Jorge Corrula. “Falar da cultura sem falar do país não faz sentido nenhum”

Aos 43 anos de idade, o ator Jorge Corrula apresenta-se como um ex-estudante de Direito crítico em relação ao mundo que o rodeia. Mostra-se inconformado ao não permitir sentir-se confortável em nenhum formato e crítica o estado da cultura e o estado país, no qual considera que a justiça ‘é inexistente’.

Sempre soube que o seu futuro passava pela representação?

Não.Tanto que eu estive dois anos em Direito. Esta coisa de ser ator começou por brincadeira, um grupo de teatro que havia no sítio onde eu morava, eu fiz um workshop de teatro, e fazíamos aquelas apresentações em alturas festivas, mas apenas por brincadeira. Depois, uma das pessoas que eu conheci nesses workshops chamou-me para fazer um casting e fiquei no papel de Romeu, na peça Romeu e Julieta, no Teatro da Trindade, isto deve ter sido mais ou menos em 1997.

A minha grande estreia foi antes, nesse workshop, no Teatro Maria Matos, em 1995, mas foi uma estreia amadora, digamos assim. A estreia profissional foi então no Teatro da Trindade, com a peça Romeu e Julieta. Mas a verdade é que eu até fiquei surpreendido por me pagarem para brincar, porque foi isso que aconteceu. A partir daí é que comecei a levar a coisa mais a sério e fui para o Conservatório de Teatro, aconselharam-me a aprender. 

Desistiu do curso de Direito para frequentar o curso de formação de atores. Como é que isso foi visto pela sua família?

A minha família é bastante progressista e, portanto, acho que qualquer escolha que eu fizesse para eles estaria bem, desde que eu fosse feliz. Eu acho que eles até ficaram um bocadinho preocupados por eu ter ido para Direito, não por causa das minhas capacidades da pantomina, porque eu também podia desenvolver as minhas capacidades de mentira com a advocacia, mas porque se calhar era um trabalho demasiado formal para o meu perfil e para a minha personalidade.

Eles ficaram naturalmente preocupados quando eu decidi ir para o Conservatório, uma vez que se seguisse advocacia eram maiores as probabilidades de ter um trabalho permanente mais estável. Enquanto ator obviamente que estava mais feliz, mas é um trabalho que é muito mais inconstante. É uma profissão em que o trabalho é sobretudo um trabalho precário.

Apesar de ter participado em várias séries e novelas televisivas antes, a sua primeira grande aparição foi no Crime do Padre Amaro. Como é que surgiu essa oportunidade?

Essa oportunidade, como tudo na minha vida, surgiu sem querer. O filme foi feito em 2005 pela Patrícia Vasconcelos e eu, na altura, estava com ensaios de teatro e um colega meu diz-me que estão a fazer o casting. Eu decidi aparecer, bater à porta da produtora, que era a Utopia Filmes, e o primeiro assistente de realização aparece à porta e diz: «Não podes, desculpa, isto é um casting com hora marcada e um casting fechado da Patrícia Vasconcelos, não podes fazer». Mas, depois, o Carlos Coelho da Silva, que era o realizador, ia a passar no corredor, viu-me, disse-me para eu entrar e para fazer o casting e foi assim que eu fiquei.

E porque é que acha que isso aconteceu?

Tem a ver com o typecast, claro que todos os atores podem ser mais ou menos versáteis, mas eu acho que ele engraçou com a minha cara e achou que seria um typecast para aquele papel e eu concordo, acho que foi por isso, porque, para o Carlos Coelho da Silva, eu era um typecast para a personagem do Amaro e acredito que faz todo o sentido.

O que é que mudou na sua vida depois de ter feito esse filme?

Nada. Quer dizer, a única coisa que mudou a partir daí foi a questão da exposição. Deixei de ser uma figura anónima na rua e passei a ser conhecido pela figura menos lícita da personagem do Padre Amaro de Eça de Queiroz. Curiosamente acho que é ainda este ano, em 2022, que vai estrear um novo filme do Padre Amaro, protagonizado pelo Zé Condessa.

Foi fácil lidar com a exposição?

