Francisco Miranda Rodrigues. “Para sermos empáticos com alguém que esteja em sofrimento não precisamos de sofrer”

Bastonário dos Psicólogos fala das emoções perante a guerra. Vê melhorias nas escolas, mas SNS continua com falta de psicólogos. Apoio a refugiados não deve depender apenas de voluntários, alerta.   

Desde o início da invasão na Ucrânia que a Ordem dos Psicólogos Portugueses tem emitido recomendações à população sobre como gerir a ansiedade e o medo, as perguntas novas das crianças que, depois da pandemia, voltam a deixar sem respostas simples pais e educadores, e a exposição às notícias que chegam em tempo real dos bombardeamentos e sofrimento. Francisco Miranda Rodrigues, bastonário desde 2017, explica a preocupação com ajudar a população a lidar com imagens de uma guerra vivida ao momento, em direto, com maior proximidade que nunca, e como distinguir as emoções.

“É natural ficar chocado”, diz, alertando no entanto que “para sermos empáticos com alguém que esteja em sofrimento não precisamos de sofrer”. O psicólogo especialista em saúde ocupacional admite um agravamento da ansiedade e do sofrimento psicológico, numa altura em que os impactos da pandemia estão ainda a vir à tona. A preocupação, sublinha, deve ser apoiar quem sofre – os que chegam e os que não conseguem lidar com a angústia, que a guerra torna para muitos existencial.

Vê melhorias na intervenção dos psicólogos nas escolas, onde defende que têm agora um papel importante no combate ao estigma e na integração de refugiados – para evitar até a exposição dos refugiados a uma “retraumatização” ao ser-lhes pedido que contem as suas histórias – mas também para dar segurança aos mais jovens. Alerta que o apoio não deve assentar em voluntarismo e admite preocupação com a falta de psicólogos nos centros de saúde, pouco reforçados nos últimos anos, ao contrário do que aconteceu nas escolas.

Depois de dois anos que deixaram marcas na saúde mental e quando já se falava de uma vaga de problemas psicológicos, que riscos acrescidos trazem a guerra, os impactos económicos e o receio de uma nova recessão que começa a esboçar-se?
Estamos dentro daquele tipo de acontecimentos a que chamamos eventos limite. Uma guerra é um evento catastrófico que necessariamente tem muitos impactos na forma como nos sentimos. É praticamente inevitável. E se no início da pandemia alertávamos que as pessoas não estavam propriamente sozinhas nos seus sentimentos porque o que estávamos a viver levava a que uma grande parte sentisse um aumento da ansiedade – e que para muita gente isso poderia trazer problemas, mais que não fosse, de sofrimento psicológico – nesta situação, pelo tipo de impacto e violência, isso pode ser mais acentuado. Embora olhemos com mais distância do que acontecia por exemplo na pandemia, a verdade é que a violência do que está a acontecer entra-nos em imagens permanentemente pela porta a dentro, além dos outros aspetos indiretos que referia. A guerra tem um impacto económico que nos vai afetar a todos, a uns mais do que os outros como sempre, e sabe-se que em situações de maior impacto económico, se houver situações de perdas de rendimento ou desemprego, teremos um contexto de maior vulnerabilidade para o desenvolvimento de problemas psicológicos, para o aparecimento de algumas perturbações mentais ou o seu agravamento. Nada disto é novo, vivemo-lo no passado e aplica-se aqui mais uma vez e com essa agravante, que é não termos tido tempo de uma forma geral para recuperar do que foi o impacto da pandemia.

