O problema na Rússia não é (só) Putin

A ação de Putin visa substituir uma ordem internacional fundada em regras por uma outra, fundada na força.

por Francisco Gonçalves

Ainda que a guerra da Ucrânia chegue a um ponto no qual a Rússia fica obrigada a retirar, ‘perdendo’ a (sua) guerra e se acredite na muito difundida ideia que o problema é Putin, pode sentar-se confortavelmente, colocar o cinto de segurança e preparar-se para o embate: vai doer!

É confortável acreditar que o problema é um homem só, retira-se o homem e o problema está resolvido, mas o facto é que retirando Putin da equação, uma outra série de questões surgem, de tremenda dificuldade de resolução.

Em primeiro lugar, é importante afirmar que não será fácil encontrar um sucessor. Putin, sabe-se, vive num círculo de poder curto e fechado, no qual as rivalidades são muitas, e a lealdade é, sobretudo, para com Putin.

Qualquer líder futuro terá de assegurar a lealdade das elites política, empresarial e militar, tal não será fácil, dada a lealdade ser para com o ‘Chefe’.

As comparações com as sucessões da União Soviética são erradas, pois nesta havia culto do chefe, mas o poder estava no partido e este tinha órgãos e uma estrutura coletiva, com Putin, mais ‘Czar’ do que ‘Premier’, a sucessão será mais complexa, com mais tendência revolucionária do que evolutiva.

Este contexto é, naturalmente, mais perigoso: a Rússia continua a ser um território imensamente extenso, com fronteiras complexas. Ao problema atual, a ocidente, devem juntar-se as disputas de fronteira com a China, Turquia, Japão e dos estados da Ásia Central.

Afragilidade do poder de Moscovo criará, em qualquer circunstância, vazios internos e externos. Internamente continua a ter problemas de estabilidade política com as minorias étnicas ou religiosas. Externamente, a sua fragilidade política criará instabilidade nas fronteiras e fará regressar os conflitos do Cáucaso e potenciará o reacender das disputas fronteiriças com os vizinhos asiáticos.

Soma-se, a estas questões, o facto da Rússia continuar a ser a maior potência nuclear do mundo. Ter em Moscovo um poder político frágil, com possibilidade quer de perder controlo efetivo sobre estas armas, não traz qualquer segurança futura.

Neste sentido, não há saída fácil para a situação que atualmente vivemos. Diplomaticamente, sabe-se que nunca se deve deixar uma contraparte sem saída, pelo que, não é avisado humilhar Putin. Militarmente, a superioridade russa é evidente, mas a resistência ucraniana, bem como a extensão do território e a elevada população, faz com que estejam reunidas as condições para gerar um atoleiro no leste europeu.

A atual cúpula russa, criou uma situação complexa e perigosa, que mudou o mundo conforme o víamos. Por mais repugnância que a atual barbárie gere em todos nós, em política negoceia-se com quem está, e em Moscovo estão os atores conhecidos, cuja substituição, para nosso mal, poderá gerar ainda mais perigo.

A ação de Putin, líder de uma potência revisionista, visa substituir uma ordem internacional fundada em regras (na teoria), por uma outra, fundada (apenas) na força. Esqueceu-se de avaliar, por ser um operacional e não um estratega, os danos para o seu país. Numa ordem internacional fundada no poder, continuará subalterno da nova potência, a China, sem um sistema de regras que podem proteger a Federação Russa. Pelo meio, libertou forças que, qualquer sucessor, terá dificuldades para controlar, sem antes solucionar os problemas internos gerados.

No dia 24 de fevereiro, Putin mudou o mundo, reorganizá-lo dará ainda mais problemas do que hoje vislumbramos.