Gastão Cruz. “A grande voz e a grande consciência estética da sua geração”

António Carlos Cortez evoca o poeta e amigo:_“Acho que com a morte do Gastão se fecha um ciclo da poesia portuguesa”.

“Conheci o Gastão Cruz em 1997, tinha eu 22 anos e preparava-me para publicar o meu primeiro livro de poesia”, recorda António Carlos Cortez. Passados 25 anos sobre esse primeiro encontro, que acabaria por revelar-se providencial, o professor, crítico literário e poeta evoca o mestre e amigo falecido este domingo. “Tinha pensado convidar o David Mourão-Ferreira para fazer o prefácio, mas o David morreu em 96. Foi a Lídia Jorge que me apresentou ao Gastão Cruz e no final desse ano de 97 encontrámo-nos na pastelaria Luanda. Mostrei-lhe o que tinha, expliquei-lhe a ideia do livro e ele pediu-me para pensar”.

Seis meses depois, voltaram a encontrar-se. “Ofereceu-me uma série de livros de crítica de poesia e a partir daí estabeleceu-se uma relação que com o passar dos anos se transformou numa das maiores amizades da minha vida”.

Inicialmente, António Cortez confiava ao amigo mais velho os seus livros antes de os publicar, para ouvir os seus conselhos, reparos e sugestões. “Nos meus primeiros livro, muitas vezes o Gastão fez um trabalho de revisão, sobretudo de corte, aconselhando aquilo que ele achava ser fundamental, que era a palavra como centro nuclear do discurso”.

Com naturalidade, a amizade foi extravasando os limites estritos da escrita e da poesia. “Eu, o Gastão, a Teresa Belo – o terceiro vértice da nossa amizade, que infelizmente nos deixou em 2017 – e outros amigos fazíamos uma pequena tertúlia, ora na casa do Gastão, ora na casa da Teresa, ora na minha. Entre 2003/4 e 2012/13, foram dez anos de grande convivência”.

Aos poucos, a relação mestre-discípulo começou a ceder o passo a uma relação entre pares, que se ouviam e se respeitavam. “Nunca senti que ele falasse de cátedra. Não, falava com grande saber, mas ao mesmo tempo com grande disponibilidade para me ouvir. Lembro-me até de me ligar e mostrar-me poemas que estava a ‘fabricar’ – porque ele tinha os poemas em dossiês, e ia rescrevendo, recompondo. Queria saber o que é que eu achava. Aliás, ele lia muito bem em voz alta e nesses jantares pedia-nos conselho. Mas sobretudo nós é que aprendemos com ele”.

Além de discutirem poesia, conversavam sobre artes, sobre música – “era um melómano, tinha quase sempre a televisão sintonizada no Mezzo”. As conversas por telefone chegavam a prolongar-se até “às 4h, 5h da manhã”.

 A política era outro assunto recorrente. “Era um leitor muito atento da realidade política, portuguesa e internacional. Lembro-me perfeitamente da esperança dele aquando da eleição do Obama e das críticas ferozes que fez à administração Trump e ao perigo que essa administração representava para a democracia. Não era nada um homem de letras fechado na sua torre de marfim, bem pelo contrário: era vê-lo nos concertos de música da Gulbenkian, era vê-lo em manifestações em defesa da democracia”, continua António Carlos Cortez. “A poesia do Gastão Cruz é uma poesia de grande reflexão sobre o ato da escrita, mas é também uma poesia de grande reflexão sobre o mundo em que vivemos. Convido a ler um poema intitulado ‘Jovens à porta do Chiado’, onde se vê a alienação a que estamos hoje todos submetidos com este império do digital”.

Desafiado a referir um poema essencial do amigo, António Carlos elege ‘Dentro da Vida’:

Não estamos preparados para nada:
certamente que não para viver
Dentro da vida vamos escolher
o erro certo ou a certeza errada. […]

“É um poema magistral”, resume. Quanto ao livro nuclear, considera “a cúpula do seu monumento de palavras” Crateras, de 2001. “Acho que com a morte do Gastão se fecha um ciclo da poesia portuguesa, que é no fundo a lição de poesia vinda dos anos 60, de que ele era o principal crítico e a grande voz e a grande consciência estética da sua geração”, conclui.