Havia além disso a perceção de que muitos dos impactos mentais da pandemia viriam agora mais à tona. Desde o início da pandemia que o alerta era que nos momentos mais agudos, há uma maior reação. Esses sinais estavam a ser agora mais visíveis?
Sim, as pessoas mobilizam os seus recursos para enfrentar as situações e há consequências que aparecem mais a médio prazo. É normal que assim seja e depois a questão é como é que reagimos, se valorizamos, se ignoramos, se conseguimos lidar sozinhos com as sensações que temos e com aquilo em que estamos a pensar ou se precisamos de algum apoio. Isto naturalmente varia de pessoa para pessoa e é o que temos estado a observar. Além dessas necessidades, numa situação de guerra teremos além disto um conjunto de pessoas que sofre de outra maneira e com outra intensidade e para algumas delas não há como evitar determinados impactos. Seja quem está no conflito em si…

Ou quem foge.
Sim. Para quem está na Ucrânia, vive-se uma situação de sobrevivência, em que vemos comportamentos extraordinários face ao que é o dia-a-dia natural, uma resposta à elevadíssima incerteza e ao risco de vida. É impossível, ou não é expectável, que houvesse níveis de ansiedade baixos nestas pessoas, que têm de estar altamente mobilizadas e prontas para reagir. Há uma reação de que não se fala tanto que são maiores níveis de raiva, que numa situação limite acabam por ser uma emoção adaptativa.

Havendo outros conflitos no nosso tempo, esta guerra, pela proximidade com que está a ser vivida, acaba por tornar mais visível essas emoções, até no Presidente ucraniano que tem sido o rosto da resistência ucraniana. Acaba por exacerbar esses sentimentos mesmo quando se observa à distância?
Sim, sem dúvida. Estamos a ter acesso por muitíssimos canais em direto e permanentemente ao que está acontecer. Noutros cenários não nos foram transmitidas tantas imagens disso, pelo menos no dia-a-dia e não houve uma identificação tão forte com as vítimas da agressão. O que não quer dizer que não existiram e sabemos que existiram mas não o vimos da mesma maneira, não nos tocava da mesma maneira.

Esta semana, depois do ataque à maternidade de Mariupol, Volodymyr Zelensky interpelou mesmo os europeus. Disse “vocês viram, vocês sabem”. Mesmo que a guerra não seja aqui, há um apelo direto.
O sermos interpelados diretamente por alguém que sentimos como próximo de nós do ponto de vista de identidade cultural leva naturalmente a um maior envolvimento. Noutras situações, nem o apelo nos chegava nem provavelmente havia a identificação com o nível que existe neste caso. E com isto não faço nenhuma desresponsabilização, não é que esteja bem não termos ligado anteriormente, mas explica como estamos a viver uma situação limite, que a maior parte de nós não tem experiência de viver.

Tal como a pandemia é uma experiência inédita para esta geração. Duas experiências novas seguidas o que trazem do ponto de vista psicológico?
Por um lado algumas pessoas já terão uma forma diferente de lidar com a incerteza do que tinham no início da pandemia. Para outras pessoas, vem “em cima de”, sem que tivessem conseguido reequilibrar-se e desenvolver essas competências. Estamos a falar de acontecimentos que têm essa incerteza em comum e, cada um à sua forma, colocam em causa a segurança, há uma interpelação do “isto também nos pode tocar a nós” e julgo que há muita gente que está a olhar para o conflito e a refletir sobre se o risco físico pode chegar cá, mas naturalmente que são situações diferentes.

Uma cronista nossa escrevia no fim de semana que o filho mais velho lhe tinha perguntado se achava que poderia ser chamado para a guerra. É o reflexo dessa interpelação nas crianças e adolescentes?
Sim e por isso temos tido a preocupação de lançar materiais sobre literacia psicológica dirigida à população e um deles foi sobre como responder a crianças e jovens sobre a guerra. Gostamos de ter respostas para dar mas, mais uma vez, as perguntas são novas e ter uma alguma orientação nesta matéria ajuda-nos a poder responder de forma a reduzir a incerteza e transmitir alguma sensação de segurança às crianças. Disse-o no início da pandemia e volto a dizer agora: para as crianças e para os jovens é muito importante essa segurança que lhes é passada pelas suas figuras de vinculação, os pais ou outras. É protetor. E conseguirmos fazer isto será mais difícil para aqueles que se viram afastados dessas figuras, as crianças e jovens que tiveram de largar as suas casas, e para os quais é preciso encontrar estratégias alternativas. Por muito que estejamos a ver as imagens, é muito difícil de imaginar e perceber o que poderão estar a sentir as pessoas que tiveram de abandonar tudo, que saíram de casa com uma mochila, situações em que vemos os filhos sair sozinhos por razões diversas. 

