Mariupol. Milhares permanecem encurralados numa cidade sem nada

Sem água ou energia, usam lenha para se aquecer. No Telegram, um grupo partilha as informações que se conseguem obter de quem está na cidade. Comunicações são breves. Primeira coluna de carros conseguiu sair ontem rumo a Zaporizhzhia, demasiado tarde para mais de 2500 mortos.

Não há água potável ou medicação para mais de dez dias. Não há sítio onde possamos encontrar comida. As pessoas têm de usar lenha para fazer fogo e cozinhar o que têm. Não há higiene disponível. Temos apenas um bocado de água para lavar as mãos e é preciso fazer um ou dois quilómetros para a encontrar”.

A mensagem gravada por um elemento dos Médicos Sem Fronteiras em Mariupol no passado sábado, divulgada ontem pela organização não governamental, dura pouco mais de dois minutos e acaba com um corte, numa altura em que muitos familiares relatam não conseguir notícias de quem permanece na cidade que se tornou o coração da tragédia humanitária na Ucrânia. Também lá, diz este membro dos Médicos Sem Fronteiras, muitos não sabem o que se passa no resto do país ou sequer na cidade.

“Só quem tem rádio, e são muito poucos, consegue ter alguma informação sobre qual é a situação mesmo dentro de Mariupol. As pessoas perderam o contacto com os familiares e isto é assim há mais de uma semana. Não sabem se estão vivos ou não. Vimos pessoas que morreram por falta de medicação e muitas que foram mortas ou ficaram feridas ficam caídas no chão”.

Ao 19º dia da ofensiva russa, um corredor humanitário acordado entre Moscovo e Kiev permitiu pela primeira vez a saída de Mariupol de uma coluna de pelo menos 160 carros com civis, com um caminho de 225 quilómetros e vários check-points russos a percorrer até ao destino fixado: Zaporizhzhia. Mas a ajuda humanitária voltou a ser bloqueada, disse Kyrylo Tymoshenko, diretor do gabinete do Presidente ucraniano. Segundo o Kyiv Independent, há três dias que ajuda humanitária, comida, água e roupa, não consegue entrar na cidade, onde permanecerão encurraladas 400 mil pessoas.

As autoridades ucranianas falam de 2500 mortes em Mariupol desde o início da invasão, a cidade com maior número de baixas. Ontem ficou a saber-se que uma das grávidas fotografadas no ataque à maternidade na passada quinta-feira não sobreviveu. A informação foi avançada por uma jornalista ucraniana a quem Evgeny Maloletka, o repórter ucraniano ao serviço da AP que publicou as imagens que chocaram o mundo, enviou essa mensagem.

Segundo a Associated Press, a morte foi confirmada também por Timur Marin, cirurgião em Mariupol, relatando que a mulher, que não foi identificada, ficou com a pélvis esmagada, a anca deslocada e que após um parto de cesariana o bebé não tinha sinais de vida.

“Matem-me”, pediu a mãe, em estado crítico, acabando por morrer ao fim de 30 minutos de tentativas de reanimação.

A segunda mulher grávida que aparece nas imagens registadas por Evgeniy Maloletka, Marianna Podgurskaya, conhecida por ser blogger de moda e atacada desde a semana passada pelo regime russo – que alega ter sido tudo uma encenação do batalhão de Azov, a milícia de extrema-direita perseguida por Putin na senda de “desnazificar” a Ucrânia – terá tido a filha ainda na quinta-feira à noite. Chamaram-lhe Veronika em honra de Nike, deusa grega da Vitória.

A solidariedade no Telegram Se estas são as histórias que chegam de Mariupol, muito, se não quase tudo o que se passa na cidade permanece longe do alcance.

Nas redes sociais, pedidos de informação de familiares que durante dias não conseguem contactar com os seus são encaminhados para um grupo no Telegram, com mais de 86 mil membros, onde se juntam imagens e informações que vai sendo possível recolher sobre “Mariupol agora”, que uma rua ou um prédio resiste, que outros não.

“Familiares ligaram. Casa inteira (morada). Apartamentos sem vidros. Vivem na cave. Frio, humidade. Muitas pessoas começam a ficar doentes (como infeção respiratória aguda, quem irá determinar agora). Comem e bebem quando está disponível”, lia-se numa mensagem partilhada ontem. “A irmã da minha mãe ligou. O quarteirão está sossegado. A ligação foi interrompida quando começou o bombardeamento”.

Ao final do dia, chegava a mensagem de que os primeiros residentes a sair de Mariupol tinham sido recebidos num ponto de acolhimento de migrantes em Zaporizhzhia, acolhidos por psicólogos e médicos. Mas nada é dado como seguro, pois toda esta região é alvo do cerco russo.

Ao quarto dia de negociações entre Kiev e Moscovo, que acabram adiadas para esta terça-feira no que foi descrito como uma “pausa técnica”, houve novos bombardeamentos e baixas e ameaças russas de ataque a quaisquer reforços militares do Ocidente. Em Kharkiv foram destruídas 600 casas, revelou o município. Nos subúrbios de Kiev, o ataque a uma zona residencial fez dois mortos. Segundo as autoridades ucranianas, 150 mil pessoas conseguiram escapar de zonas sob ataque através dos corredores humanitários. 

Com as acusações de crimes de guerra a somarem-se, o Tribunal Penal Internacional de Haia deverá apresentar uma primeira resolução esta quarta-feira, avançou ao final do dia a imprensa ucraniana. Em causa, as acusações de genocídio nas regiões separatistas de Luhansk e Donetsk, o argumento do Kremlin para a operação no país.