City-United. Questão Victoriana

Quando, em novembro de 1881, se disputou o primeiro dérbi de Manchester, o City chamava-se St. Marks e o United Newton Heath.

Manchester: pouca cidades do mundo estarão tão ligadas ao futebol como a grande urbe do noroeste de Inglaterra, um centro industrial e económico da maior importância, um dos locais primordiais da Revolução Industrial, a velha Mancunium dos romanos o que vale que, ainda hoje, os seus habitantes sejam conhecidos por macunians.

No universo do futebol, a rivalidade entre os dois clubes de Manchester, o City e o United – que se defrontam amanhã à tarde, pelas 16h30, no El Ettihad – data do fundo dos tempos e é preciso recuar até 1881, em plena época da rainha Victoria, para descobrirmos o primeiro jogo disputado por ambos. 12 de novembro de 1881, para sermos precisos. Bem, façamos uma pequena redondilha. Na verdade, nesse tal dia de novembro em que se iniciou um dos mais cerrados derbis do mundo do futebol, nem City nem United estiveram presentes. Eu explico. Eu explico!

O Manchester City é herdeiro de um clube anterior que tinha o nome de St. Marks; o Manchester United, por sua vez, veio ao mundo com o nome inicial de Newton Heath. Portanto, aquele que foi considerado pelos repórteres locais, que o presenciaram ao vivo, como «a pleasant game», disputou-se entre o St. Marks e o Newton Heath, com vitória dos primeiros por 3-0. O City ainda viria a ter outro nome, pelo caminho: Ardwick. E o frente a frente começou a endurecer por causa de uma competição regional, a Manchester Cup, realizada anualmente para pôr em confronto os principais clubes de Manchester – não estavam à espera que uma cidade gigante como aquela tivesse apenas dois clubes, pois não? Equipas dos arrabaldes, com o peso de Bolton Wanderers, Bury, Oldham Athletic, Ashton United ou Stockport County, eram adversários de peso, apesar de, durante os primeiros anos, o Newton Heath ter conseguido uma série notável de triunfos consecutivos na prova.

A mudança
1892 é um ano importante para os dois clubes de Manchester. Depois de muita insistência, conseguem ser aceites no seio da Football League, passando a ter acesso às competições nacionais. O Newton Eath, mais poderoso, entrou direto para a I Divisão. O Ardwick teve de contentar-se com a segunda.

O Ardwick transformou-se no Manchester City em 1894. O Newton Eath só passou a Manchester United em 1902. Talvez por isso, os adeptos do City gostem de atirar à cara dos seus inimigos de estimação que foram, verdadeiramente, o primeiro Manchester. E quando se encontraram pela primeira vez num jogo a contar para a I Divisão, na época de 1894-95, o Newton Heath esteve-se completamente a marimbar se era o City que tinha pela frente e aplicou-lhe um corretivo de animados 5-2. 

Numa altura em que o futebol era obrigatoriamente amador, e o profissionalismo punido por lei, o City foi apanhado com a boca na botija no ano de 1906. Várias folhas de pagamento surgiram a público, demonstrando cabalmente que muitos jogadores do clube recebiam dinheiro por jogarem futebol. Um escândalo de dimensões dignas de um terramoto. Dezassete jogadores foram castigados e proibidos de voltar a vestir a camisola azul-celeste, entre os quais o núcleo duro que havia vencido a Taça de Inglaterra dois anos antes. Ainda hoje, os historiadores da rivalidade de Manchester, aceitam com naturalidade que foi este o momento em que o United ganhou uma vantagem indiscutível sobre o seu adversário, tornando-se um gigante do futebol inglês e europeu, ao mesmo tempo que o City definhava e levou décadas a recompor-se de tamanho rombo. Ainda por cima, quando a suspensão sobre os jogadores foi retirada, Jimmy Bannister, Herbert Burgess, Billy Meredith e Sandy Turnbull, as principais estrelas do City, impossibilitadas de regressar ao seu clube, aceitaram com alegria o convite para passarem para o outro lado, reforçando o United de uma forma significativa. Curiosamente, se estavam a contar que esta opção por parte dos quatro artistas dos blues viesse a acirrar a inimizade entre ambos os clubes, enganaram-se redondamente. Os adeptos aceitaram com bonomia que os jogadores não tinham outra saída, já que não podiam voltar à sua velha casa. E, assim sendo, os que torciam pelo City passaram a seguir também com o máximo interesse os jogos do United. Basicamente, ora apoiavam um, ora apoiavam outro. Uma estranha forma de vida que só após o final da II Grande Guerra viria a ser profundamente alterada.