Num dos materiais que a Ordem divulgou diziam que é normal, perante essas imagens que passam na televisão, um testemunho que se ouve, chorar. Quando é que um comportamento ou reação passa a não ser o normal numa situação destas e a que sinais podem, por exemplo, os pais ou amigos estar atentos?
A linha que separa uma coisa da outra é comum a outras situações. No fundo é quando deixamos de conseguir lidar com as coisas que temos de fazer no dia-a-dia, seja do ponto de vista do trabalho, seja das relações das pessoas com quem vivemos, familiares e amigos. Ou porque aumenta o conflito ou porque começamos a dormir mal ou o nosso desempenho é afetado porque não nos conseguimos concentrar muito bem. São situações de alerta mas no fundo será a manutenção de um conjunto de reações e emoções que nos impeçam de viver com níveis de bem-estar psicológico confortáveis, sempre tendo presente a situação de cada um e como está a ser a resposta adaptativa. Se estivéssemos numa situação de conflito ou guerra aqui, ou os nossos amigos ou familiares estivessem envolvidos no conflito, as razões que estavam a levar a que nos sentíssemos de determinada maneira eram essas agressões concretas. Seria mais natural que tivéssemos níveis de ansiedade maiores, maior raiva, que pudéssemos entrar mais facilmente em conflito mas provavelmente numa situação dessas o sofrimento até podia ser vivido de outra forma porque estávamos a responder ao que estávamos a viver. Aqui, a questão acaba por ser diferente.

Há um sofrimento pelos outros, uma mistura entre empatia e medo?
Sim. As emoções acabam por refletir sempre o significado que damos às situações. É importante que consigamos diferenciar o que é connosco e o que é com os outros. Empatia não é sentir o mesmo que os outros. Para sermos empáticos com alguém que esteja em sofrimento não precisamos de sofrer. Fazer esta separação não é ignorar o sofrimento do outro. E no fundo a empatia, a compaixão, são respostas adaptativas que temos perante o sofrimento e que nos mobilizam.

Para ajudar, por exemplo, qual é uma das estratégias que sugerem para lidar com os sentimentos.
Sim. Mas fazendo esta distinção entre empatia e sofrimento, ao mesmo tempo isto não nos deve fazer levar para aquele discurso do: “Isto é um disparate, pessoas que têm as suas casas, que têm tudo aqui, não deviam estar a sentir-se assim. Os outros coitados sim, agora vocês não.” É natural que tenhamos sentimentos de tristeza e preocupação perante quem está a sofrer, são respostas adaptativas diferentes, mas é o natural. Estranho seria que isto não nos tocasse de todo. Nesse sentido, é muito mais estranho quando normalizamos e é como se não fosse nada connosco.

Nesse sentido, a apatia pode ser um sinal de alerta maior?
Sim, pode ser um sinal mais preocupante ou relevante. Não significa que as coisas não estejam a ter impacto, mas é preciso perceber o porquê dessa apatia.

Já estão a chegar relatos desses impactos às consultas, aos psicólogos escolares?
Não tenho ainda dados que sejam fidedignos para partilhar. Os dados que temos são empíricos, dos relatos que vão chegando de algumas colegas e daquilo que sabemos da literatura nestas situações. O que vai chegando avulso é que este é naturalmente um assunto que as pessoas colocam em cima da mesa nas sessões que têm com os psicólogos nos mais diferentes contextos, porque é causa de maior ansiedade, a uns mais do que outros, mas porque no fundo estão preocupadas com a guerra. Mas mais uma vez o estranho é que não estivessem. Eu também estou preocupado. Não vejo como não estar preocupado.

