Cinema. Óscares em tempos de guerra

Em tempos tenebrosos como o que vivemos, a arte constitui um escape privilegiado. Ontem, em Los Angeles, realizou-se a 94.ª edição da cerimónia dos Óscares. Mas como se gere um evento deste tipo em tempos de guerra? Em 1942 houve maior contenção nos festejos, atores fardados em palco e estatuetas de gesso.

Como reagir ao que se tem passado na Ucrânia? Como reagir ao assassinato de inocentes? À destruição de lares e famílias? Quando se “instala” uma guerra, o mundo para, mas a vida continua. Uma grande “névoa” como que fica a pairar sobre a realidade e as consciências, mas há manifestações, acontecimentos que ajudam a dissipá-la, mesmo que temporariamente. E se há algo que tem esse poder é a arte. O cinema há muito que é um escape eficaz que nos faz viajar e esquecer, por algumas horas, aquilo que nos atormenta. Ele acompanha os tempos, serve de “grito”, espelha o mundo. Em tempos de guerra não é diferente. De que forma as cerimónias que o celebram lidam com essa realidade?

A importância de falar na Ucrânia Numa conferência de imprensa virtual, o produtor executivo da cerimónia anual dos Óscares, Will Packer, reconheceu que o evento deste ano não pode passar ao lado da crise na Ucrânia, que começou há já mais de um mês. Trata-se, considerou Packer, de “um momento na história da humanidade” e a Academia não o ignora: “Portanto não se avança para um espetáculo como este, creio, sem ter isso em mente e sem encontrar uma forma de o reconhecer respeitosamente e onde estamos e quão afortunados somos por poder organizá-lo”, explicou. No meio de um conflito devastador e mais de dois anos depois do início da pandemia de covid-19, Parker reconheceu que a equipa responsável pelo evento “pensou nas dificuldades de fazer um espetáculo como este o ano passado”: “Não estamos completamente fora dessa situação pandémica ainda e temos outros desafios agora… Depois pensámos no cenário mundial… Vamos reconhecer essas coisas e fazê-lo de uma forma que seja respeitosa e que mostre o quão agradecidos estamos”, revelou dias antes da cerimónia. O produtor considerou ainda que uma forma “de estar agradecido seria garantir que esta oportunidade seria usada para ser uma celebração, para ser uma libertação e um escape para quem precisar”.

No que toca aos próprios artistas, também eles quiseram aproveitar a oportunidade de falar em palco para sensibilizar para a atual situação da Ucrânia. Na temporada de prémios em Hollywood, as referências à situação no país foram constantes, de manifestações de solidariedade a críticas a Vladimir Putin. “Estamos com centenas de milhares de refugiados que fogem da guerra, tanto ucranianos como de outras nacionalidades, aos quais negam um porto seguro”, disse a atriz Kristen Stewart na cerimónia dos Independent Spirit Awards. Por sua vez, a anfitriã, a atriz norte-americana, Megan Mullally, usou linguagem mais forte: “Acredito que falo por todos aqui quando digo que esperamos por uma solução rápida e pacífica, especialmente vai-te f**** e volta para casa, Putin!”.

A antecipada ameaça de boicote A apresentação da cerimónia dos Óscares deste ano ficou a cargo das atrizes e comediantes Amy Schumer, Wanda Sykes e Regina Hall. Anteriormente, Schumer já tinha sugerido aos produtores que tentassem que o Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky marcasse presença por videochamada. A comediante, de 40 anos, considerou que a gala seria uma “grande oportunidade” para chamar a atenção para “algumas das coisas terríveis que têm acontecido” no mundo. “Acho que há muito a pressão do ‘isto é uma folga, deixem as pessoas esquecer e vamos desfrutar desta noite’, mas temos muitos olhos em cima de nós. Acho que é uma grande oportunidade para pelo menos comentar algumas coisas. Tenho algumas piadas que evidenciam a situação atual”, sublinhou nas vésperas da cerimónia no talk show americano The Drew Barrymore Show. Além disso, Schumer revelou que desejava que Zelensky marcasse presença na cerimónia através de videochamada, notando que a decisão, contudo, não passaria por ela.

