Alaska. Ao preço da petinga!

No dia 18 de Outubro de 1867, os americanos entregaram aos russos um cheque de 7,2 milhões de dólares (cerca de 133 milhões nos valores atuais) recebendo em troca os 1.718.800 quilómetros do Alaska. Apesar de muitas vozes críticas, seria um negócio verdadeiramente formidável.

Eis um episódio da História Universal que ainda hoje deixará gente como Vladimir Putin às voltas na cama com borborigmos no estômago. Raramente um negócio terá sido tão vantajoso para uma das partes e tão ruinoso para a outra. Falo da compra do Alaska pelos Estados Unidos ao Império Russo no já longínquo ano de 1867.

Tecnicamente, no pino do Inverno, quando o mar fica completamente gelado, é possível ir da Rússia para a América a pé. Duas pequenas ilhas do Estreito de Bering, marcam a distância mais curta entre os dois países: chamam-se Grande Diómedes e Pequena Diómedes e estão separadas por pouco mais do que três quilómetros. Já da ponta mais oriental da Rússia à ponta mais ocidental dos Estados Unidos, são 88 quilómetros. Motivo mais do que suficiente para que os americanos sempre estivessem de olhos nesse tal território do Alaska que ocupa 1.718.800 quilómetros quadrados.

No tempo do domínio russo, o Alaska era maioritariamente habitado pelos promyshlenniki, mercadores e caçadores que se dedicavam ao negócio das peles. Começaram a migrar da Sibéria para leste a partir do ano de 1732 e foram-se instalando ao longo das enormes planícies geladas, dizimando focas e ursos a torto e a direito. Nunca chegaram a tornar-se verdadeiramente colonos, até porque não estabeleceram centros habitacionais, mas a igreja ortodoxa não perdeu tempo a erguer igrejas de madeira um pouco por toda a parte onde se juntassem grupos de mais de vinte pessoas. Como de costume, a palavra de Deus ia para além da vontade dos homens. 

O imperador Alexandre I também não tardou a tomar posição, a despeito de não viverem no Alaska mais do que uns 700 dos seus tão amados súbditos. Vai daí, assinou um edital no qual estabelecia que a Rússia assumia a soberania da Costa Norte Americana do Pacífico a partir do Paralelo 51. No mesmo documento, assinalava a proibição de qualquer navio estrangeiro se aproximar mais do que 185 quilómetros dos territórios sob administração russa. Instalavam-se portanto no quintal da América e não queriam ver americanos (nem quaisquer outros) a cirandar pelas redondezas. 

John Quincy Adams, secretário de Estado e futuro 6º presidente dos Estados Unidos, sentiu a mostarda subir-lhe ao nariz. Não era mamífero para aceitar de bom grado que lhe impusessem ordens inconvenientes e com muito de prepotentes.

Percebendo que as medidas tomadas por Alexandre I prejudicavam gravemente a expansão económica da marinha mercante americana, tomou uma forte posição em relação ao assunto. Os seus protestos foram de tal forma veementes que obrigou o imperador a recuar nas suas exigências e ao estabelecimento do Tratado Russo-Americano de 1824. O domínio russo retrocedeu até ao Paralelo 54 e todos os navios com bandeira dos Estados Unidos passaram a ser autorizados a utilizar os portos do Alaska. O primeiro passo estava dado. Ogigantesco salto tinha sido preparado ao longo dos corredores da diplomacia.

A Guerra da Crimeia

Se nos dias que correm a situação na Ucrânia é periclitante, muito se deve também ao que sucedeu na Guerra da Crimeia, um conflito que se estendeu entre Outubro de 1853 e Fevereiro de 1856. Como muitas das guerras do nosso tempo, teve por base uma discussão religiosa, neste caso com os franceses a defenderem os direitos dos católicos romanos na região da Palestina contrariando o domínio da igreja ortodoxa russa. O Império Otomano entrara em decadência depois de um longo período de batalhas contra a Rússia. E a França e a aliada Inglaterra vieram em seu auxílio convencidas que a sua preservação reforçaria as posições ocidentais na região, freando o expansionismo russo. 

