‘Manipulados’. “Não acho que o Facebook nos oiça ou veja, mas acaba por saber tudo”

Em ‘Manipulados’, as jornalistas Cecilia Kang e Sheera Frenkel, do New York Times, dão a conhecer o lado obscuro do Facebook. Kang explica que a rede social “é uma agência de publicidade que vigia os utilizadores”.

“Eu e a minha co-autora decidimos, pouco depois de termos publicado uma investigação sobre o tema para o New York Times, avançar com este livro. Isto foi em novembro de 2018. Tivemos uma resposta tremenda dos leitores, com a reportagem, porque essa história levou-os até ao interior da companhia. Que, como sabemos, tem muitos segredos”, começa por explicar Cecilia Kang, autora, juntamente com Sheera Frenkel, de Manipulados – A verdade sobre a guerra do Facebook pelo poder absoluto (ed. Objectiva).

“Apercebemo-nos de que tínhamos muito mais para dizer, havia imenso material que tinha ficado de lado mas, também, estávamos tão curiosas que queríamos responder a uma pergunta: ‘Porque é que o Facebook, regularmente, segue este padrão de se ver envolvido numa grande crise ou escândalo e, depois, pede desculpa, promete fazer melhor e repete o mesmo?’. É um ciclo e percebemos que tinha de haver mais a acontecer com o negócio e as motivações dos líderes”, adianta a jornalista que escreve para o New York Times desde 2015. Um ano absolutamente decisivo para o desenvolvimento desta obra que acaba de ser publicada.

“Foi quando uma mulher deixou de responder às mensagens de um engenheiro do Facebook: achámos que era uma ótima forma de o livro arrancar porque mostra a quantidade de informação que a plataforma tem sobre os utilizadores e o modo como abusa dela e não respeita a privacidade de todos nós”, esclarece a especialista em tecnologia e política regulatória, que foi repórter do Washington Post durante uma década.

“Aquilo que aconteceu foi que, nesse ano, mas durante muitos mais, os engenheiros tinham tanto poder – ainda mais do que hoje – e estavam no topo da hierarquia da empresa. Uma coisa que Mark Zuckerberg encorajava era que os funcionários tivessem acesso às contas e informações dos utilizadores para que percebessem aquilo que queriam e criassem novas ferramentas, novos produtos e entendessem como se usava a rede social”, clarifica, reconhecendo, porém, que o cérebro por detrás da rede social poderia não saber até que ponto os engenheiros “se aproveitavam deste acesso”.

“Neste caso, entraram nas contas das mulheres em que estavam interessados – mais do que uma vez e mais do que um engenheiro. Primeiro, em São Francisco, um deles teve um encontro com uma pessoa que simplesmente não estava interessada nele. Ele esteve a pesquisar tudo e chegou a fazer algo que se pode intitular de stalking, ou seja, perseguição: sabia onde ela estava, com quem estava, o que estava a fazer, etc.”, diz a profissional que integrou a equipa finalista do prémio Pulitzer de 2019 e é vencedora dos prémios George Polk e Gerald Loeb.

“São informações muito sensíveis que podiam ter feito com que a pessoa se sentisse ameaçada. Ele até conseguiu ver imagens que ela apagara! Foi um abuso tal mas, também, algo que provou que o Facebook tem uma espécie de ‘olho de Deus’: está omnipresente! Isto levou a que percebêssemos que o Facebook estava não só a trair a confiança dos utilizadores como a fazer isso ininterruptamente. Por isso é que achámos que devíamos começar o livro com isto!”, afirma Cecilia, admitindo que, “muitas das vezes, acreditamos que se apagarmos algo, nada ficará guardado. A questão é que tudo fica na Internet para sempre e há sempre maneiras de saber aquilo que fizemos no passado”.

“E, voluntariamente, enquanto consumidores, estamos constantemente a fomentar o negócio destas empresas. Precisam que estejamos sempre a interagir e a dar-lhes informação para depois a venderem a empresas de publicidade”, acrescenta. “O Facebook tenta esconder aquilo em que se baseia o seu modelo de negócio quando proclama objetivos repletos de suposta legalidade e as missões de conectar o mundo e aproximar as pessoas. Contudo, é uma agência de publicidade que vigia os utilizadores! Sabe aquilo de que gostamos, fazemos… É simples desta forma!”.

