A múmia, o espelho e um navio afundado

Se o mundo acabasse amanhã e só sobrevivessem estes 100 objetos, teríamos neles uma amostra razoável de dois milhões de anos de vida na Terra.

Fundado em 1753, o Museu Britânico é mais do que uma venerável instituição londrina: é uma espécie de imensa arca que guarda a memória do mundo. Entre as 80 mil obras expostas (menos de 1% do seu acervo de 2 milhões de peças), há artefactos tão famosos como a Pedra da Roseta, encontrada no Egipto pelos sábios franceses comandados por Napoleão mas logo surripiada pelos britânicos; os controversos mármores do Pártenon; ou o mais emblemático jogo de xadrez que se conhece, esculpido em dente de morsa no século XII numa ilha escocesa, os Lewis Chessmen.

Não terá sido fácil para Neil MacGregor, historiador da arte e antigo diretor deste museu, escolher, entre as 80 mil peças expostas, as 100 mais representativas da história do mundo. Mas passou o desafio com distinção – e assim nasceu A History of the World in 100 Objects (Uma História do Mundo em 100 Objetos), editado em 2010 pela Allen Lane, uma chancela da Penguin que é sinónimo de qualidade.

Na introdução – que nos fala da «poesia das coisas», da «sobrevivência das coisas», das «biografias das coisas» e dos «limites das coisas» – MacGregor deixa clara a sua intenção: «decifrar as mensagens que os objetos comunicam através dos tempos». A seleção dificilmente poderia ser mais variada: uma ferramenta de pedra da Pré-História, uma múmia, um papiro com problemas de matemática, porcelanas e jades da China, mapas, instrumentos científicos (como o cronómetro do Beagle, o navio que levou Darwin às Galápagos e à Austrália) e um cartão de crédito VISA. Se o mundo acabasse amanhã – esperemos que não! – e só escapassem estes 100 objetos, teríamos aqui uma amostra razoável de dois milhões de anos de vida na Terra e de evolução da humanidade.

Encomendei A History of the World in 100 Objects através de uma livraria online e recebi-o numa quarta-feira. O Correio da Manhã desse dia dava conta do naufrágio do Felicity Ace ao largo dos Açores com milhares de carros novos a bordo. «A embarcação estava a ser rebocada na sequência do incêndio que deflagrou a 16 de fevereiro, mas começou a adornar e agora jaz a mais de três mil metros de profundidade», dizia a notícia. E concluía: «No interior estão mais de 1100 Porsches, 189 Bentleys, perto de 100 Lamborghinis e milhares de Audis e Volkswagens. Os prejuízos ascendem a 400 milhões de euros». Que desperdício!

Há coincidências curiosas. Ou até mais do que isso. Mal pousei o jornal, abri o meu livro novo ao acaso. Concretamente na página 317, que fala de um espelho de bronze japonês feito há cerca de mil anos. O texto começa assim: «A maioria das pessoas já atirou uma moeda ou duas para um poço dos desejos ou para uma fonte, para dar sorte. Todos os dias, os turistas atiram para a famosa Fontana di Trevi, em Roma, moedas num valor que ascende a três mil euros para garantir boa sorte e um regresso a Roma». A parte mais interessante vem a seguir: «Há milhares de anos que as pessoas vêm atirando objetos valiosos para a água. É uma compulsão extraordinária, e não têm sido sempre moedas atiradas despreocupadamente para satisfazer um desejo; no passado, tratava-se frequentemente de um apelo extremamente sério aos deuses».

O espelho japonês exibido no Museu Britânico e escolhido por MacGregor para o seu livro foi feito em Quioto e encontrado na piscina de um templo. Quem sabe, quando no futuro mergulhadores de depararem com os Porsches, os Bentleys e os Lamborghinis afundados com o Felicity Ace, vão pensar também: ‘Que bela dádiva aos deuses!’. E de facto, nestes tempos atribulados que vivemos, tínhamos todos os motivos para os querer apaziguar.

2034
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Top Seller

Ainda antes do deflagrar da guerra na Ucrânia, dois antigos militares (Ackerman foi fuzileiro, Stavridis foi comandante supremo na NATO) imaginaram como será a Terceira Guerra Mundial. «Enquanto se preparava para o ataque russo contra as fortificações da sua ilha, não imaginara que os aviões indianos tinham intervindo pela paz afundando um porta-aviões chinês e destruindo um esquadrão de caças americano. Tragicamente, um único piloto desse esquadrão escapara aos caças de interceção indianos e às defesas antiaéreas chinesas, largando a sua ogiva sobre Xangai. Após todos estes meses, a cidade permanecia uma área devastada carbonizada e radioativa. A contagem de mortos excedera os 30 milhões. Com os ataques nucleares, os mercados internacionais entraram em queda livre. As plantações não sobreviveram. Espalharam-se doenças infecciosas. O envenenamento radioativo prometia contaminar gerações.» Um cenário apocalíptico, que nunca pareceu tão próximo.

Neve interior
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Húmus

«O céu é uma fenda.Trovejei sempre nos subúrbios de Deus.Vi fugir dos templos animais horrendos e crianças vasculhadas como uma gruta». É um mundo pouco acolhedor – povoado por doenças, medos, agonias – o que nos descreve este enfermeiro-escritor; mas também salpicado de referências literárias, artísticas, musicais, que ajudam a mitigar o desencanto. Como escreve outro poeta, António Carlos Cortez, no prefácio: «Decepção, desilusão, esta poesia coloca-se numa posição (e coloca-nos a nós com ela) incómoda. ‘No hospital’, a partir desse não-lugar, é que vemos a grande noite do mundo. Um mundo doente, anquilosado, feito de arestas, de gumes, isto é, com imagens e palavras próprias desse mundo, dele retiradas e dadas ao leitor numa bandeja não de ouro, mas de ferro, feita, pois, do peso do real».