Eu acho que é recorrente as personalidades que são mais conhecidas do público, quer sejam atores ou políticos, dizerem que gostavam de ser anónimos, mas isto é uma mais-valia da profissão, o reconhecimento acontece porque fizeste alguma coisa com mérito. Mas na altura foi um choque, sem dúvida alguma, porque eu não estava habituado a ter de lutar para passar por desconhecido. Eu gosto muito de passar despercebido e esse é um fator que às vezes é infeliz, o facto de não conseguir. Até confesso que esta questão da pandemia e o facto de andarmos com máscara – eu devo ser a única pessoa conhecida a dizer isto – é muito bom, não só para a nossa saúde, mas também para a saúde mental.

Na altura houve alguma coisa que deixou de fazer por já não ser anónimo?

Eu admito que sou um bocado ‘bicho do mato’, de maneira que, quando fiz O Crime do Padre Amaro, a repercussão só veio exponenciar aquilo que eu já era: introvertido e pouco social, algo que continuo a ser. Obviamente que também dependia de para onde ia. Se fosse para o Bairro Alto, em 2006, já sabia que ia ouvir determinados comentários de pessoas que não me deixavam estar com os meus amigos. Se evitava sair? Não. Nunca evitei fazer rigorosamente nada por causa da popularidade.

E ainda em relação ao Crime do Padre Amaro, o maior choque para mim aconteceu porque eu não tinha noção de que o filme ia ter uma exposição física tão grande. Esse foi o fator que me deixou mais chocado, foi uma opção estética, do realizador, mas eu acho que se o Eça de Queiroz vivesse nos dias de hoje ia dizer que aquela não era a versão dele.

Aquilo tratava-se sobretudo de uma crítica social e da luta interior de um homem que queria seguir a fé e se encontrava a batalhar entre o espírito e a carne, lutas que são extremamente atuais da filosofia e da metafísica. De repente, o público focou-se imenso na questão sexual e na questão da carne, e eu acho que, quando o autor escreveu o livro, queria muito mais falar sobre o nosso país do que sobre um caso amoroso entre um homem e uma mulher. Esse foi o primeiro fator de choque para o público português, porque não estão habituados a ver cinema nacional, muito menos com aquela exposição física.

Agora estamos cada vez mais atentos às questões da objetificação do corpo. Sente que, por ser um homem bonito, já foi objetificado?

Eu nunca senti isso. Francamente, eu não sei como é que seria a minha carreira se eu não tivesse feito O Crime do Padre Amaro, mas como o filme tinha essa exposição física e a objetificação do corpo e da beleza – tanto eu como a Soraia [Chaves], duas figuras bonitas a fazer o filme – no início da minha carreira, devido a toda aquela exposição, eu optei por contrariar isso e lutei para mostrar que era um ator versátil e que não fazia apenas o papel de galã ou dentro do estereótipo.

Eu sempre fiz papéis diferenciados, sempre lutei para procurar isso e, sem sombra de hipocrisia, acho que lutei para contrariar esse estereótipo da sociedade que diz o que é bonito e o que é belo. Eu sei que há atores que são escolhidos apenas pela questão estética e outras, agora já extravasa um pouco a questão estética. Há atores que são escolhidos pelo seu lado estético e não porque são bons profissionais e estamos a falar de protagonistas de telenovelas, de filmes, de teatro – embora o teatro não tenha tanto essa pressão. Mas a televisão e o cinema têm. E eu atrevo-me a dizer que em televisão não vejo nenhum protagonista gordo, feio ou que não tem seguidores na internet.

Que outros fatores acha que pesam na altura de escolher um ator para o projeto sem ser o talento?

Pelo menos em televisão, sempre se fizeram escolhas baseadas na fotogenia, que não tem necessariamente de ser uma coisa simétrica ou esteticamente estereotipada de bonita. Hoje em dia, além desse fator, há também o fator da popularidade e, apesar de esse também sempre ter existido, agora trata-se de uma popularidade subjetiva, é uma popularidade que advém das redes sociais. Isto acontece quando uma pessoa é escolhida e nem precisa de ser atriz ou ator, pode nem sequer ter formação como tal, é escolhida exclusivamente pelo facto de o produtor saber que à partida aquele indivíduo lhe vai trazer canal e visualizações para o produto que quer produzir. Isto acontece.