Como dizia, é uma situação nova. Um dos conselhos que dão para gerir as emoções no dia-a-dia passa por manter rotinas, não antecipar muito.
Sim, a nossa preocupação foi muito dar algumas ideias sobre como gerir emoções numa situação de crise que é nova, desde logo essa ideia de que a naturalidade que é sentirmo-nos chocados. E se há pouco falávamos de apatia, uma coisa é não reagir, outra é um certo entorpecimento, a pessoa ficar quase sem reação perante algo que parece surreal. Manter uma rotina ajuda, mas muitas pessoas terão sentimentos de ansiedade e angústia, que para alguns será algo existencial e específico, o perguntar o que é isto tudo, qual é o meu papel.

O que mundo é este, como se explica o mal?
Sim. As pessoas tendem a categorizar entre os bons e os maus e isso numa situação de guerra é muito mais comum porque reduz a incerteza. Num exemplo limite, é imaginarmos o que seria estarmos num cenário de guerra sem saber quem são aqueles que nos podem em princípio agredir. Se categorizarmos, reduz um pouco a ansiedade para níveis mais aceitáveis para estarmos atentos e a reagir mas sem ficarmos descontrolados. Seria caótico não perceber quem é quem.

Isso contribui para a importância da propaganda em tempo guerra?
Sim. Agora não estando nesse teatro de operações, devemos ter o cuidado de não tomar o todo pelas partes e conseguirmos não estigmatizar nem generalizar apreciações porque essa é uma forma de estarmos a ser violentos ou de criar condições para mais violência.

A presidente da Cruz Vermelha alertou no início desta semana para relatos de bullying sobre crianças russas nas escolas portuguesas. É um dos reflexos dessa polarização?
Sim e deixo também essa alerta. Em Portugal haverá quem distinga suficientemente bem o ucraniano do russo? Provavelmente isso está a ser feito a todos, quando seria mal feito a quem quer que fosse. Os riscos são muito grandes tanto no número de pessoas que podem ser atingidas como na gravidade, independentemente da nacionalidade.

Têm chegado à Ordem relatos de discriminação nas escolas?
A mim em particular não. O que fizemos na Ordem foi enviar aos psicólogos escolares um programa específico que construímos para intervenção neste cenário. Os psicólogos nas escolas trabalham com programas de desenvolvimento de competências sócio-emocionais e disponibilizámos um programa com atividades a desenvolver com as crianças e jovens para poderem aplicar de imediato, o que habitualmente não é algo que façamos – damos orientações e existe autonomia técnica para os psicológicos desenvolverem as suas práticas. Neste caso, excecionalmente, pareceu-nos que era importante e nem na pandemia o tínhamos feito desta forma. Entendemos que era importante haver desde já esses materiais para os psicólogos da educação os poderem aplicar nas escolas se sentirem que é necessário, tanto na dimensão da explicação do que está a acontecer e das emoções associadas à guerra, como aspetos relacionados com a integração que virá a ser necessária de crianças e jovens que vêm da Ucrânia.

Pode haver a curiosidade, até dos novos colegas, de perguntar como era a vida, com foi a fuga. Pode ser traumatizante? 
Há muitas formas, algumas muito bem-intencionadas, de as coisas não correrem bem e um dos riscos de facto é a retraumatização pelo facto de se estar a querer pôr as pessoas a falar. Se isto for feito por quem não o sabe fazer, e ter estas conversas com pessoas que viveram situações traumáticas é um trabalho especializado, pode dar maus resultados. Nas escolas, deve haver o cuidado sobretudo de permitir que as crianças consigam integrar-se no dia-a-dia e trabalhar estas emoções com a comunidade escolar.

Há hoje psicólogos suficientes nas escolas?
Sim, felizmente a situação nas escolas está bastante melhor do que era. Não quer dizer que não existam em vários agrupamentos ainda necessidades, mas está francamente melhor em termos de número de psicólogos e tomara nós que, ao nível dos centros de saúde, tivesse havido a evolução que houve nas escolas. 

