Treinadores portugueses. Portugueses à conquista do Brasil, depois de invasão de brasileiros nas décadas de 80/90 e 2000

Nas décadas de 80,90 e 2000, o futebol português foi marcado pela chegada de vários treinadores brasileiros. Agora, são os portugueses que estão a maravilhar os clubes do outro lado do Atlântico. “Fruto da operacionalização no treino e do modelo de jogo”, diz a ANTF.

Os balneários da principal divisão do futebol brasileiro estão, neste momento, a adaptar-se à sonoridade do português de Portugal, não estivesse este escalão a receber, nos últimos anos, cada vez mais treinadores portugueses. Ainda assim, a troca atlântica de ‘professores’ da modalidade nem sempre foi nesse sentido, bastando recuar algumas décadas para perceber que, afinal, houve tempos em que foram os portugueses que se tiveram de adaptar ao sotaque de cariocas, paulistas e muitos treinadores do outro lado do Atlântico que comandaram várias equipas por cá.
Os treinadores portugueses têm feito furor no futebol brasileiro, primeiro com a passagem de Jorge Jesus, em 2019, pelo Flamengo, que levou à vitória na Copa Libertadores, e agora com Abel Ferreira aos comandos do Palmeiras, emblema de São Paulo com o qual já venceu, em duas edições consecutivas, a Libertadores, e que levou até à final do Mundial de Clubes em 2022, acabando por ter de se contentar com o segundo lugar. Já mais recentemente, Paulo Sousa foi colocado à frente do Flamengo, confirmou-se a ida de Vítor Pereira para o comando técnico do Corinthians, e Luís Castro está prestes a ser oficializado – avança a imprensa desportiva – como treinador do Botafogo, equipa comprada pelo norte-americano John Textor, que chegou a estar perto de comprar parte do Benfica.

É o reflexo de uma aparente nova descoberta das equipas brasileiras, que parecem ter encontrado em Portugal as respostas para todos os seus problemas – pelo menos a nível do comando técnico.

A esta lista juntam-se, aliás, outros portugueses que passaram pelo futebol brasileiro nos últimos anos, como Ricardo Sá Pinto, de 48 anos, que comandou o Vasco da Gama durante 15 jogos em 2020. O ‘Vascão’ que, recorde-se, é conhecida por aqueles lados como a equipa dos portugueses. Afinal de contas, o emblema foi fundado por um grupo de imigrantes portugueses e lusodescendentes, corria o ano de 1898. Paulo Bento também andou por terras de Vera Cruz, mas sem grande sucesso no Cruzeiro. Também António Oliveira, filho do treinador português Toni, teve uma breve passagem pelo Brasil, onde comandou o Athletico Paranaense, entre 2021 e 2022, bem como Paulo, que treinou o Cruzeiro em 2016.

E como falar de treinadores portugueses no Brasil sem mencionar Jesualdo Ferreira, o antigo técnico do FC Porto que passou pelo Santos, em 2020?

É certo que os portugueses parecem estar a encantar as equipas brasileiras, talvez pela proximidade linguística, ou pelo facto de os treinadores nacionais estarem a fazer furor um pouco por todo o mundo – Mourinho está aos comandos da AS Roma, Bruno Lage dos ingleses do Wolverhampton, Marco Silva do Fulham e são vários os nomes que singram à frente de emblemas nacionais como o do Egito (Carlos Queiroz) e a Coreia do Sul (Paulo Bento). Isto sem esquecer Leonardo Jardim, que conquistou a Liga dos Campeões asiática, em novembro do ano passado, à frente dos sauditas do Al-Hilal, embora tenha sido despedido entretanto.

A mudança de foco das direções dos clubes brasileiros para Portugal tem, no entanto, irritado alguns adeptos brasileiros. Entre eles até Lula da Silva, mítico ‘torcedor’ do Corinthians, que não gostou muito do interesse do clube por vários treinadores portugueses. “Gostava do Sylvinho, achava-o muito sincero. Se não contratares jogadores, não ganhas jogos. Não é preciso procurar ninguém em Portugal. O Brasil está cheio de gente para trabalhar. Só não se pode contratar um técnico e mandá-lo embora ao segundo jogo que ele perde”, afirmava o antigo Presidente do Brasil sobre os rumores que mais tarde se vieram a confirmar. Afinal de contas, naquele momento, falava-se nos nomes de Carlos Carvalhal, Paulo Fonseca, André Villas-Boas e Vítor Pereira para o lugar ao leme do Corinthians, sendo que acabou por se confirmar mesmo a escolha pelo antigo técnico do FC Porto. Lula até poderá preferir olhar para o mercado interno, mas a qualidade dos treinadores portugueses falou mais alto para os dirigentes do clube paulista.

