A república em Inglaterra. Os Cabeças-Redondas fizeram rolar a cabeça do rei

No tempo em que as decapitações eram o pão nosso de cada dia nas grandes cortes da Europa, Carlos I viu a sua cabeça separada dos ombros para que, no lugar da monarquia, surgisse uma república governada por um homem de poucos escrúpulos – Oliver Cromwell.

Às vezes o universo esquece-se, mas a Inglaterra já foi uma República. Durante exatamente 11 anos. Chamaram-lhe o English Interregnum. Tão ciosos que são os ingleses com a sua rainha, Elizabeth Alexandra Mary, Isabel à portuguesa, segunda do nome, que acho que eles próprios gostam de empurrar esse período da sua História para debaixo do tapete com o restante cotão. Ora bem, tudo começou com o regicídio de Carlos I, em 1649. Um Stuart, este Carlos, filho de Jaime IV da Escócia, na altura em que ainda a Inglaterra e a Escócia eram reinos separados. Aliás, foi Jaime que os reuniu, já que, na vizinha Inglaterra, a primeira rainha Isabel, apesar do seu destempero e de ter dado início ao maior império naval do mundo, se foi desta para melhor sem herdeiros, oferecendo de bandeja o trono ao filho da sua prima direita, Maria dos Escoceses, prima essa que tratou de mandar decapitar em Great Hall, uma dependência do palácio real, no dia 7 de Fevereiro de 1587. Motivo: traição. Estava na moda.

Ainda faltavam umas décadas valentes para que o médico francês Joseph-Ignace Guillotin inventasse a guilhotina, pelo que o espetáculo de cortar cabeças à machadada era um bocado badalhoco, if I may say so, mas ainda assim o povo vibrava como viria a vibrar no tempo em que os ingleses se deixaram desse hábito um tudo nada disgusting para ir aos molhos para os estádios de futebol e de rugby. Não há dúvidas que a criação de monsieur Gillotin veio trazer um pouco mais de civismo e de higiene a um hábito que estava profundamente enraizado tanto em Inglaterra como em França.

Mas não deixemos Carlos I pelo caminho. Não que seja uma figura extremamente interessante, mas é fundamental para o desenvolvimento desta narrativa. Tendo nascido na Escócia, a 19 de Novembro de 1600, mudou-se com o pai para Londres, três anos mais tarde, quando este se tornou o primeiro rei de Inglaterra, Escócia e Irlanda, assim mesmo, tudo junto. A coroa caiu-lhe no colo aos trambolhões por via da morte prematura do irmão mais velho, e herdeiro ao trono, Henry Frederick, Príncipe de Gales, um tipo descrito como bastante culto, para a brutalidade da época, dado à escrita e à música, que resolveu apanhar a febre tifoide precisamente durante a boda da irmã Elizabeth, estragando muito desrespeitosamente a enorme festarola que se desenrolou no Palácio de Whitewall, um forrobodó de dias a fio de bailes de máscaras e sem elas, fogos-de-artifício, batalhas navais a fingir no Tamisa e banquetes de fazer babar de inveja Pantagruel e seu filho Gargântua.

A populaça chorou amargamente o desaparecimento deste seu bem amado príncipe, mais de um milhar de pessoas acompanharam o cortejo fúnebre até à Abadia de Westminster, boatos correram à trouxe-mouxe sobre a possibilidade de ter sido envenenado, e o irmão Carlos, muito dado a flatos, caiu de cama doente, o que, como se imagina, criou um clima de preocupação para todos menos para o rei_Jaime que odiava funerais e se recusou terminantemente a assistir ao do filho. Foram tantas as insistências formais e oficiais para a sua comparência nas exéquias que o cadáver ficou quatro semanas a apodrecer no Palácio de St. James, Enfim, feitios.

 

Perdendo a cabeça

Às duas da tarde do dia 30 de Janeiro de 1649, uma terça-feira, pelos vistos, Carlos I tinha perdido a cabeça. E literalmente, entenda-se. Philip Henry, um clérigo e pregador bem cotado em Londres, assistiu ao acontecimento in loco. Na sua descrição, mais tarde publicada, Carlos rezou uma oração antes de lhe puxarem os braços para trás e lhe colocarem o pescoço no cadafalso. O carrasco fez um trabalho limpinho, separando-lhe a cabeça dos ombros num só golpe bem medido. Depois, os cidadãos presentes, resolveram molhar os lenços no sangue derramado como quem faz sopinhas de pão num caldo verde para levarem para casa uma recordação do espetáculo.