Quantos psicólogos há atualmente nas escolas? 
Há cinco anos tínhamos cerca de 700 e hoje em dia teremos perto de 1700. Nas escolas, neste momento, o maior dos problemas reside no facto de os psicólogos terem de estar a dar resposta a situações que deviam estar a ser respondidas nos centros de saúde. E aí alerto para uma coisa: não são os psicólogos das escolas que devem dar resposta por exemplo a situações que venham a ser necessárias por parte das crianças que venham da Ucrânia, que estejam a ser integradas mas que possam ter problemas e sofrimento psicológico até pelos traumas que sofreram. Esse acompanhamento não deve ser feito no contexto na escola. Na escola é importante que isso possa ser sinalizado, mas não é na escola que deve ser feito o acompanhamento e por isso é preciso que sejam desde já preparadas respostas e que não sejam apenas voluntaristas.

Não concorda com esses movimentos mais espontâneos?
No início da pandemia alertei para isto e agora digo o mesmo: embora seja positivo que muitos profissionais estejam disponíveis para apoiar voluntariamente quem precisa de apoio nesta área, o ideal e necessário é termos intervenções que possam ser continuadas, sustentadas no tempo e que estejam integradas para que, se necessário, haja um encaminhamento rápido no sistema de saúde e no Serviço Nacional de Saúde em particular e não se corra o risco de as pessoas deixarem de ter apoio ao fim de algum tempo. Claro que, em certas situações, o voluntariado pode dar uma resposta, mas não deve ser a resposta. E mesmo numa situação de crise e emergência temos hoje felizmente em Portugal resposta instalada em vários serviços, desde logo no INEM e nas forças de segurança e a Ordem pode ativar a bolsa de emergência e catástrofe, mas tudo isto deve ser feito sempre num quadro integrado da Proteção Civil que permita o encaminhamento atempado das pessoas que precisem para os serviços de que necessitam. Temos de evitar que se torne o caos e integrar tudo na resposta que o Estado português está a garantir em conjunto com as instituições europeias.

Nos centros de saúde, havendo poucos psicólogos, receia que se desviem recursos destapando outras necessidades da população como aconteceu na pandemia?
Neste momento, havendo tão poucos recursos, não há muito mais para destapar. Entrámos na pandemia com pouco mais de 250 psicólogos nos centros de saúde. Segundo os números do próprio Ministério, com os contratos “covid” de quatro meses foram colocados 60 e tal psicólogos no SNS, uns terão sido em centros de saúde e outros não. Significa que hoje ainda nem em todos os concelhos existe pelo menos um psicólogo nos cuidados primários. Precisávamos pelo menos de duplicar, que é a proposta que temos feito, aumentando progressivamente para cumprir os rácios recomendados ao Governo [um psicólogo por 5000 habitantes]. Não é preciso fazer grandes contas para perceber que continua a haver uma necessidade enorme sem haver uma indicação clara de que vai ser feita alguma coisa para a suprir.

Estão previstos investimentos na área da saúde mental no Programa de Recuperação e Resiliência (PRR). Não está otimista? 
O PRR, no que diz respeito à saúde mental, é muito importante e virá permitir investimentos que já deviam ter sido feitos há 20 anos e estavam no Plano Nacional para a Saúde Mental há muito tempo. É muito positivo e algumas das respostas já estão a ser montadas, mas são basicamente destinadas às pessoas que sofrem de doença mental. Não são destinadas ao conjunto enorme de pessoas que, não sofrendo de doença mental, está em sofrimento psicológico, que queremos que não venham a sofrer de doença mental e para isso precisam de um acesso ao nível dos centros de saúde a consultas de psicologia para uma intervenção rápida, breve, de proximidade e que evite outros problemas.