Depois de o Imperador Nicolau I ter ordenado a invasão dos Principados do Danúbio, hoje na sua maioria em território romeno, os otomanos, comandados por Omar Pasha, com o apoio de franceses e ingleses, defenderam-se bravamente e controlaram a invasão na zona de Silistra, atual Bulgária. Em seguida, os barcos de guerra da França e de Inglaterra avançaram pelo Mar Negro e sitiaram Sebastopol, na Crimeia. Após uma longa série de sangrentos combates, os russos, receando que os aliados avançassem para o interior do território, decidiram aceitar a rendição. O Tratado de Paris, de 30 de Março de 1856, estabeleceu a humilhação: nenhum navio russo podia navegar no Mar Negro. Uma vergonha mais difícil de engolir do que uma manada de hipopótamos.

Pode parecer que estou para aqui a tergiversar, fugindo ao cerne do artigo, mas já vão perceber que não é bem assim. Porque a Guerra da Crimeia enfraqueceu definitivamente o Império Russo, deixou as finanças do país completamente exauridas e pôs fim a uma longa influência russa naquela zona da Europa. Isto é, a Rússia precisava de dinheiro como de pão para a boca. E os seus governantes trataram de pensar em vender as suas joias.

O Grão Duque Constantino, irmão mais novo do czar Alexandre II, que tomara entretanto o poder, foi o primeiro a colocar o dedo na ferida purulenta. Numa longa missiva enviada ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, Alexander Gorchakov, alertou para o crescente expansionismo americano e para a vontade dos Estados Unidos em dominarem por completo a política continental. E sublinhou, com um toque raro de intuição, que a Rússia estava sujeita a perder o território do Alaska por via da força, sabendo-se que se encontrava incapaz de resistir ao deflagrar de novo conflito. Havia que encontrar uma saída o mais airosa possível.

As mudanças

Pelo caminho, a realidade do Alaska alterara-se de forma muito evidente. Com a descoberta de jazidas de ouro, a grande corrida iria começar, tal como Charles Chaplin retratou em Gold Rush. Rapidamente o número de cidadãos russos foi ultrapassado por americanos e canadianos que, ao contrário do que haviam feito os promyshlenniki, começaram a erguer cidades onde se pudessem instalar enquanto esburacavam montanhas a torto e a direito. 

Alexandre II não se sentia nada, mas nada confortável. Piores do que os americanos eram, para eles, os ingleses concentrados na sua colónia vizinha, o Canadá. Tinha um medo profundo de que fossem os ingleses a provocarem situações de conflito que os levassem a invadir o território sem que os russos tivessem condições de mexer uma palha. Tomou, por isso, uma decisão drástica. Iria propor ao Secretário de Estado dos Estados Unidos, William H. Seward, que comprasse o Alaska. O governo russo discutiu longamente os contornos do negócio ao longo dos anos de 1857 e 1858.

Eduard de Soeckl, embaixador russo em Washington foi chamado a São Petersburgo com a missão de abrir uma frente negocial com os americanos. No Inverno de 1859-60, reuniu-se com vários elementos do governo dos Estados Unidos. E avançou com a pergunta fundamental através do senador William Gwin, um homem de absoluta confiança do presidente James Buchanan, que precedeu Abraham Lincoln: quanto é que os americanos estariam dispostos a oferecer pelos territórios russos na América? A resposta que ouviu não foi particularmente entusiasmante: «Penso que, no máximo, poderemos ir até aos cinco milhões de dólares». Ora, tubérculos! Cinco milhões de dólares pelo Alaska parecia quase uma ofensa. Mas a verdade é que os russos se tinham posto a jeito para que o negócio se transformasse numa pechincha.