Mas eu acho que estamos numa fase de transição, em que atingimos o expoente máximo das redes sociais e em que as pessoas fazem escolhas pelas redes sociais, pela popularidade e pela beleza, colocando tudo num só pacote. Mas acredito que estamos numa fase de transição e tenho a esperança de que vamos chegar à conclusão que o facto de essas pessoas terem mais popularidade, serem mais bonitas ou terem mais seguidores nas redes sociais não se reflete na empatia do público, quer seja público de teatro, televisão, redes sociais ou de canais de Youtube. Vai-se chegar à conclusão de que tem de existir um equilíbrio entre competências, talento, beleza e popularidade. Eu acho que é um compromisso que tem de se fazer em termos de produção.

Em Portugal essa questão coloca-se ainda mais uma vez que os meios de produção são finitos e os produtores sabem que têm de fazer concessões, só não concordo com concessões totais. Isto acontece com aqueles produtores que não querem correr riscos nenhuns e contratam pessoas que sabem que à partida lhes vão trazer público, e descuram a qualidade do produto. Isto para dizer que eu acho que estamos numa fase de adaptação, de transição e de equilíbrio, em que se vai chegar à conclusão de que a popularidade e a estética só por si não funcionam nem vendem. São coisas inócuas, capazes de durar 15 ou 30 segundos, mas a longo prazo não funciona, não cativa, não ensina, não é apelativa.

Eu espero francamente que esta transição aconteça. Falando do caso específico das telenovelas, eu não sei até que ponto nós não estamos a matar um produto que está connosco desde que a televisão passou a ser televisão a cores em Portugal. Neste momento em que nós estamos, as escolhas são feitas descurando a qualidade final do produto, não tenho dúvida nenhuma. Mais grave do que isso, acho que os produtos não têm vergonha de o admitir, embora não diretamente.

Entretanto, além do cinema, fez teatro, televisão, fez também parte do grupo de júris do programa A Máscara. Onde é que se sente mais confortável?

Em nenhum, não me sinto confortável em nenhum. O que é que eu quero dizer? Eu não fiz contas, mas eu trabalho profissionalmente há mais de 20 anos e fico sempre aliviado por ficar desconfortável e nervoso em cada trabalho que vou fazer. Por um lado tem a ver com a minha insegurança, mas também me deixa descansado porque é sinal de que ainda estou desperto, alerta e preocupado com o resultado final. Feliz ou infelizmente não me sinto confortável em nenhum formato.

Neste momento, como não faço teatro há dois anos, tenho muitas saudades de fazer teatro. Como é neste formato que és ator de corpo inteiro, no sentido literal e outros, não é onde eu me sinto mais confortável, mas é aquele que eu tenho mais saudades de fazer. Por um lado, porque a personagem não pode desaparecer, não há alturas em que a personagem não viva, e também pelo ambiente, o público está ali, a personagem existe na realidade e essa existência é validada pelo público na hora. Não só no decorrer do espetáculo, com as reações do público, sonoras ou não, quer depois nos aplausos no final.

Qual foi o projeto em que participou que guarda com especial carinho?

Vou ser muito piroso. Eu fiz uma curta-metragem, há sensivelmente 16 anos, que se chamava Daphne, realizada pelo Perseu e, foi nessa altura, que eu conheci a minha sogra e a minha mulher e, por isso, o projeto que guardo com mais carinho. 

Conheceu a sua mulher, Paula Lobo Antunes, no meio onde trabalha. É fácil, em casa, separar esses dois mundos?

Não é fácil pela questão prática dos horários. Como temos horários igualmente caóticos, a questão do dia-a-dia familiar não é fácil de gerir. Eu sou uma pessoa muito prática, metódica e fria a analisar os trabalhos. Por isso posso dizer que nós falamos muito de trabalho, mas falamos muito pouco sobre o trabalho um do outro, não nos metemos muito no trabalho um do outro. A Paula podia perfeitamente ter outra profissão ou eu, que nós falaríamos do mesmo. Falamos muito de teatro, de cinema, de textos, mas do nosso trabalho não falamos. Falamos do meio, das dificuldades que o meio enfrenta, mas sobre o trabalho um do outro não. E por isso diria que sim, que é fácil.

Que mecanismos tem para se distanciar do trabalho?

Eu tinha uma professora de teatro que dizia que o ator nunca está a descansar e nunca está de férias, está constantemente a pensar nos papéis que pode fazer. Eu admito que não tenho esse método de desligar. Às vezes levo as personagens comigo, uso expressões das personagens em casa e fisicalidades das personagens e é engraçado porque a Paula reconhece isso e não dá importância ou, melhor, umas vezes chama-me a atenção, outra vezes não chama.