São os casos em que a resposta possível acabam por ser ansiolíticos, medicamentos para dormir?
É o que acaba por acontecer por falta destas respostas. Outra área em que os psicólogos nos centros de saúde podiam ter intervenção e que já não tem tanto a ver diretamente com a saúde mental é nas questões comportamentais que afetam a saúde e aí há muito trabalho por fazer. Grande parte das doenças que nos afetam a todos são de causa comportamental, têm que ver com os nossos hábitos de vida. Um dos trabalhos que os psicólogos podem e devem fazer é intervir quando é preciso alterar comportamento de forma a prevenir doença ou remediar. Exemplos importantes são as mudanças de estilo de vida associadas à obesidade ou diabetes e intervindo junto das pessoas teríamos ganhos de saúde. 

E também aí haverá impactos da pandemia. 
Sim, e o que nos reportam os colegas é a incapacidade total de resposta a essas situações. Os tempos de espera são longuíssimos.
Tem falado de seis meses de espera para uma primeira consulta de psicologia. Mantém-se esse cenário?
Mesmo quando vemos que são seis meses, e usando uma expressão um pouco exagerada, já é um número um pouco martelado, porque já se encontraram “n” estratégias para só colocar em lista de espera pessoas que deviam ter resposta imediata. As outras já não entram sequer para a lista. E há outras que já nem procuram porque já não contam com isso. Ou os médicos acabam por ter de tomar decisões: envia para uma lista de espera que sabe que é muito grande ou receita medicação e psicofármacos? Não são escolhas fáceis.

Já há dados sobre se há um aumento da toma de ansiolíticos?
Os últimos dados já em pandemia apontavam um aumento do consumo de psicofármacos mas é o expectável, porque não há milagres. Se não há outras respostas a serem implementadas…

Um médico não vai deixar um doente sem dormir se o pode ajudar de imediato com medicação.
Pois, assim não vejo que haja outra forma, mas podemos fazer mais. Na atual situação, disponibilizámo-nos de imediato junto dos Ministérios da Saúde, Educação, do Trabalho e do gabinete do primeiro-ministro para colaborar, já tivemos algumas reuniões e neste momento estamos a aguardar que tomem decisões sobre o que pretendem implementar efetivamente em termos de respostas que implicam psicólogos, sendo que aquilo com que estou menos otimista e mais preocupado é de facto com o contexto de saúde, onde não tenho sinal de que alguma coisa vá acontecer dentro desta abordagem de que estou a falar, sem prejuízo do investimento que está a ser feito na área da doença mental e que é seguramente muito importante. O que é preciso perceber é que toda esta outra parte é uma parte enorme e que se não tiver intervenção alimenta as necessidades da outra e nunca saímos disto. Vamos estar sempre a ter de aumentar o outro lado.

Quando comparam a realidade com outros países, Portugal está muito atrasado? 
Dependerá sempre dos países com que nos comparamos, mas no geral não estamos e estes momentos também nos devem fazer olhar para o mundo e reconhecer que vivemos na parte mais desenvolvida e beneficiada. Isto não é tudo mau nem tudo bom. Não acho que devamos entrar no discurso de que falta tudo. Não falta tudo, há muita coisa bem feita no país, há respostas que têm vindo a ser implementadas. Já falamos há tempo suficiente para poder dizer que na primeira entrevista que dei ao i como bastonário (em 2018) havia falta de psicólogos nas escolas e entretanto foi feito um caminho. Há outros problemas como a garantia de que é possível ser feito um trabalho continuado por parte dos psicólogos das escolas e, já mais fora da esfera da atuação da Ordem, questões laborais, desde logo a precariedade existente, que é muito grande nas escolas. Tendo havido melhorias com o PREVPAP (programa de regularização extraordinária dos vínculos precários na Administração Pública), não acompanhou o aumento de psicólogos. Mas há melhorias substanciais, assim como se avançou na Saúde e hoje já quase todos os hospitais do país têm serviços de psicologia a funcionar de forma autónoma, coisa que não existia no passado recente. 