Associação satisfeita Ao i, José Pereira, presidente da Associação Nacional de Treinadores de Futebol (ANTF), nota “com particular agrado” o crescente interesse do futebol brasileiro pelos treinadores portugueses, um “sinal de reconhecimento, que em muito tem contribuído para dignificar e prestigiar a classe de treinadores portugueses”.
“Tomando como linha de tempo os últimos 40 anos, temos de facto assistido a uma mudança de paradigma, em que na década de 80 e 90 os treinadores portugueses estavam sedentos de conhecimento e tinham como referências treinadores oriundos de países como a Holanda, a Inglaterra, o Brasil, entre outros, mas em que hoje, Portugal é um dos maiores exportadores de treinadores de futebol, reconhecidos pela competência, capacidade de adaptação, e metodologias aplicadas”, segue José Pereira, argumentando que o crescimento em causa se deveu à “capacidade de reinterpretar o processo de treino, à capacidade de operacionalização no treino do modelo de jogo”. Aliás, também “a aposta assertiva feita na formação de base dos treinadores de futebol, modelo formativo que é hoje referência em vários pontos do mundo” é uma das razões indicadas pelo presidente da ANTF.

Mas, afinal, qual é o segredo por trás da crescente exportação de treinadores portugueses pelo mundo fora? São vários os fatores, mas o principal prende-se com o investimento na formação dos mesmos. Afinal de contas, em Portugal, o processo até chegar a treinador é, no mínimo, desafiante. De acordo com as diretrizes definidas pelo Instituto Português do Desporto e Juventude (IPDJ), em articulação com a Federação Portuguesa de Futebol (FPF), os futuros treinadores têm primeiro de passar por uma formação dividida em quatro estágios. Os níveis I (UEFA C) e II (UEFA B) são promovidos pelas 22 associações de futebol regionais, permitindo ao profissional trabalhar nas categorias de base e divisões inferiores dos clubes de Portugal. Já para treinar na Primeira Liga e no mercado europeu, é exigido aos treinadores que possuam os certificados dos níveis III (UEFA A) e IV (UEFA Pro). Também o aumento, nos últimos anos, da facilidade e da mobilidade entre os mercados internacionais do futebol tem permitido também aos portugueses desenvolver a profissão noutras ligas.

Troca de sentido O sentido da troca atlântica de treinadores, agora virado no eixo Portugal-Brasil, não foi, no entanto, sempre assim. Na década de 80 – e até nos anos 90 e 2000 – comprovava-se o inverso, contando-se um alto número de treinadores brasileiros na principal divisão do futebol português.

É preciso recuar, no entanto, até à década de 50 para encontrar aquele que foi um dos maiores protagonistas brasileiros em Portugal. Otto Glória, nascido no Rio de Janeiro em 1917, e chegado a Portugal em 1954 para treinar o Benfica, é por muitos considerado o homem que ‘profissionalizou’ o futebol em Portugal. Passou pelo Belenenses, Sporting e FC Porto, tendo também levado a seleção nacional em 1966 – ano mítico, com Eusébio, Coluna, José Augusto e António Simões nas fileiras – às meias-finais do Mundial de Inglaterra, em que acabaria derrotado pela Inglaterra, concluindo o torneio no terceiro lugar. Aos comandos do Benfica, foi também protagonista de um dos momentos mais icónicos do futebol português: quando o Benfica enfrentou o Manchester United na final da Taça dos Campeões, em 1968, era Glória que estava aos comandos das ‘águias’. Otto Glória é, até hoje, o treinador mais vezes campeão em Portugal (três títulos no Benfica e dois no Sporting), sentando-se no banco em 306 jogos no futebol português.

Por essa mesma altura, marcando para sempre a história do FC Porto, também a chegada de Dorival Knipel – melhor conhecido como Iustrich – mudou para sempre o futebol português, e principalmente os azuis-e-brancos, que, até à sua chegada, seguiam numa pesada série de 16 anos consecutivos sem conquistar um único título de campeão nacional. Os portistas beneficiaram fortemente da chegada de treinadores brasileiros naquela década de 50. Após a passagem de Iustrich pelo FC Porto, Otto Bumbel assumiu os comandos durante apenas temporada e meia. O suficiente, no entanto, para levar os ‘dragões’ à vitória na Taça de Portugal, em 1958.