Eu acho que faz parte do meu método, há alturas em que as personagens vão connosco e é assim que elas crescem. Não consigo desligar e, mesmo quando desligo, no início dos projetos, quando a personagem já está criada, em casa já sou mais eu e não tanto as personagens, mas acredito que quando as personagens são bons e são fortes, nós ficamos sempre com um bocadinho delas dentro de nós.

É essa a riqueza desta profissão, mesmo quando usamos o estereótipo de dizer que temos a felicidade de poder viver outras vidas, é mesmo isso que acontece. Ficarmos com gestos das personagens, com expressões, aprendermos até com modos de pensar, frases que costumam dizer. 

É pai de duas filhas, a sua segunda filha chegou no meio de uma pandemia. Houve coisas que gostava de ter vivido com ela e não teve oportunidade pela situação que estávamos a viver?

Não. Durante a pandemia estive quase todo o tempo a trabalhar, exceto no confinamento geral, por isso não senti muito essa restrição. Contudo, é óbvio que as atividades ao ar livre acontecem e ela tem dois anos e é um ‘bebé covid’, sem dúvida alguma, e agora no desconfinamento era um ser muito mais fechado e antissocial, não estava habituada a estar com outras pessoas; enquanto que a minha primeira filha, que tem 10 anos, é um ser muito social, já com vida própria, tem mais vida social que eu.

São seres completamente diferentes precisamente porque viveram em contextos diferentes e eu tenho pena porque estes dois anos, em termos de saúde mental, nós regredimos muito e a minha filha não está ausente deste nós. No início da pandemia começámos por dizer que vai ficar tudo bem, mas eu acredito que só ficámos pior. Se a saúde mental sempre foi uma questão importante e menorizada no nosso país, acho que devia ser uma das questões a merecer mais atenção por parte da sociedade civil. Acho que só nos próximos cinco anos é que vamos ter a real consequência do que aconteceu aos portugueses nos últimos dois anos. 

Acha que o facto de os pais serem atores influencia as suas filhas de alguma forma?

Recentemente o filho do Tom Hanks disse que era maltratado na escola porque era filho de uma celebridade. Claro que a dimensão das coisas nos Estados Unidos não é igual à dimensão das coisas em Portugal, mas acha que elas podem ser influenciadas por isso? Eu acho que sim, mas acho que mais do que isso, o que afeta é os pais não estarem presentes.

Presumo que o Tom Hanks também não tenha muito tempo para estar com os filhos dele e acredito que esse seja o principal fator para isso acontecer, porque não foi capaz de os ensinar a responder da melhor forma quando colocados nesse contexto. Claro que há todas as condicionantes sociais, a condicionante do pai ter este carro ou de não ter este carro, do colega de turma que tem esta roupa ou do colega de turma que não tem esta roupa e tudo isto é um fator para as crianças terem pressão na escola, já não falando das redes sociais.

Essa questão, que também se aplica a mim, da popularidade; eu exponho as minhas filhas nas redes sociais, mas esforço-me para não expor em primeiro lugar a identidade delas, acho que é algo que elas devem escolher, quando tiverem 16 ou 18 anos, quando souberem pensar por si, é uma opção que deve ser delas. Eu sinto que não tenho o direito de expor a idade das minhas filhas e quando eu digo isto falo de uma questão muito prática: eu sendo figura pública já tenho exposição e, indiretamente, as minhas filhas vão ter exposição também.

Ainda mais num meio tão visitado nos dias de hoje como são as redes sociais – se eu vou expor a identidade das minhas filhas, eu sinto que lhes estou a roubar a identidade. Isto é: as pessoas que chegam ao pé delas e as reconhecem já estão a partir de vários preconceitos, já vão ter com elas com várias ideias preconcebidas e isso retira-lhes identidade, retira-lhes poder, retira-lhes o serem elas próprias e isso é a última coisa que eu quero fazer. Imagina que a minha filha em vez de se chamar Beatriz se chamava filha do Jorge Corrula.

Felizmente a nossa filha está colocada num sítio onde as crianças não ligam nenhuma à identidade dos pais, mas se não tivéssemos outra hipótese, o principal fator seria, como disse no início desta questão, prestar atenção aos sinais, perceber se as coisas estão bem ou se estão mal, quer seja relativamente ao bullying, a problemas de identidade com eles mesmos ou com os pais, e tentar orientá-los.