Sean Penn – que estava em Kiev para filmar um documentário quando a invasão começou a 24 de fevereiro e assinou um acordo para que a sua fundação ofereça ensino e abrigo aos refugiados na Polónia – foi mais longe, ameaçando que “qualquer potencial falta de apoio dos Óscares para com o povo ucraniano”, seria “ o momento mais obsceno de toda a história de Hollywood”. Entrevistado pela CNN, o artista prometeu derreter publicamente as suas estatuetas de ouro se o órgão de premiação se recusasse a oferecer ao Presidente ucraniano, Volodymyr Zelenskiy, espaço para falar no evento. “Não há nada melhor que a cerimónia possa fazer do que dar a Zelensky uma oportunidade de falar com todos nós”, defendeu o ator. “Eu percebo que este é o momento especial para os envolvidos celebrarem os seus filmes, mas é isto que está a acontecer e é tão mais importante do que terem um momento para brilhar”, notou. “Encorajo todos os envolvidos a protestarem e a boicotarem a Academia [se não convidarem Zelensky]. Eu próprio, se for necessário, irei derreter as minhas estatuetas em público”, prometeu.

Óscares em 1942 Também na Segunda Guerra Mundial o mundo “parou”. Mas, mais uma vez a cerimónia continuou, ocorrendo mesmo com os EUA envolvidos na guerra – o país só se juntou ao conflito em dezembro de 1941.

Segundo a revista Variety, os Óscares de 1942 quase foram cancelados com a entrada dos EUA no conflito depois do ataque das forças japonesas à base naval de Pearl Harbor, em Honolulu, Havai. Por se tratar de um “momento de tensão”, a Academia ficou com receio de fazer algo que mostrasse menos respeito pelo sofrimento dos militares e seus amigos e famílias. Esse receio fez mesmo com que a 14º edição da cerimónia fosse adiada e, quando se realizou, foi em moldes mais austeros. Muito por culpa de Bette Davis, presidente da Academia na altura. Como a Variety relembrou, Davis “apresentou um plano para transferir a cerimónia de um salão para um auditório” e também “sugeriu um espetáculo ao vivo no lugar de um jantar de comemoração”. Ocorreu-lhe ainda vender ingressos ao público comum, para angariar dinheiro para a Cruz Vermelha. Nesse ano, os Óscares ocorreram no dia 26 de fevereiro, de uma forma mais simplificada: o after-party (festa pós-cerimónia) que já era uma tradição foi cancelado; as mulheres usaram vestidos menos exuberantes e os homens optaram por fatos mais sóbrios. Já os apresentadores Jimmy Stewart e Donald Crisp vestiram uniformes militares.

O conflito causou uma outra alteração na cerimónia que era quase impercetível para os espetadores, mas muito evidente para os premiados durante aqueles anos. Segundo a Associated Press, as estátuas douradas entregues pela Academia em geral são feitas de metal derretido que depois de arrefecer dentro de um molde são banhadas respetivamente em cobre, níquel, prata, e por fim com uma camada de ouro de 24 quilates.

Durante a Segunda Guerra, a demanda por metais era grande, já que estes eram usados para produzir armamentos. E, por isso, o dispendioso procedimento acabou por ser trocado por gesso e bronze falso. “Os prémios do Óscar estão agora a ser moldados em gesso e pulverizados com uma placa de bronze falsa! Um trabalho de 12 dólares feito para parecer a tradicional coisa de 90”, publicou o The New York Times, em 1945. A aparência ficou “consideravelmente menos dourada e brilhante” e o peso da estatueta – que geralmente tem 3,6 quilos – também em muito se alterou, surpreendendo os galardoados que subiram ao palco e o receberam. Segundo o jornal norte-americano, a nova estatueta “era muito menos resistente, sendo mais facilmente danificada por arranhões”.

Um dos atores nomeados em 1945, Barry Fitzgerald, acabou mesmo por arrancar a cabeça do prémio acidentalmente. De acordo com o site oficial da Academia, “os Óscares foram feitos de gesso pintado por três anos”. Porém, assim que o conflito terminou, “os galardoados foram convidados a trocar as figuras de gesso por outras de metal banhado a ouro”.