Depois de Glória, Iustrich e Bumbel, a ‘invasão’ brasileira em massa do futebol português só aconteceu décadas depois. Mas aconteceu. Na temporada de 1987-88 da Primeira Divisão, por exemplo, das 20 equipas que participavam, seis tinham treinadores brasileiros no momento de arranque da época. E, na temporada seguinte, apesar de só se contarem três treinadores brasileiros na principal divisão do futebol português, é preciso realçar dois deles: Paulo Autuori e Marinho Peres. Após a fama de Otto Glória, praticamente 30 anos depois, Autuori transformou-se no treinador brasileiro mais conhecido do futebol português, pelo menos nos anos 80 e 90. Em 1986, assumiu o lugar de treinador-adjunto do Vitória de Guimarães, seguindo para o Nacional da Madeira, que elevou da Segunda para a Primeira Divisão do futebol português como treinador principal. Foi no Marítimo, no entanto, que passou mais tempo: cinco temporadas consecutivas, entre 1990-91 e 1994-95. Mas o seu momento de maior fama, sem proveito, foi a passagem pelo Benfica, em 1996.

Já Marinho Peres é tido como o segundo treinador brasileiro com mais jogos disputados no futebol português: foram 222 partidas, ao serviço do Vitória de Guimarães, Belenenses, Sporting e Marítimo, que começaram na época 1986-87. Apenas Otto Glória e as suas 306 partidas no futebol português batem o recorde de Peres.
Importa também recordar o trabalho de Carlos Alberto Silva no FC Porto, onde conquistou dois títulos de campeão nacional (1991/92 e 1992/93) e uma Supertaça (1992).

Era scolari Se Otto Glória abriu a porta aos treinadores brasileiros na seleção nacional portuguesa, no início do Milénio, mais tarde Luiz Felipe Scolari, o técnico nascido no estado de Rio Grande do Sul, que treinou o emblema nacional entre 2003 e 2008, acabou por ocupar os seus sapatos, tornando-se num dos técnicos mais emblemáticos a alguma vez passar pelo comando técnico da seleção nacional portuguesa.

A história de Scolari é indissociável da Federação Portuguesa de Futebol: o brasileiro desembarcou deste lado do Atlântico apenas um ano depois de ter conquistado o Campeonato Mundial de 2002 ao leme da seleção nacional brasileira, e o objetivo era simples: conquistar o título no Europeu de 2004, que se realizou em Portugal, com a seleção portuguesa. Missão, no entanto, falhada, mas que deixou para sempre nos adeptos nacionais do futebol a marca de Scolari e do seu modo peculiar de orientar o jogo. Scolari ainda teve nova oportunidade de brilhar no Mundial de 2006, mas o emblema nacional não passou do quarto lugar, e, após o Europeu de 2008, acabou afastado. ‘Felipão’ ficou para sempre conhecido como um dos grandes responsáveis pelo incentivo e a aproximação entre a seleção e os adeptos, criando um ambiente de apoio nacional que levou até, na final do Euro 2004, a que os portugueses formassem um enorme cordão humano entre Alcochete e o Estádio da Luz, em apoio à seleção nacional.

Longe do passado Hoje em dia, no entanto, o futebol profissional português deixou para trás a procura de treinadores no Brasil, apostando principalmente na ‘produção nacional’. Aliás, na temporada 2021-22, não se encontra um único treinador brasileiro nas equipas que jogam na Primeira e na Segunda Liga. Ao contrário, são os brasileiros que encontraram em Portugal um estilo de ‘galinha de ovos de ouro’ a nível do comando técnico, aproveitando os frutos de anos de investimento na formação, deste lado do Atlântico. Isto, no entanto, numa ‘moda’ criticada por muitos adeptos brasileiros, que notam que, apesar de existirem efetivamente vários treinadores portugueses a ocupar lugares em diferentes clubes a nível internacional, a quantidade de títulos conquistada não é, dizem, relevante. Muito menos comparativamente com treinadores de outras nacionalidades, como o alemão Thomas Tuchel, que comanda os ingleses do Chelsea, com os quais conquistou a edição de 2020 da Liga dos Campeões, bem como o Mundial de Clubes desse mesmo ano. De resto, a lista é extensa: o espanhol Pep Guardiola levou o Manchester City à vitória na Premier League em três épocas diferentes, e mais uma lista de títulos na Alemanha aos comandos do Bayern de Munique. Armas de arremesso daqueles que criticam o foco dos clubes brasileiros em Portugal, mas que esquecem importante comparação entre o tamanho de países como a Alemanha e Espanha – bem como das suas ligas nacionais de futebol – relativamente a Portugal.