Como vê a forma como o governo lidou com o setor da cultura durante a pandemia?

Eu acho que o Governo foi muito coerente com a forma como lidou com a cultura durante a pandemia. Falando dos últimos 30 anos ou já desde o Governo de José Sócrates e, na altura, já se falava do 1% para a cultura. Esse 1% para a cultura era fundamental para o desenvolvimento do país, porque falar de cultura sem falar do desenvolvimento do país não faz sentido nenhum. O que é um país se não é a sua identidade e o que é a sua identidade se não a sua cultura? Portanto, estamos a falar exatamente da mesma coisa.

O Governo foi bastante coerente porque ignorou a esmagadora maioria dos artistas que trabalham sobretudo a recibos verdes e, por isso, não têm um rede de segurança social que os possa ajudar em alturas de dificuldade, nomeadamente em alturas em que não têm trabalho. Eu, felizmente, estava com contrato na altura em que a pandemia surgiu e pude ir para casa e receber, mas a maioria dos atores freelancers trabalha a recibos verdes, dependem exclusivamente da sua mão de obra e dos seus horários de trabalho e se não estão a trabalhar não têm nenhum suporte social, embora sejam obrigados a contribuir para a segurança social.

Por isso, enquanto não se mudar este estatuto das artes, é impossível dizermos que estamos a mudar a nossa atitude perante o setor cultural, isto para explicar que o Governo teve exatamente o mesmo comportamento que os Governos nos últimos 30 anos têm tido. Continuamos com menos de 1% para a cultura e isto é só uma forma de lapidar o que resta da nossa identidade enquanto país.

Tivemos várias companhias a desaparecer, como a Cornucópia, uma das maiores companhias de teatro nacional, tivemos vários profissionais do espetáculo, não só atores como técnicos, a passarem por muitas dificuldades, alguns tiveram de voltar para casa dos pais. Eu sei de casos muito próximos e, portanto, o Governo foi muito coerente no cuidado que não teve com o setor da cultura. 

Recentemente ridicularizou a situação do Dr. Ricardo Salgado – a propósito do diagnóstico da doença de Alzheimer. Sente que, pela exposição que tem, tem um especial cuidado com aquilo que diz a nível político, por exemplo?

Obviamente que qualquer pessoa, em princípio, faz uma reflexão quando abre a boca. Devemos refletir ainda mais quando estamos a falar de outras pessoas e não de nós. Uma maior reflexão deve ser feita quando falamos de pessoas conhecidas que estão envolvidas em casos fraturantes. Neste caso estamos a falar do Ricardo Salgado, que era diretor executivo do Novo Banco e que criou um grande rombo no nosso Orçamento de Estado, e que, ao fim de várias questões, vem finalmente dizer que não se lembra do que lhe aconteceu porque lhe foi diagnosticada a doença de Alzheimer. Eu, até aqui, falei apenas de factos, não dei a minha opinião.

O que eu disse em relação ao Dr. Ricardo Salgado até foi bastante condescendente porque eu disse que o Dr. Ricardo Salgado foi a pessoa que foi mais técnica. Todos os outros tiveram Alzheimer, mas não tiveram coragem de dizer que lhes foi diagnosticado Alzheimer. Eu não acho que tenha ridicularizado, eu estou apenas a pôr em evidência o ridículo que é o nosso sistema de justiça em Portugal.

A justiça em Portugal não funciona, é inexistente, temos tido ao longo dos últimos anos vários casos que comprovam isso mesmo, em que não é possível provar legalmente que a corrupção existe e, por isso, a justiça não consegue condenar essas pessoas. Isto deixa-me muito assustado porque, em Portugal, o crime compensa. Esta mensagem é passada pelos nossos políticos, pelos nossos diretores de bancos, é passada pelas pessoas que nos dirigem e que nos apontam o caminho.

Isso deixa-me muito preocupado, especialmente enquanto pai. Por muito otimista que eu queira ser, se os dirigentes do nosso país nos estão a levar em direção ao abismo, eu não posso estar à espera de que, no abismo, esteja um barco com um arco-íris a dizer que vai ficar tudo bem. Apesar disso, eu gosto sempre de tratar as coisas de uma maneira leve e, quando a coisa é grave, de a expor de uma maneira leve e, às vezes, é a melhor forma de mostrarmos as coisas às pessoas.

