Ucrânia 2022, como a história pode ser uma armadilha

A intervenção russa é, sob qualquer perspetiva, contrária ao Direito Internacional.

Por Francisco Gonçalves

Vice-Presidente da Câmara Municipal de Oeiras

Quando, em 1998, Thomas Friedman questionou George Kennan a respeito do alargamento da NATO a leste (Kennan foi o pai da ‘doutrina da contenção’, a estratégia de limitação da, então, URSS na guerra-fria), o velho diplomata respondeu que era “um erro trágico”.

O final dos anos ‘1990 constituiu o auge do poder hegemónico norte-americano. A Rússia podia ser facilmente menosprezada: com uma economia afundada e um estado desorganizado, estava ainda a recuperar do final da Guerra Fria. 

Recorrendo aos níveis de análise de Kenneth Waltz, Homem, Estado e Sistema (Men, State and War, no original), percebemos as causas estruturais e o porquê agora, desta intervenção russa.

Putin, o ‘Homem’, foi transparente no discurso de declaração de guerra à Ucrânia: recordou os compromissos do Ocidente, o sentimento de insegurança com os alargamentos da NATO e falou da Ucrânia como parte do império russo. No passado, já falara do final da URSS como o maior erro geopolítico do século XX. É, pois, um autocrata descontente com a história, da qual tem uma visão imperial, marcado pelo sentimento de insegurança tradicional russo, querendo cristalizar as suas esferas de influência. Não conhece limites para afastar adversários e instrumentaliza ao limite o aparelho de Estado. 

A Rússia, o ‘Estado’, está organizada em torno de um poder executivo forte, com um parlamento controlado e a economia entregue a uma clique empresarial (os oligarcas), a quem se confiaram os despojos internos da queda da URSS. É uma democracia iliberal, sem o quadro de valores que regem as democracias ocidentais. Putin já foi Presidente e primeiro-ministro, o pendor constitucional reside no cargo que ocupa. A alta do petróleo das primeiras décadas deste século, permitiram reforçar poder no Estado central. São estas receitas, e as reservas de divisas que possui, que permitem a abordagem mais musculada na ação externa.

O ‘Sistema Internacional’ é o nível de análise que melhor permite compreender as recentes decisões russas. O sistema internacional hegemónico estável do final da Guerra Fria, que fez dos EUA a hiperpotência, entrou em transição, decorrente do forte crescimento económico chinês dos últimos 20 anos, para uma bipolaridade EUA-China, para um sistema dominado pela China ou, no limite, para uma multipolaridade, naturalmente mais instável, com o elemento adicional de terror do poder nuclear.

A alteração do sistema internacional focou a ação externa dos EUA na Ásia, diminuindo o foco na Europa e Médio Oriente. A retirada da Síria, em 2019, e do Afeganistão, em 2022, fazia crer que os EUA pareciam estar a deixar cair tudo o que não consideravam essencial. 

Podemos estar, pois, perante um erro de perceção da liderança russa que, considerando a história recente, sentia liberdade para uma ação desta dimensão. 

A intervenção russa é, sob qualquer perspetiva, contrária ao Direito Internacional. A carta das Nações Unidas prevê o princípio da não ingerência nos assuntos internos e respeito pela integridade territorial, mas o mundo das potências não é de Kant, é de Hobbes.

Sair desta encruzilhada histórica exigirá regressar ao realismo e, queira-se ou não, olhar também aos interesses russos, a atitude desta assim o impõe. 

Como vem acontecendo, a China sorri: o envolvimento do ocidente e da Rússia num conflito próprio do século XIX europeu, permite-lhe continuar a cavalgar alegremente num século XXI que parece cada vez mais seu…