“Le Violon d’Ingres” de Man Ray pode bater recorde em leilão

A foto, intitulada Le Violon d’Ingres, foi tirada em 1924 pelo artista surrealista Man Ray e deve atingir entre cinco e sete milhões de dólares, o equivalente a 4,4 e 6,2 milhões de euros num leilão em maio.

«A natureza não cria obras de arte. Somos nós, e a faculdade da interpretação peculiar à mente humana, que as criamos», defendia Man Ray (1890-1976), fotógrafo, pintor e cineasta norte-americano e um dos mais destacados artistas do Dadaísmo e do Surrealismo – movimentos de vanguarda surgidos na França no século XX. Ray foi mesmo o primeiro artista cujas imagens eram mais valiosas para os colecionadores do que o seu próprio «trabalho artístico». Graças a isso, este deu uma «contribuição significativa para a avaliação da fotografia como uma forma de arte».

E agora, 46 anos depois da sua morte, este continua a relembrar-nos da sua «genialidade», já que a sua famosa foto Le Violon d’Ingres, está prestes a «fazer história» como a fotografia mais cara já vendida em leilão. A impressão original da obra-prima deve atingir entre cinco e sete milhões de dólares, o equivalente a 4,4 e 6,2 milhões de euros, quando for leiloada na leiloeira Christie’s, em maio. 

A intenção de Ray 

A imagem, tirada a preto e branco em 1924, transforma as costas nuas da amante de Ray, Kiki de Montparnasse, num violino e faz referência às duas aberturas do instrumento em forma de «f» e «f» invertidos que o fotógrafo desenhou. Assim, o artista esperava «oferecer» a este corpo nu feminino «uma intensidade erótica especial», comparando-o ao corpo sonoro de um violino. O título da fotografia é traduzido como «Ingres violino», e é uma expressão idiomática francesa amplamente usada que significa hobby, paixão ou habilidade secundária.

Esta invoca o nome de Jean-August Dominique Ingres, artista do século XIX, que desejava ser mais conhecido por tocar violino, em vez de pintar. Por outro lado, o título também pode ser uma referência de Ray ao fato de sentir que Prin era o seu «violon d’Ingres pessoal». 

Foi em Paris, em 1924, que Man Ray fotografou a sua amante e companheira, de seu nome verdadeiro Alice Prin, que acabou por se tornar uma das modelos mais famosas do século XX. Inspirado na pintura La Grande Baigneuse de Jean Auguste Dominique Ingres, Ray pintou os «orifícios» de som do violino nas costas de Prin de forma a transformar o seu corpo «em algo semelhante a um instrumento musical de cordas».

Mas na verdade, os «f’s», não foram pintados nas costas da amante do artista, foram sim pintados numa impressão do retrato fotográfico. Este «refotografou» o «retrato nu clássico» para criar depois «a obra de arte fotográfica surreal finalizada». Além disso, o pintor experimentou o método conhecido como «efeito Sabatier», que adiciona uma qualidade prateada à imagem.

Le Violon d’Ingres foi publicado pela primeira vez numa edição especial de junho de 1924 da Littérature – uma revista surrealista que foi lançada em 1919 e fechada em 1924, na qual a foto de Man Ray apareceu. Nos 98 anos desde a sua publicação, a fotografia tornou-se uma das obras de arte surrealista mais reconhecidas em todo o mundo. Atentemos na referência do Getty Museum: «A transformação do corpo de Kiki num instrumento musical com a adição grosseira de algumas pinceladas, torna esta imagem humorística, mas a sua forma sem braços também é perturbadora de contemplar.

O título parece sugerir que, enquanto tocar violino era o hobby de Ingres, brincar com Kiki era um passatempo de Man Ray. A imagem mantém uma tensão entre objetificação e apreciação da forma feminina». 

Os atuais donos 

Hoje, a fotografia faz parte do lote de obras de arte, fotografias, joias e cartazes do acervo acumulado ao longo de décadas pelo casal Rosalind Gersten e Melvin Jacobs, que a adquiriu em 1962 ao próprio artista. Jacobs, ex-presidente e CEO da Saks Fifth Avenue – rede de lojas de departamentos de luxo americana –, morreu em 1993 aos 67 anos, enquanto a sua mulher Rosalind, a executiva da Macy’s, morreu em 2019, aos 94. A filha do casal e executora do espólio, Peggy Jacobs Bader, afirmou que cada peça da coleção «tem uma história única e íntima por trás» e reflete o «espírito alegre do relacionamento dos seus pais».

Por sua vez, Darius Himes, chefe internacional de fotografia da Christie’s, em comunicado, considerou a foto «uma das obras mais icónicas do século XX» e acrescentou que «o alcance e a influência dessa imagem, ao mesmo tempo romântica, misteriosa, travessa e divertida, cativou o olhar de todos». «Como um trabalho fotográfico, é sem precedentes no mercado», sublinhou.

A ascensão do artista 

Man Ray nasceu na Filadélfia, Pensilvânia, em 27 de agosto de 1890 como Emmanuel Radnitzky, mas ficou conhecido na sua vida adulta e profissional como Man Ray. Foi o fotógrafo pioneiro de moda e retratos nos EUA que criou fotos icónicas de nudez e surrealismo enquanto morava em Nova Iorque e Paris. Além disso, era também conhecido pelos seus fotogramas sem câmara, a que apelidava de «rayografias». A «habilidade artística» surgiu em tenra idade.