Nos dias que correm, as pessoas estão cansadas de ver drama, de ter drama nas suas próprias vidas e, por isso, não querem ver drama, querem outras coisas, feliz ou infelizmente não estão para se maçar com o dia-a-dia. Não querem ver notícias sobre os números da covid-19, do INE… Nem querem saber quantos mais mil milhões vamos dar ao Novo Banco, nem como estão os números da natalidade em Portugal… Não querem saber, só querem o entretenimento fácil. Se calhar, uma das formas mais fáceis que temos de comunicar o que é realmente importante de denunciar é através da comédia. E por isso é que acho que não só o jornalismo tem esse papel importante – de denúncia e informação – como também a comédia tem esse papel.

Sempre que tento comunicar ou falar sobre questões fraturantes ou polémicas, tento dar-lhe um lado leve, cómico para que, lá está… Isto pode ter alguma graça, mas é como um murro no estômago. É como o teatro: o drama e a comédia estão sempre de mãos dadas. O drama só é um real drama quando nos faz rir e, logo a seguir, nos faz chorar. O que se passa nas nossas vidas tem graça, mas só é hilariante quando alguém se magoa. É sempre assim. E acho que o mesmo acontece com a nossa forma de comunicar hoje em dia: há muita dificuldade em comunicar. Como é que comunicamos?

Não basta chegar lá e dizer: ‘Isto é grave porque os números são estes e estes’. Temos de ter uma determinada abordagem e comunicar de uma outra forma: não é deturpar a história, mas contá-la de maneira a que o recetor a absorva. E essa é a nossa principal dificuldade nos dias que correm. E tem a ver com aquilo de que falámos no início da conversa: o compromisso que tem de haver entre os produtores quererem fazer dinheiro e coisas com qualidade.

É um compromisso difícil de alcançar, mas eu, sendo um pessimista crónico, a única coisa que me move é ainda acreditar que o jornalismo e a comédia nos podem apontar um caminho de esperança. Para mim, neste momento, os fatores fundamentais são estes porque podem fazer deste país um sítio melhor.

De facto, a comédia tem a capacidade de fazer chegar às pessoas assuntos que são importantes e das pessoas prestarem atenção porque é comunicado de maneira diferente. Acha que a cultura tem intrinsecamente um papel educativo ou pode ser apenas e só entretenimento?

Dizer que a cultura é só entretenimento é uma baboseira. É não saber o que significa cultura. E o que quer dizer entretenimento? Tenho alguma dificuldade em perceber porque as pessoas têm muita facilidade de falar em entretenimento: entreter é… Um passatempo? Um ‘aproveitatempo’? Pode ser o segundo: podemos estar entretidos a ver coisas que se calhar nos acrescentam conteúdo. Por exemplo, às vezes a minha filha está a ver séries que lhe são sugeridas por outras colegas da escola. E eu pergunto: «Beatriz, acabas de ver essa série e tens alguma coisa para dizer?» e ela não sabe responder.

O entretenimento sobre o qual não temos nada para dizer quando o vemos assusta-me. É só para entreter, desligar o cérebro, não acrescenta nem dá conversa. E esse entretenimento não é cultura. Agora, a cultura é entretenimento desde que aproveitemos o tempo em que estamos a ser entretidos. Não queiram fazer da palavra entretenimento uma palavra depreciativa: podem fazer-se conteúdos maus, mas não lhes chamem entretenimento para justificar o mau produto que fazem.

O Big Brother foi desculpado – ou é frequentemente desculpado – por dizer que ‘é entretenimento’. Também a fraca qualidade das novelas é desculpada assim. Não consigo dizer que cultura não tem responsabilidade social. Alguém que acha isto está apenas a justificar a má qualidade do trabalho que apresenta. 

Em que projetos o poderemos ver num futuro próximo?

Em entretenimento. E em cultura. 2022 é um ano em que a cultura praticamente recomeça: há muitos espetáculos a serem repostos e espero, no final do ano, ainda fazer teatro. Concretamente, tenho uma novela que vai estrear agora na SIC: Por Ti. É um formato que gosto muito de fazer e alguns colegas de profissão ficam admirados por dizer isto. Gosto muito de fazer televisão e telenovelas porque tento sempre, fazendo mal ou bem, que seja verdade. Se calhar, o entretenimento responde a várias questões; quando se fala no entretenimento puro, para mim não é verdade. O que cativa as pessoas e dá-lhes conteúdo é a verdade.