As teias da Justiça…

A Justiça consegue ainda surpreender-nos quando percebemos, por exemplo, que o juiz Ivo Rosa se arrisca a ser uma lenda na história judicial pelas razões mais controversas…

Com o elenco do próximo Governo finalmente constituído (do qual o Presidente soube, «pelos vistos pela comunicação social»…) e a posse marcada, está a chegar ao fim um longo interregno, sem o menor escrutínio, em que o país viveu em gestão corrente, espartilhado entre duodécimos.

Coincidiu esse impasse, desde há um mês, com a invasão bárbara da Ucrânia pelas tropas russas, semeando destruição e horror, através de uma guerra mascarada de ‘operação militar especial’, como lhe chamou Putin, com chocante hipocrisia.

A maioria absoluta alcançada pelo PS, ‘amaciou’ o vazio, com o Parlamento dissolvido e a oposição ausente.

Goste-se ou não da opção do eleitorado – e da sua amnésia em relação ao que foi a primeira maioria socialista de Sócrates –, o desfecho contribuiu para ‘amenizar’ as incertezas e as sequelas de uma longa ‘hibernação’ governativa.

Depois da pandemia, a guerra nas fronteiras da Europa, invadiu os noticiários, e subalternizou ocorrências internas que, em circunstâncias normais, teriam ocupado largo espaço mediático.

É o caso da Justiça, cuja transparência deveria estar acima de qualquer suspeita, mas que consegue ainda surpreender-nos quando percebemos, por exemplo, que o juiz Ivo Rosa se arrisca a ser uma lenda na história judicial pelas razões mais controversas.

De facto, não há memória de outro magistrado ter ‘colecionado’ tantas deliberações desfavoráveis de um tribunal superior. É um ‘study case’.

Em retrospetiva, sobressaem várias decisões de Ivo Rosa, anuladas pelo Tribunal das Relação, em termos, convenhamos, pouco ‘meigos’. Com tais antecedentes, poderia supor-se que estaria em ‘maus lençóis’. Nada disso. A verdade é que mereceu nota ‘muito bom’ na avaliação periódica do seu trabalho. Em que ficamos?

O certo é que o polémico juiz se tem distinguido como adepto do formalismo processual, ‘aliviando’ alguns arguidos de acusações deduzidas pelo Ministério Público, ou, até, ‘em contramão’ com decisões anteriores de pares de ofício.

Quando se pensa em Justiça, pilar fundamental da democracia e do Estado de Direito, é arrepiante imaginar que a interpretação dos códigos poderá variar, numa escala impensável, consoante for parar às mãos de um ou de outro juiz.

Para quem seja menos versado no jargão jurídico, poderá intuir-se que de um lado está um ‘juiz bom’, sensível aos rogos dos advogados da defesa, e do outro, um ‘juiz mau’, caprichoso nas cauções e seguidor, sem pestanejar, dos ‘delírios’ dos acusadores.

Para tornar tudo ainda mais opaco, ambos os juízes estão agora sujeitos a inquirições, embora o foco do procedimento não seja idêntico.

Assim, Ivo Rosa, será ouvido no âmbito do processo disciplinar que lhe foi movido pelo Conselho Superior da Magistratura, por ter revertido um despacho do juiz Carlos Alexandre num processo relacionado com Isabel dos Santos, o que motivou um acórdão do Tribunal da Relação, no qual lhe são tecidas duras críticas.

Em contrapartida, o juiz Carlos Alexandre foi constituído arguido, após ter vingado, também na Relação, mais um requerimento apresentado por José Sócrates, ainda a propósito da alegada distribuição manual do processo da Operação Marquês. Diria António Costa que é «a justiça a funcionar». Será?

Para além dos contornos desta ‘novela’, propicia à especulação mediática, acresce ainda a extrema morosidade dos tribunais, que compromete a administração da Justiça.

Uma Justiça lenta é a negação da própria Justiça. E bem se compreendem as preocupações dos presidentes de dois tribunais superiores.

Ao reler declarações dos presidentes do Supremo Tribunal de Justiça, Henrique Araújo, ou do Supremo Tribunal Administrativo, Dulce da Conceição Neto, avulta o seu desconforto.

Henrique Araújo defendeu no verão passado, que «há um excesso de garantias de defesa. Se queremos uma justiça mais rápida, temos de cortar com isso». Já este ano, Dulce Neto corroborou o seu colega, não hesitando em classificar as demoras nos tribunais administrativos e fiscais como «uma vergonha», ao ponto de haver processos pendentes, há dez ou vinte anos, sem isentar de culpas a própria Autoridade Tributária.

Pior: o ‘pacote’ anticorrupção que entrou em vigor, contém normas que impedem um juiz que tenha intervindo na fase de inquérito ou dirigido a instrução, de participar no julgamento, recurso ou pedido de revisão desse processo. Podem adivinhar-se as consequências.

À cautela, a ainda ministra Francisca Van Dunem distanciou-se das alterações, enquanto tratou da aposentação como juíza conselheira do STJ, embora, que se saiba, nunca tenha exercido, depois de empossada em 2016, sem abdicar do Governo.

Tudo isto é insólito, mas está ‘certificado’ em Diário da República, por um despacho do vice-presidente do CSM.

Van Dunem preferiu jubilar-se, como conselheira do Supremo, que ‘esperou’ por ela durante seis anos. Em vão. Será legal, mas não lhe fica bem.