A minha viagem ao Japão

O volume do guia continuava a aumentar, ao ponto de eu questionar se, por aquele caminho, não ia rebentar pelas costuras.

N uma manhã gloriosa da primavera/ verão de 2014, se não estou em erro, apanhei em Algés o comboio para o Cais do Sodré, subi a rua do Alecrim até ao n.º 44 e seriam dez e picos quando estava a empurrar a pesada porta de ferro e vidro da livraria Campos Trindade. Lá dentro, havia em cima da mesa da entrada livros acabados de marcar pelo Bernardo.

Livros fresquinhos… Encantando com tanta escolha, arrebanhei aí uma meia dúzia deles, ou mesmo um pouco mais, e segui o meu caminho. O dia começava bem.

Entre essas aquisições havia três romances de Mishima, um livro de memórias de Sybille Bedford e dois guias Fodor’s de duas cidades que gostaria de visitar um dia, Tóquio e Nova Orleães.

Coroado pela Newsweek «o rei dos guias», o Fodor’s não se notabiliza pelo grafismo. Ao contrário do American Express («o guia que lhe mostra o que os outros só contam»), o Fodor’s só tem letras e mapas a preto e branco. Tirando a capa, nem uma fotografia. Em compensação, contém a informação mais rigorosa e aprofundada, recolhida por experts, e uma seleção dos melhores locais. Trata-se, evidentemente, de um guia para carteiras bem recheadas.

Os hotéis elegantes, os restaurantes gourmet e as lojas caras não passavam para mim, obviamente, de uma miragem. Interessava-me o que dizia sobre os bairros e a arquitetura, os museus e marcos culturais, talvez algum café ou livraria. Mas mesmo que eu dispensasse todos os luxos, uma viagem ao Japão nunca ficaria barata, pelo que tratei de começar a juntar poupanças.

Para isso, inspirei-me num episódio do livro O Imperador, em que Riszard Kapuscinski conta que, no golpe de Estado que derrubou Haile Selassié, os soldados que o depuseram encontraram nas estantes do palácio várias Bíblias cheias de dólares. Uma boa utilização para as suas páginas, uma vez que, segundo o escritor polaco, o imperador era semi-analfabeto…

E assim, todos os meses, eu ia pondo uma ou duas notazinhas pequenas entre as páginas do guia Fodor’s de Tóquio. Quando chegasse ao fim (o livro conta cerca de 260 páginas) já teria um pé-de-meia razoável.

Ao princípio nem se notava, mas aos poucos o livro começou a engordar. Até que um dia foi preciso pagar uma despesa que não estava nos planos e lá fui buscar as ‘poupanças do Japão’. Não desisti e continuei a pôr todos os meses duas notazinhas de parte. Ao fim de alguns meses era já algum dinheiro. Mas mudámos de casa e foi preciso pagar as mudanças. Só aceitavam dinheiro vivo. Onde é que o fui buscar? Uns meses depois houve uns trabalhos com uma máquina para abrir buracos num terreno. O guia do Japão levou a machadada final.

Teimosamente, tal como Napoleão reergueu o exército francês depois da derrocada na Rússia, decidi reconstituir os fundos praticamente do zero. No início de cada mês, mal recebia o salário, lá ia eu religiosamente ao multibanco levantar as duas notas para colocar entre as páginas do guia. De vez em quando, se queria fazer alguma compra extra num momento de maior penúria, ia sorrateiramente ao guia do Japão abastecer-me. Mas o volume continuava a aumentar, ao ponto de eu pensar que, por aquele caminho, o livro ia ficar, por assim dizer, a rebentar pelas costuras.

Infelizmente nunca chegou a esse ponto. Se era preciso pagar o gás, onde havia o dinheiro necessário? O guia de Tóquio funcionava um pouco como o multibanco cá de casa… Num momento de maior aperto, mesmo já um pouco depenado, acabou por revelar-se um socorro precioso. A minha primeira viagem ao Japão acabou por ser um passeio até à agência bancária mais próxima para fazer um depósito de notas.

E assim voltámos à estaca zero. Pensando bem, talvez não tenha sido grande ideia inspirar-me no exemplo de Hailé Selassié para guardar as poupanças. Segundo Kapuscinski, os dólares que o imperador tinha escondido nas Bíblias acabaram todos confiscados.