Ajax-SLB. Neve a vermelho

A 12 de fevereiro de 1969, as duas equipas enfrentaram-se pela primeira vez, em Amesterdão. Toni esteve lá e conta como foi.

Mário Zambujal, um dos jornalistas de escrita imarcescível, estava em Amesterdão no dia 12 de fevereiro de 1969, data do primeiro Ajax-Benfica para as taças europeias, logo a mais importante de todas, claro, a velha Taça dos Clubes Campeões Europeus. Titulou: «Gatos vermelhos em campo de neve», piscando o olho a Erico Veríssimo. E em seguida partiu para um elogio sentido: «Em muitos países da Europa, alguns milhões de telespetadores terão assistido, com surpresa, a uma atuação ao nível das melhores de sempre do Benfica na Taça dos Campeões Europeus!».

Fora um vendaval!

Vendaval sobre a brancura de um campo coberto de neve. A brancura imaculada da perfeição.

Na véspera, o jogo esteve em causa. Jogar-se-á ou não, tanta é a neve que cobre o país e a cidade? Um céu cinzento-negro que não prometia nada de bom. A temperatura rondava entre os 0 e os 2.º positivos, se continuasse a nevar como até aí, o relvado ficaria absolutamente impraticável. À noite, a meteorologia resolveu fazer das suas: o frio apertou, a neve acumulou-se no Estádio Olímpico de Amesterdão.

No dia 12 de fevereiro de 1969, António da Conceição Oliveira (por extenso Toni) também estava em Amesterdão. Se houvesse jogo, formaria com Coluna e Jaime Graça o trio do meio-campo. «Olha, é curioso», diz. «Eu nunca tinha visto neve na vida. O Otto Glória, precavido, quis que viajássemos no domingo para podermos estar mais tempo em contacto com a realidade em que o jogo se disputaria».

Sim, porque, afinal, o Ajax-Benfica, a contar para a primeira mão dos quartos-de-final da Taça dos Campeões, começou precisamente às 20h15 do dia predeterminado. A manhã acordou seca, os tratadores da relva, incansáveis, afastaram a maior quantidade de neve que puderam para trás das duas balizas, criando montes brancos estranhos, os riscos do campo foram traçados a amarelo e o árbitro, o escocês Bobby Davidson decidiu que se jogaria com uma bola vermelha. De resto, o Ajax equipou de azul e o Benfica orgulhosamente de encarnado 

E foi uma das noites europeias mais brilhantes da história do Benfica!

‘Não estávamos 

em grande forma’ (Toni)

«Se há algo que me lembro, além da neve, que na rua chegava a atingir um metro de altura, foi que passámos dois dias numa terra próxima de Amesterdão, Wageningen, e depois, no dia antes do jogo, instalámo-nos no Hotel Krasnapolski, mesmo no centro de Amesterdão. Estranhamente, não estávamos numa fase muito boa. Acabámos por ganhar o campeonato, numa luta até ao fim com o FC Porto, mas não era, decididamente a melhor altura para defrontar o Ajax. Acabámos por fazer uma exibição de ouro!».

Era aqui que eu queria chegar: o Benfica desmanchou por completo o Ajax no seu próprio estádio. Rinus Michels, o General, uma figura imponente que vim, mais tarde, a conhecer bem, já como selecionador da Holanda campeã da Europa, viera a Lisboa espiolhar um jogo do Benfica e ficara muito mal impressionado: «Vi uma equipa medíocre que nós iremos eliminar com facilidade». Enganou-se.

Seria um daqueles momentos inesquecíveis, irrepetíveis.

A neve caindo do céu holandês.

Ajax, 1 – Benfica, 3.

Mário Zambujal: «O Ajax todo – jogadores, técnico, público – teve a primeira surpresa. Logo aos 3 minutos, Torres esteve quase a marcar e não tardou mais dois para que Toni bombardeasse a barra com um admirável remate». Admirável: bom adjetivo para esse Benfica.

«O ataque português penetrava na defesa adversária com segurança mercê da sua superioridade num capítulo que é ainda muito importante: esse de saber jogar bem a bola. Simões, Eusébio, Torres, Graça, Toni, desataram a mostrar logo de entrada que fosse qual fosse o desfecho do jogo, eram eles que formavam a única grande equipa em campo».

Primeiro golo do Benfica: penálti cometido sobre Simões que corria solto para a baliza holandesa.

Marca Eusébio? Não marca?

Não marca: marca Jacinto. Eusébio: «Estava nervoso. Confesso que fiquei com medo de falhar e fui á linha lateral dizer isso ao senhor Otto Glória». Jacinto: «O Eusébio disse-me – vai lá tu! Nunca tinha marcado um penálti na neve. Mas estava calmo. Saiu bem».

Meia-hora passada.

Eusébio desferira um dos seus pontapés mágicos num livre direto. Bals, o guarda-redes do Ajax também foi mágico.

Torres cabeceou à barra.

Depois roubou a bola a um adversário e vai de abalada até à baliza adversária, até ao golo.

Os holandês perdem as estribeiras. Caçam os jogadores portugueses como se fossem ratazanas. Simões sai a coxear, entra José Augusto: «Fui carregado com brutalidade no lance do penálti. Estou com muitas dores. De certeza que não vou conseguir jogar no domingo». Mais queixas. Raul: «Gelei por completo! Queria correr e não podia. Estava paralisado. Não sei o que aconteceria se estivesse mais tempo em campo».

Veio o intervalo e um Ajax para melhor na segunda parte. O sueco Danielsen fuzilou José Henrique. Zé Gato acabou o jogo com o tronco ligado, cheio de dores: «Os avançados do Ajax são muito fortes e não poupam os guarda-redes. Junto à baliza, o chão estava duro como ferro por causa do gelo. Cada vez que me atirava era um sacrifício».

Danielsen: «A vitória do Benfica foi justíssima. Enfim, pode ser que ganhemos em Lisboa». Ganharam.

O 3-1 derradeiro foi um clássico: canto de Eusébio, Torres de cabeça para o remate de José Augusto. Rinus Michels, engolia: «O Benfica surpreendeu-me. Fui ver alguns jogos a Portugal e hoje jogou infinitamente melhor do que aquilo que tinha observado». 

Parece que ninguém ouviu. Cruyff apagou a Luz. Toni: «Na segunda mão, havia aquela emoção à Benfica. o Otto dizia-nos: ‘A gente vai esmagar esses caras’. Esquecemo-nos de um menino que se chamava Cruyff. Foi enorme, em Lisboa!».

1-3 em Lisboa; 0-3 no desempate em Paris, após prolongamento.

Mas nada nunca apagará essa noite de Fevereiro e a brancura da neve a medir-se com a brancura de uma exibição inolvidável.