do FBI, J. Edgar Hoover, que espiou o artista por supostas simpatias comunistas e o descreveu como “bolchevique de salão de Hollywood”, e a colunista de fofocas Hedda Hopper, considerada o pesadelo das estrelas. Em 1952, Chaplin foi banido dos EUA, vivendo os seus últimos anos na Suíça com a sua quarta mulher, Oona O’Neill (o casal casou-se quando esta tinha 18 anos e o ator 54), com quem teve oito filhos. O documentário inclui uma entrevista inédita em áudio gravada em 1983, por uma amiga de infância do ator, Effie Wisdom, que foi descoberta pelo historiador Kevin Brownlow. Como introdução à vida de Chaplin, fotografias, cinejornais e clipes de filmes foram montados por Wes Anderson, enquanto as entrevistas são reproduzidas em “reconstruções dramáticas e sincronizadas”.

O jornal britânico Daily Mail noticiou algumas das partes mais polémicas do documentário, nomeadamente as declarações de alguns seus 11 filhos. O documentário lembra que Chaplin foi casado quatro vezes e protagonizou boatos de affairs com mais de duas mil mulheres, várias delas menores de idade.“Eu era meio apavorado pelo meu pai”, diz no filme o ator Michael Chaplin, agora com 75 anos, fruto do último casamento do astro do cinema mudo. “Ele era tão poderoso… Tu não podias contrariá-lo, porque ele nunca estava errado!”, revelou.

Já Geraldine Chaplin sublinha: “O meu pai não era o Charlie Chaplin. Eu sabia que eles eram a mesma pessoa, mas eles não tinham nada em comum – a menos que ele tivesse público, aí tornava-se o Charlie Chaplin, uma outra pessoa”. Por sua vez, a atriz Jane Cecil Chaplin lembra também que passou boa parte da sua juventude a desejar apenas uma conversa a sós com o pai: “Eu cresci com o ícone, mas o homem? Não fazia ideia de quem era o homem!”, admite na longa metragem.

Segundo a imprensa internacional, grande parte do documentário é ainda focada nos vários relacionamentos de Chaplin com mulheres jovens, muito mais novas do que ele. A produção lembra que o primeiro casamento do ator foi com a atriz Mildred Harris, em 1918, quando ele tinha 29 anos e ela apenas 16. Quando os dois se separaram, em 1920, ela acusou-o de “violência psicológica”. O segundo casamento dele foi com a atriz Lita Grey – que com ele contracenou no inesquecível filme The Kid – em 1924, quando ela tinha 15 anos e ele 35. Os dois tiveram dois filhos. O término da relação em 1927 resultou num dos maiores acordos de divórcio da época, girando em torno de 267 milhões de dólares, o equivalente a 235 milhões de euros. Grey acusou o ex de “crueldade” e “abuso sexual”, enquanto o ator a apodou de “chantagista”.

Em 1936, Chaplin casou-se com a modelo Paulette Goddard, que tinha 17 anos quando os dois se conheceram. Os dois acabaram por separar-se em 1942, com ele a voltar a casar-se no ano seguinte com Oona O’Neill.

A singularidade do artista Para Spinney e o co-realizador Peter Middleton, a perspetiva de obter uma nova visão sobre os aspetos de si mesmo que Chaplin se esforçou para esconder era “intrigante de mais para deixar passar”: “Desde o início sabíamos que não existe uma versão sólida, estável e confiável de quem era Charlie Chaplin”, admitiram os realizadores numa entrevista ao jornal britânico The Guardian. “Ele era um camaleão perfeito e projetou-se sempre naquilo que as pessoas esperavam dele. Não se dava a conhecer, estava sempre a representar”, explicaram.

“Lembro-me, mesmo quando era criança, de ter uma imagem de Charlie Chaplin na minha cabeça”, admitiu Spinney. “Como a maioria das pessoas, o “traje” era conhecido por mim. Vimos esses filmes com muitos preconceitos! Ele é emblemático num estilo inicial de desenho animado de comédia cinematográfica, palhaçada, filmes exibidos na velocidade errada”, continuou. Segundo o mesmo, agora em adulto, revisitando isso, ficou “impressionado”. “O mundo inteiro tem uma ideia sobre Chaplin, mas as pessoas que melhor o conheciam achavam que era difícil criar uma ligação com ele!”, acrescentou.

A verdade é que Chaplin odiava entrevistas e raramente falava sobre si mesmo. Em 1966, durante seu derradeiro exílio dourado na Suíça, aos 77 anos, concordou em conversar durante três dias com o famoso jornalista Richard Meryman para a revista Life. Essa gravação estava nos arquivos do British Film Institute e pôde ser resgatada pelos cineastas após um ano de negociação com a família do artista. “A minha mãe, Hannah, passou anos num manicómio. Embora no final da vida tenha visto os seus filhos a terem sucesso e isso lhe tenha devolvido um pouco de saúde mental”, lembrou Chaplin, filho de dois artistas de music hall endividados que se separaram quando este tinha três anos e o enviaram para o hospício Lambeth Workhouse aos sete – situação da qual conseguiu depois “escapar” pela sua inclinação natural para o palco.

“Há mais de 700 livros escritos sobre Chaplin. Agora é como se ouvíssemos a sua memória condensada, se entendêssemos de onde vinha a sua profunda tristeza e pudéssemos finalmente entender melhor o seu lado sombrio”, elucidaram os realizadores. “Chaplin canaliza todas as neuroses e humilhações da sua infância no Vagabundo e continua ao longo da sua vida a reencenar as suas experiências traumáticas”, acrescenta Spinney. “Esse personagem também o transformou no ator mais bem pago do planeta e numa das pessoas mais famosas da história. É quase como um conto de fadas. A sua determinação em continuar a ‘viajar’ para dentro – a sensação de introspeção com que ele construiu a sua arte – foi o que tornou essa estrutura possível. Ele nunca descansou sobre os louros”, defendeu. “Há uma forma na sua vida que se sincroniza perfeitamente com a cronologia dos seus filmes e tivemos sorte por isso. Mas, ao mesmo tempo, não queríamos estar ligados a isso de forma alguma”, sublinhou ainda Middleton.

O documentário também argumenta de forma convincente que o seu famoso discurso final no grande filme, O Grande Ditador – um desafio direto aos objetivos de Adolf Hitler e do partido nazi – plantou a semente da sua queda. Nele, Chaplin faz um discurso apaixonado pedindo democracia e compreensão humana. Não sabia ele que o discurso chegaria mesmo ao líder do Terceiro Reich, como acabaria por contribuir para que o ator e cineasta acabasse por ter de abandonar os EUA.

Em 1977, pouco mais de dois meses depois da morte de Chaplin na sua mansão de Manoir le Ban, à beira do Lago Genebra, o caixão com o corpo do comediante desapareceu. Um jovem refugiado polaco, Wardas, de 24 anos, juntamente com Gantscho Ganev, um búlgaro de 38 anos, desenterrou o corpo e exigiu a Oona, a viúva, um resgate de 600 mil dólares. Recuperado o cadáver pelas autoridades, Chaplin foi de novo sepultado, desta vez num túmulo de betão, para evitar novas profanações. Um final macabro para o genial comediante cuja vida, afinal, está repleta de zonas de sombra e de enigmas.