O cheque

James Buchanan nunca foi um presidente consensual. Bem pelo contrário. A sua popularidade andava pelas ruas da amargura quando Lincoln o substituiu na Casa Branca. As negociações decorriam com uma lentidão exasperante para os russos, reduzidos a uma quase indigência, e os americanos tiravam proveito disso para se mostrarem o menos interessados possível. A política anti-esclavagista de Lincoln, que ameaçava provocar o levantamento dos Estados do Sul, também foi adiando o processo. Como se sabe, Abraham Lincoln acabou assassinado com um tiro na nuca enquanto assistia a uma peça de teatro, e o seu cargo foi ocupado, até final do mandato, por um traste chamado Andrew Johnson que sempre se interessou mais por estudar os fundos das garrafas de bourbon do que propriamente pelas matérias de Estado. Seward seria obrigado a tomar as rédeas de um negócio inacreditável.

E se julgam que Seward passou por herói durante este episódio da História Universal, estão muito enganados. Seward’s Folly, ou a Loucura de Seward, foi uma frase muito utilizada à altura dos acontecimentos. A opinião pública exigia saber a que propósito o governo do seu país decidira avançar para a compra de uma terra sem eira nem beira na qual até as focas e as lontras já estavam em perigo de extinção. Se era pelo ouro, cada um que arranjasse uma licença e fosse para lá garimpar à vontade. Não era preciso comprar a porcaria do Alaska por causa disso.

Seward estava-se nas tintas para a opinião pública e Andrew Johnson apoiou a sua decisão por completo. Presos a uma completa fraqueza negocial, os russos tentaram receber algo mais do que os tais cinco milhões de dólares e, de facto, conseguiram-no. Foi-lhes passado um cheque de sete milhões e duzentos mil dólares no dia 18 de Outubro de 1867. As contas nunca são muito fáceis de fazer, nem sequer sabemos se exatas, mas algo que representaria, aos valores atuais, cerca de 133 milhões de dólares. Uma pechincha ao preço da petinga, convenhamos. De um dia para o outro, o território dos Estados Unidos cresceu 1.518.800 quilómetros quadrados. Em 1959, o Alaska ascendeu ao estatuto de Estado. O maior dos Estados dos Estados Unidos, por sinal.

Não hesitam em dizer os especialistas que o Alaska vale 150 vezes mais do que os americanos pagaram por ele. Embora se tivesse mantido maioritariamente desabitado até à enorme explosão do ouro de 1896, os estrategas políticos e militares não tinham dúvidas que estava criada a grande base para a expansão económica do país para a Ásia. E tendo em conta as acesas trocas de palavras da última semana, também ninguém negará que Vladimir Putin deve fumegar pelas orelhas ao pensar que podia ser proprietário de uma zona de fortíssima influência bélica, que lhe daria a possibilidade de montar armas de destruição maciça no pátio das traseiras do inimigo americano.

A despeito das vozes que se levantaram nos Estados Unidos em relação à compra de um ror de quilómetros quadrados de gelo e neve, tudo ganhou um brilho bem mais sugestivo a partir do momento em que, além de ser um terreno de grande riqueza aurífera, o Alaska revelou a existência de enormes reservas de petróleo na sua parte mais setentrional. Se pensarmos que o Produto Interno Bruto da região atinge os 44 mil milhões de dólares anuais, os contestatários, mesmo que já desaparecidos há muitos anos, devem dar as suas voltinhas nas tumbas. 

Não se pense, no entanto, que esta foi a única grande compra feita pelos americanos ao preço da uva mijona. Várias décadas antes, no ano de 1803, os Estados Unidos também compraram um belíssimo naco do seu território, dessa vez aos franceses. De facto, a Louisiana era ainda maior do que o Alaska, ocupava 2,1 milhões de quilómetros quadrados, indo desde Montana, no Noroeste, até Nova Orleães, no Sul. Ao todo, acabou por compreender 15 Estados autónomos. O preço? Um bocadinho mais alto do que o do Alaska, algo como 15 milhões de dólares, equivalentes a uns 300 milhões nos dias que correm. 

A cerimónia de transferência do Alaska dos russos para os americanos veio a ter lugar na cidade de Sitka, anteriormente chamada de Nova Archangel. Nesse tal dia 18 de Outubro de 1867, a bandeira do Império Russo foi arreada para que a stars and stripes ficasse ondulando no céu azul frio de uma imensidão branca que muitos continuavam a asseverar que não valia nem um tostão furado…