Mas, enfim, que tinha feito Carlos para ter sido decapitado dessa forma, por mais que a moda das decapitações percorresse excitadamente as grandes cortes da Europa? Não era propriamente um moço humilde quando subiu ao trono em 1625, tinha um feitio danado, e ficara ainda mais cabeça-de-mula desde que fora obrigado a passar seis meses em Espanha à espera de uma resposta para o seu pedido de casamento com a princesa Maria Ana de Habsburgo. Levou um redondo não e remediou-se com Henrietta Maria de Bourbon, com a qual formou um casal bastante distante. Carlos considerava-se um rei por vontade divina, o Rei dos Reis, e cedo teve problemas sérios com o Parlamento por não querer abdicar da Royal Prerogative, que lhe permitia governar como lhe dava na realíssima gana e, sobretudo, algo muito mais embirrento para os seus súbditos, proclamar novos impostos e aumentar os já existentes.

Entre 1642 e 1651, a Inglaterra mergulhou numa guerra civil. De um lado os Roundheads, os Cabeças-Redondas, ou Parlamentaristas, que combatiam a tirania de Carlos e a sua exigência em que a católica Escócia se submetesse à Igreja Anglicana, criada por Henrique VIII para justificar os seus divórcios. Do outro os Royalists, ou Cavaliers, apoiantes do Rei Carlos I, como está bem de ver. O conflito foi definitivamente dirimido na Batalha de Worcester, na qual emergiu a astúcia de Oliver Cromwell, o comandante do Parliamentary New Model Army, composto por mais de 28 mil homens (contra 16 mil do inimigo), na sua maioria escoceses. A vitória dos Cabeças-Redondas redundaria, com perdão da aliteração, em três condições impostas para a rendição dos Royalists: julgamento imediato de Carlos I; exílio do seu filho, e herdeiro, Carlos II; substituição da monarquia por uma Commonwealth, um governo representativo da Inglaterra, Escócia e Irlanda, e chefiado pelo próprio Cromwell. Bom, com o nome de Commonwealth, Interregnum ou o diabo a quatro, o facto irredutível era que a Inglaterra deixava de ter rei e passava a ser uma república.

 

Uma bela peça

Oliver Cromwell, militar de carreira, nascido no dia 25 de Abril de 1599, assumiu o título de Lord Protector logo em 1653. A realeza olhava para ele um bocado por cima da burra, considerando-o pouco mais do que um patego. Tal como manda o velho dito inglês que nunca se deve fazer uma pergunta a um lavrador do Yorkshire que não possa ser respondida com «um copo de cerveja», podemos dizer que o mesmo se aplica a um camponês do Cambrigeshire, de onde o mamífero era natural. Profundamente religioso, envolvera-se num puritanismo que poderia vir a fazer ciúmes à futura rainha Victoria. A própria História ignora o seus primeiros quarenta anos de vida, e sabemos quão coca-bichinhos podem ser os grandes historiadores. Foi membro do Parlamento, por Huntingdon, primeiro, e por Cambridge, depois, e entrou na guerra acompanhado por um bando de fanáticos religiosos como ele, os Old Ironsides, rapidamente demonstrando a sua capacidade estratégica nas movimentações da cavalaria e desequilibrando definitivamente os acontecimentos para o lado dos Cabeças-Redondas.

A ordem decisiva de cortar a cabeça de Sua Majestade no cadafalso de Charing Cross valeu uma bela canção dos Monty Python: The Ballad of Oliver Cromwell. A balada, composta sobre a Polonaise Heroica de Chopin, tem início com a declamação de uma frase bastante incisiva: «The most interesting thing about King Charles the First is that he was five foot six inches tall at the start of his reign, but only four foot eight inches tall in the end of it». Já a República Inglesa foi uma barraca, e das grandes. Oliver Cromwell pode servir de prova que nem todos os ingleses gostam de reis e de rainhas. Mas também era dado a excessos de autoridade, alguns bem mais gravosos do que os do rei que mandara decapitar. O caos instalou-se, os membros do Parlamento mudavam por tudo e por nada, muitas estruturas sociais foram arrasadas, muito poucas leis minimamente práticas foram aprovadas.