A sua educação no ensino médio desempenhou um «papel importante» ao lhe fornecer «uma base sólida no desenho», bem como em outras técnicas de arte. Este visitava diversos museus de arte, onde aprendeu sobre as obras de antigos mestres como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rembrandt ou Caravaggio. Como estudante, Ray foi inspirado pelo fotógrafo norte-americano Alfred Stieglitz (primeiro fotógrafo a ter as suas fotos expostas num museu), cuja galeria visitava regularmente. 

Aos 25 anos, o jovem artista teve a sua primeira feira de pintura individual. Em 1908, recebeu uma bolsa para estudar arquitetura, mas decidiu seguir uma carreira na pintura. Permaneceu então durante quatro anos a dedicar-se a essa arte, enquanto ganhava algum dinheiro como ilustrador técnico e artista comercial em várias empresas de Manhattan.

Inicialmente, o seu trabalho foi inspirado pelo cubismo e pelo expressionismo. Contudo, quando este conheceu o artista francês Marcel Duchamp, começou a dar o seu «cunho pessoal» às suas obras. O seu foco mudou para o dadaísmo que «desafiou as perceções de arte e literatura e defendeu a espontaneidade». Juntamente com Duchamp e Francis Picabia, Ray acabou por se tornar a principal figura do movimento. 

Já na década de 1920, influenciado pelo psicólogo Sigmund Freud, Ray «mergulhou» no movimento literário, intelectual e artístico chamado Surrealismo que procurava «uma revolução contra as restrições da mente racional», ao mesmo tempo que via «as regras de uma sociedade como opressivas».

Um ano depois, incentivado por Duchamp, o artista mudou-se para Paris e, com exceção de uma década em Hollywood durante a Primeira Guerra Mundial, este passou toda a sua vida na capital francesa. Durante essa «estadia», continuou a fazer parte da vanguarda artística, tornando-se num membro influente dos círculos internacionais de artistas e escritores dadaístas e surrealistas, que incluíam Max Ernst, Salvador Dali, Joan Miró , Paul Klee, Picasso e André Breton.

Um homem de muitas paixões 

Foi lá que conheceu e se apaixonou por Alice Pin (Kiki de Montparnasse), modelo de artistas e personagem célebre nos círculos boémios parisienses. Kiki foi sua companheira durante a maior parte da década de 1920, tornando-se o «tema» de algumas das suas fotografias mais famosas. Em 1929, este começou um caso de amor com a também fotógrafa surrealista Lee Miller, mas a relação acabou em 1932.

Pouco tempo depois, teve um relacionamento com a dançarina e modelo Adrienne Fidelin até agosto de 1940, ano em que fugiu da guerra em França e se mudou para Los Angeles para continuar a sua arte. Poucos dias depois de chegar, conheceu e começou a namorar com a também dançarina Juliet Browner. Nessa época, produziu inúmeras fotografias de moda. Fotografou estrelas de cinema de Hollywood, como Ava Gardner, Marylin Monroe e Catherine Deneuve. Depois de seis anos, regressou a Paris. O seu reconhecimento internacional veio com a Medalha de Ouro da Bienal de Fotografia de Veneza, em 1961 e, dois anos depois Ray publicou a sua autobiografia Autorretrato.

Em 1974, recebeu a Medalha de Progresso da Royal Photographic Society e a Honorary Fellowship, «em reconhecimento a qualquer invenção, pesquisa, publicação ou outra contribuição que tenha resultado num avanço importante no desenvolvimento científico ou tecnológico da fotografia ou imagem no sentido mais amplo» e, em 1999, a revista ARTnews nomeou-o «um dos 25 artistas mais influentes do século XX».

Na altura, a publicação citou a sua «fotografia inovadora, as suas explorações de filme, pintura, escultura, colagem, montagem e protótipos do que eventualmente seria chamado de arte performática e arte conceitual». O artista morreu no seu estúdio na cidade de Paris em 18 de novembro de 1976, aos 86 anos de idade. Apesar da sua importância, este possuía uma forma muito «simples» de olhar para a vida, querendo apenas realizar os seus sonhos: «O meu objetivo nunca foi registar os meus sonhos, apenas ter a determinação de realizá-los», escreveu. 

Le Violon d’Ingres estará em turné com outros da coleção em Londres, Paris e Hong Kong antes de chegar a Nova Iorque. A imagem também estará em exibição antes da venda. De acordo com a Christie’s, os destaques do leilão da coleção de arte surrealista de Jacobs também incluirão Vija Celmins’ Mars, com um preço estimado de 1,8 milhões de dólares, o equivalente a 1,6 milhões de euros, bem como Feuille de vigne femelle de Marsel Duchamp – um dos «objetos eróticos» do artista oferecido a Man Ray. 

As obras de Man Ray têm tido um bom desempenho em leilões ultimamente, mesmo no meio de controvérsias sobre as suas vendas. Em 2021, uma coleção de mais de 200 objetos do artista Ray foi vendida da propriedade do seu falecido assistente, Lucien Triellard. Realizada na Christie’s em Paris, a venda totalizou 7,1 milhões de dólares, o equivalente a 6,3 milhões de euros, apesar das alegações do Man Ray Trust de que os itens da venda foram obtidos ilegalmente – alegações que a casa de leilões negou.

O valor máximo dado por uma imagem de Man Ray foi de três milhões de dólares, o equivalente a 2,6 milhões de euros, pela obra Noire et Blanche, que também retrata Kiki de Montparnasse. 

O recorde atual de uma fotografia vendida em leilão é de Andreas Gursky ‘s, Rhein II, tirada em 1999 e que foi vendida pela Christie’s por um valor sem precedentes de 4,3 milhões de dólares, o equivalente a 3,8 milhões de euros, em 2011.