A perspetiva da jornalista vai ao encontro à informação, revelada em agosto de 2019, de que o Facebook contratara trabalhadores externos para ouvirem e transcreverem clipes de áudio dos utilizadores. À época, a prática foi confirmada pela empresa e alvo de controvérsia desde que começou a ser divulgado pelo site Bloomberg que o Facebook pagara a milhares de trabalhadores externos para ouvirem e transcreverem clipes de áudio dos utilizadores, de acordo com fontes “que conhecem o trabalho da empresa” e que avançaram esta prática ao site que se dedica às temáticas de tecnologia e dados do mercado financeiro.

Segundo a investigação, “os trabalhadores não sabiam como é que os áudios tinham sido gravados ou obtidos” e “sabiam apenas que estavam a ouvir conversas, muitas das vezes com conteúdo normal, mas desconheciam o motivo pelo qual o faziam”. “Tal como a Apple e a Google, nós fizemos uma pausa nesta revisão humana há uma semana” explicou a empresa de Mark Zuckerberg em comunicado, adiantando que “os utilizadores que foram afetados escolheram a opção, na aplicação do Messenger, de terem as suas conversas áudio transcritas”.

O motivo que a rede social alegava como válido era o facto de ter tentado perceber se “a inteligência artificial do Facebook interpretava as mensagens corretamente”. No entanto, as grandes companhias internacionais estavam – e continuam – a ser alvo de muitas críticas por invadirem a privacidade de quem recorre aos seus serviços: por exemplo, em abril daquele mesmo ano, a Amazon fora acusada de ter
trabalhadores por todo o globo a ouvir os pedidos que os seus clientes faziam à assistente pessoal Siri com o pretexto de “melhorar o software”.

 

A interferência nas eleições de 2016

“O Facebook só prospera enquanto negócio porque não paramos de fazer aquilo de que ele precisa. Por isso é que os algoritmos estão preparados para que estejamos a interagir mais e mais, achando tudo cada vez mais cativante”, adianta Cecilia Kang, exemplificando que ouvimos histórias de pessoas que falam de determinado tema com um amigo e surgem anúncios relacionados com o mesmo minutos ou horas depois. “Pode ser uma coincidência, mas a verdade é que interagimos de forma a que o Facebook saiba que estamos interessados em x ou y. Não acho que o Facebook nos oiça ou veja, mas tem tantos dados que acaba por saber tudo como se nos ouvisse e visse!”.

“Na União Europeia ainda há alguma legislação, mas nos EUA fazem aquilo que querem! Os algoritmos por detrás destas plataformas são caixas negras: não fazemos ideia daquilo que escondem. Aquilo que temos de entender é que as empresas tentam que voltemos sempre e tenhamos algum tipo de reação forte: podemos ficar felizes, irritados, revoltados, etc., mas reagimos! E, por isso, de certa forma, são ‘máquinas de agitação’ porque mexem muito connosco”, reconhece, apontando que, hoje em dia, os académicos e toda a gente que investiga este fenómeno pedem às empresas que sejam mais transparentes porque sabem que, em vez de regularem o discurso nas plataformas, querem regular o design. “Penso que isso, apesar de ser importante, não é o mais crucial”, realça.

“O algoritmo nem sequer quer saber da reação que temos: é neutro no sentido em que temos é de reagir, isso é que interessa! Quanto mais, melhor!”, observa, recuando até 2015 para elucidar como o panorama tem vindo a modificar-se progressivamente. “Nem todos os engenheiros foram despedidos. Penso que, depois disto, quando Zuckerberg se apercebeu daquilo que acontecia, tentaram mudar e recuaram mas, durante anos, safaram-se! A equipa de segurança apertou as regras e toda a gente está consciente das consequências”.