Durante a pandemia, houve investimento na saúde ocupacional, mesmo nos hospitais com apoio psicológico às equipas. É outra área com avanços?
Sim e não só na saúde. Temos sinais claros de que particularmente as empresas de média-grande e grande dimensão estão cada vez mais a tentar dar alguma resposta na área da saúde mental e de prevenção dos riscos psicossociais nos locais de trabalho. A pandemia o que fez foi tornar as situações muito visíveis, isso criou uma pressão enorme para haver uma resposta e essa resposta passou a existir. É bom que agora não se perca e penso que este é um caminho que está a ser feito não só cá mas em todo o mundo mais desenvolvido. Sentimos isso até nas candidaturas ao Prémio Healthy Workplaces – Locais de Trabalho Saudáveis, atribuído pela Ordem, em que aumentaram substancialmente as candidaturas. Pode ser simbólico, mas é sinal de que há mais atenção e um sinal de que vale a pena investir. Na Ordem temos feito um esforço muito grande de promover a literacia das pessoas e penso que à medida que vão estando mais informadas e cientes dos riscos, isso vai fazer com que se tornem mais exigentes com o que são locais de trabalho saudáveis e com o que precisam no seu dia-a-dia para manter o bem-estar e um maior equilíbrio. Nos EUA já vemos movimentos em que as pessoas preferem abandonar o local do trabalho quando acham que não são respeitadas quanto aos seus direitos básicos de bem-estar. Temos uma população muito mais sensível a isso, o que de certa forma também pressiona a mudança.

Um dos exemplos é a luta pela “direito a desligar”. Fizeram esta semana um alerta sobre a cobertura mediática na pandemia e já aconselharam a população a evitar uma exposição excessiva. Como na pandemia, temos debates que se prolongam noite dentro, além das redes sociais que não dormem. 
A exposição excessiva tem de facto consequências e creio que não há muito a fazer a não ser sensibilizar as pessoas para que tenham consciência dos impactos que pode ter essa exposição a informação permanente, nomeadamente desta natureza. Com isto não estamos a dizer “alheiem-se”. Em nenhum momento dizemos “não vejam”, o que recomendamos é que haja uma moderação. E mesmo à comunicação social o que dizemos não é “não passem”: é essencial que exista informação a circular, transparência.

Não fazendo a apologia da censura, mudava alguma coisa?
É complicado porque já não precisamos de ligar a televisão. Quem tem o computador ligado ou o telemóvel está permanentemente a receber notificações e a clicar para saber mais. É quase impossível não o fazer. Tem a ver com o funcionamento dos processos mentais e com uma coisa a que se chama a heurística da disponibilidade, que é o nosso cérebro admitir automaticamente que aquela informação é importante para nós. Decide que se está mais informação disponível, é porque é importante. O que é importante perceber é, com isso, acabamos por poder acentuar sensações com base nessa escalada de informação permanente para além daquilo que é a realidade. Existe a realidade e a nossa perceção e quando fazemos esse alerta é para que haja uma sensibilização para a diferença entre a realidade e como se forma a nossa perceção da realidade e que cuidados podemos ter para, continuando a ter acesso aos factos, fazê-lo de uma forma que reduza o sofrimento causado por essa exposição. Não me parece que numa situação como estamos possamos falar em evitar completamente o sofrimento mas devemos tentar controlar o que podemos controlar.

Estabelecer regras por exemplo para proteger o sono?
Sim, dar um espaço. Pensar que, se possível, pelo menos uma hora antes de dormir não vou estar a ver mais coisas – a maioria das pessoas não faz isto. Conseguir fazer isto protege de alguma forma e não significa que saiba menos e que não se tenha acesso a toda a informação, porque isso é essencial. Se há coisa que precisamos de fazer é trabalhar com as pessoas para que sejam capazes de distinguir a informação, ser críticas, distinguir fontes, o que é fidedigno e o que não é, e não eliminar o acesso à informação, isso de todo.