Viktoria Zeynep Gunes. A atleta turca de origem ucraniana que pisou a bandeira russa

Aos 23 anos, Viktoria Zeynep Gunes, de origem ucraniana e com nacionalidade turca desde 2015, decidiu pisar a bandeira da Rússia para protestar contra a invasão da Ucrânia. Já em 1936, contra tudo e todos, o afro-americano Jesse Owens desafiava o regime de Hitler.

Os pés em cima da bandeira da Rússia: eis a descrição da imagem que a nadadora de origem ucraniana, Victoria Solntseva (Zeynep Gunes desde que tem nacionalidade turca, em 2015) partilhou nas stories da conta oficial de Instagram para demonstrar o desagrado perante a invasão da Ucrânia pela Rússia, que tem vindo a acontecer desde o passado dia 24 de fevereiro.

Se por um lado se gerou uma onda de solidariedade e compreensão, por outro este ato foi tudo menos admirado. O ministro do Desporto da Rússia, Dmitry Shvishev, condenou a atitude da jovem de 23 anos e incentivou a Federação Internacional de Natação (FINA) a investigar o caso, exigindo que a nadadora fosse punida.

“Isto é realmente nojento. Gostaria de acreditar que a Federação Internacional de Natação, assim como outras organizações relevantes, punirá a nadadora por este comportamento”, esclareceu o governante. “Os nossos atletas têm sido punidos pelas suas atitudes, e aqui temos uma verdadeira efusão de nacionalismo em relação a um país. Tais provocações devem ser punidas independentemente do país para onde são dirigidas e do país representado pelo atleta que o faz. Penso que o nosso sindicato deveria abordar a FINA com um pedido para investigar este caso em pormenor”, rematou.

Nas diversas redes sociais, há quem defenda Zeynep e assuma que esta tem razões para ter recorrido a este posicionamento. Em 2014, ela e os restantes familiares tiveram que deixar a Crimeia, na época em que a Rússia a invadiu. Apesar de representar a Turquia internacionalmente, já tendo competido sob a sua bandeira nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, e de Tóquio, em 2020 (que viriam a realizar-se no verão de 2021 devido à pandemia), a especialista dos 200 metros livres continua a apoiar a Ucrânia incondicionalmente.

“Estávamos em Yalta quando os russos chegaram e estávamos com muito medo. Voltámos imediatamente para Poltava, onde vivíamos, e começámos uma nova vida. Viemos para Istambul via Kiev, tudo aconteceu em três dias. E, então, descobrimos que a piscina em que havia nadado, em Kiev, era radioativa”, garantiu Zeynep a vários órgãos de informação, como à Agência Anadolu, da Turquia. “A decisão de chegar à Turquia não foi fácil, mas felizmente consegui. Sinto-me mais tranquila, mais feliz e mais valiosa aqui. Depois de vir para a Turquia, nós [ela e a família] não pensámos em voltar”, sublinhou em julho de 2016.

 

O desporto como arma de propaganda política

No início de março, Aleksander Ceferin, presidente da UEFA, anunciou em comunicado que a mesma suspenderia imediatamente e sem termo as seleções e os clubes russos. “As sanções eram necessárias. Não foi uma questão política, isto é uma crise humanitária. O meu coração chora por castigarmos os atletas. Não é a guerra deles, eles não decidiram isto, não o querem. Mas temos de mostrar união em busca da paz. Impusemos as sanções desportivas e dedicámos mais de um milhão de euros às crianças e aos refugiados ucranianos”, avançou em declarações ao Corriere della Sera.

Mas o desporto é uma arma de propaganda política há muito e não é apenas neste século que muitos atletas sofrem as consequências dos diversos regimes políticos. Hitler acreditava que “a raça ariana” correspondia a um povo superior e mesmo antes da II Guerra Mundial, quis demonstrar a superioridade dos alemães durante os Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936. Como, na sua ótica, os arianos tinham de ser mais altos, mais fortes, mais rápidos e, em suma, os melhores, decidiu fazer a primeira transmissão televisiva.

No entanto, o plano não correu como previsto: Helene Mayer contava com uma medalha de ouro em esgrima, mas ser judia tinha feito com que o partido nacionalista lhe retirasse a cidadania alemã. Para participar em 1936, foi aberta uma exceção. Algo que não existira quando, três anos antes, soubera que havia sido expulsa do clube de esgrima de Offenbach no âmbito da expurgação nazi dos atletas judeus.

Nesta competição, 89 medalhas foram arrecadadas pela Alemanha e 56 pelos EUA. Porém, a então maior potência mundial concorreu com Jesse Owens, afro-americano que era um fenómeno no atletismo e alcançou quatro medalhas de ouro: 100 metros; 200 metros; estafeta 4 por 100 e salto em comprimento. Encarando este acontecimento como uma derrota, após cumprimentar Hans Wölke, três atletas finlandeses e duas atletas alemãs, Hitler soube, pelo presidente do Comité Olímpico Internacional, que na qualidade de convidado de honra teria de cumprimentar todos os vencedores ou optar por não congratular nenhum deles.

Assim, com o frenesim de fotógrafos, repórteres, seguranças e público que procuravam aproximar-se do líder do regime nazi, este optou por não descer mais a tribuna. Quando Owens ganhou as medalhas, a decisão estava tomada. “Quando eu passei, o chanceler ergueu-se, e acenou-me com a mão. Eu respondi ao aceno”, asseverou Owens, sendo esta a versão oficial da história, acrescentando que ambos até terão sido fotografados atrás da tribuna de honra.

Como seria de esperar, nem todos acreditaram que tal tinha acontecido e, assim, na sua biografia, Owens clarificou que a sua maior conquista não foi opor-se ao nazismo, mas sim ter tentado eliminar o racismo que estava enraizado em todas as vertentes da sociedade norte-americana do séc. XX. Tanto que, quando questionado acerca dos Jogos Olímpicos de 1936, o atleta declarou que Adolf Hitler não o havia surpreendido tanto quanto Franklin Delano Roosevelt.

“Não foi Hitler que me ignorou, quem o fez foi Franklin Delano Roosevelt. O Presidente nem sequer me mandou um telegrama”, lamentou aquele que viria a ser encarado como “o homem que destruiu os planos de Hitler” ou “o atleta que calou Hitler e é um símbolo da luta contra o racismo”, não escondendo que, quando chegou aos EUA, foi recebido com alegria. Mas, no hotel Waldorf Astoria, onde seria homenageado, teve de usar o elevador de serviço, sendo, deste modo, novamente vítima de discriminação.