“Queremos que as pessoas percebam que o ponto onde estamos hoje, relativamente ao Facebook, não é acidental: grande parte das coisas é resultado da criação de um modelo de negócio que se baseia nas interações, raiva, felicidade, o que seja. Tudo o que sejam emoções fortes. Penso que a chave é que temos de entender como o Facebook funciona e faz dinheiro: e escrevemos este livro para revelar ao mundo como funciona a máquina em termos de tecnologia, liderança e de produção de dinheiro!”, declara, assumindo que “há gente que encara isto como uma espécie de história do Frankenstein: como se existisse um monstro que cresceu descontroladamente. De certo modo, a empresa foi desenhada para criar este ‘monstro’. Está a trabalhar, em grande parte das vertentes, da forma que era suposto”.

“Entrevistámos mais de 400 pessoas. Foi muito difícil porque recolhemos imensa informação! Há uma versão do livro que tem o dobro das páginas. E há tanta informação sobre outros líderes, como a Sheryl Sandberg, que tivemos de optar por manter a obra a fluir e a ser de fácil leitura. Queríamos focar-nos num ponto específico no tempo: a influência do Facebook no resultado das eleições norte-americanas de 2016. Cortar testemunhos parte-nos o coração, sabemos isso como jornalistas, mas isto não é sobre nós: temos de agir para benefício dos leitores e saber que se vão manter interessados da primeira à última páginas”, sublinha. Há quatro anos, de acordo com o New York Times, foram descobertas pelo Facebook várias contas falsas para tentar influenciar as eleições intercalares de novembro nos Estados Unidos da América.

Naquela altura, soube-se que no total estariam envolvidas pelo menos 32 contas de Facebook e Instagram com comportamentos considerados “coordenados” e que eram seguidas por mais de 290 mil pessoas. “Este tipo de comportamento não é permitido no Facebook porque não queremos que pessoas ou organizações a criar redes de contas para enganar os outros sobre quem são ou o que estão a fazer”, podia ler-se num comunicado emitido pelo Facebook.

Segundo o órgão de informação anteriormente mencionado, o Facebook terá ainda encontrado ligações das contas à russa Internet Research Agency, que terá sido utilizada, em 2016, para influenciar as eleições presidências nos EUA. Além disto, de acordo com uma fonte ao jornal norte-americano, estava ainda a ser planeada uma segunda edição do protesto “Unite The Right”, que no ano passado acabou por terminar com o atropelamento mortal de uma mulher, em Charlottesvile, cidade onde vários grupos extremistas de direita se reuniram.

“Escrever outro livro sobre o Facebook, neste momento, não está nos meus planos. Nunca podemos dizer que nunca faremos x ou y coisa, mas esta foi uma viagem longa! O Facebook mudou de nome e todos os dias há novidades, por isso… Pode ser que escreva algo mais!”, remata Cecilia, não descartando uma sequela da obra agora publicada em Portugal. “Sou jornalista há muitos anos, a minha colega também e temos relações de confiança com as nossas fontes: não foi difícil levar a que confiassem em nós, mas a verdade é que até quem estava proibido, contratualmente, de falar connosco, fê-lo!”.

“Existia uma missão: dar a conhecer a verdade. Aquilo que se ouvia e via não correspondia àquilo que acontecia. Entretanto, disseram-nos mais coisas e continuámos a escrever para o New York Times. E, por exemplo, o testemunho da Frances Haugen suportou a nossa informação. Temos de continuar a mostrar que mesmo as companhias mais poderosas do mundo são responsabilizadas pelos seus atos quando estes são problemáticos”. E conclui:_“Em 2016, tínhamos um adversário estrangeiro que queria espalhar desinformação, enquanto, em 2020, tínhamos um líder norte-americano a fazer isto. E vemos isto a acontecer no mundo inteiro com políticos que têm milhões de seguidores nas redes sociais e eles mesmos são os grandes criadores das fake news. Este é um grande desafio e, em janeiro de 2021, vimos aquilo que aconteceu no Capitólio. As pessoas que estão por detrás disto são, agora, acima de tudo, pessoas dos nossos países que tentam acabar com a paz e a democracia”.