 

Uma enorme confusão

No dia 20 de Abril de 1653, Oliver fez aquilo que nem_Carlos teria coragem para fazer: destituiu o Parlamento e passou a governar himself apenas com o suporte do exército. Os ingleses ficaram a saber finalmente que bela peça lhes tinha tocado pela proa. Com o problema acrescido de não existir, de facto, qualquer poder constitucional no país que pudesse convocar eleições.

É neste desenrolar do drama que entra em cena uma nova personagem, Praise-God Barebone, que tratou de erguer, após a dissolução parlamentar, um órgão governativo, composto na sua maioria por gente das classes baixas, a Nominated Assembly, popularmente alcunhada de Barnebone Parliament. Outro caos. Uma gritaria impudica entre monárquicos, radicais, moderados e conservadores que nunca se conseguiram entender em qualquer espécie de matéria. Seria Cromwell a dar um murro na mesa: «É preciso um governante e um Parlamento que o apoie», gritou com o descaramento divino do Alencar, do Eça, o homem que tinha derrubado o Parlamento. As prioridades sociais tinham de se sobrepor a que tipo de governo fosse, ideia que demonstrava o repúdio que tinha pela invenção de Praise-God (que rico nome!). Então declarou a era do Protectorate sob o lema: «A nobleman, a gentleman, a yeoman; the distinction of these: that is a good interest of the nation, and a great one!»

A obstinação de Oliver era de tal ordem que, cinco anos mais tarde, atacado pela malária, se recusou a tomar quinino com a justificação de que os judeus faziam negócio com o produto. Com esta total falta de respeito para com a própria saúde, não tardou a encontrar-se morto, corrompido por uma septicemia. Inicialmente enterrado na Abadia de Westminster, seria exumado a 30 de Janeiro de 1661, no 12º aniversário da execução de Carlos I. O que lhe restava do corpo foi pendurado à força de correntes em Tyburn, onde hoje se ergue Marble_Arch, e depois atirado para para uma valeta. Como forma de vingança, também foi decapitado, e a sua cabeça ficou em exibição em Westminster Hall até 1685. Depois, surgiu, aqui a ali, em várias coleções particulares até lhe perderem o rasto.

O seu filho, Richard Cromwell, sucedeu-lhe apenas durante nove meses. Depois tudo regressou ao normal e a Inglaterra voltou a ser o que era. Com a normalidade, houve rei. Não Carlos I, nessa altura a contas com presumíveis dificuldades para usar a coroa, mas o seu filho Carlos II. A Carlos II, os portugueses deram a mão de Catarina de Bragança, filha de João IV e de Luísa de Gusmão, que não só não foi duquesa toda a vida como rainha e mãe de dois reis de Portugal e de uma rainha de Inglaterra. A jovem Catarina Henriqueta, à época com 24 anos, suportou três casamentos com Carlos Stuart, um por procuração, e dois presenciais, um católico e outro anglicano. E com ela, por dote, carregou a habitual prodigalidade lusitana para com os ingleses: Tanger e Bombaim.

 Trinta anos depois de ter desembarcado em Inglaterra, Catarina regressou a Portugal. De Tanger, onde os portugueses mantinham umas plantações de mandarinas, apetecível fruto que importavam da China, como está bem de ver pelo nome, os ingleses passaram a receber tangerinas; de Bombaim, o chá que Catarina tornou vício na corte e em toda a Inglaterra que se preze. E porque, apesar de tudo, ainda não tinham perdido certos hábitos desagradavelmente campónios, como o de cortar cabeças a reis e comer com a mão, Catarina de Bragança ensinou-lhes também o manuseamento de um novo objeto com o qual ainda não haviam tido contacto: o garfo. Cromwell ficaria como um péssimo exemplo do que é um governante republicano. Mas, se pensarmos nas alimárias que se sentaram no trono da Inglaterra, era um como tantos outros. «The end!».