Vêm aí os russos!

No auge da revolução cultural, o temor da China não eram os EUA mas a Rússia, o inimigo, a ameaça de sempre. 

A propósito da invasão da Ucrânia e do seu imbróglio, vêm de algum modo a propósito dois testemunhos pessoais.

1. Viviam-se na China os anos mais atrozes da Revolução Cultural. Em Macau, as autoridades portuguesas enfrentavam a onda de agitação exportada do continente, com agitadores que colocavam em causa e curto-circuitavam a autoridade dos representantes tradicionais da comunidade chinesa – que, em bom entendimento com os portugueses, participavam na administração do território. Esta agitação preocupava sobretudo os chineses de Macau. 

Os imberbes guardas vermelhos – que víamos dos nossos postos de observação, no outro lado da fronteira – encheram as imediações com inscrições que nos pareciam absurdas. Advertiam americanos e… soviéticos a não usarem qualquer pretexto para intervir na China! Eram os fantasmas milenares, o pavor das invasões, e especialmente a história do relacionamento com a Rússia. 

2. Por minha iniciativa e empenho – com a ajuda do meu amigo Luís Pignatelli e o entusiasmo de Snu Abecassis – fez-se a primeira edição internacional de Le Monde Diplomatique, semanário na altura sobretudo atento ao então movimento dos países não-alinhados: a Índia (de Nehru), a Indonésia (de Sukarno), o Egito (de Nasser), o Gana (de Nkrumah), a Guiné (de Sékou Touré) e a Jugoslávia (de Tito). 

Era uma associação de países que durante a guerra-fria não tinham compromisso formal com qualquer dos dois blocos antagónicos comandados pelos Estados Unidos e pela União Soviética. 

Afirmavam-se como alternativa ao mundo dividido entre o bloco comunista e o bloco capitalista, surgido depois da Segunda Guerra Mundial. 

Uma larga maioria destas nações não-alinhadas opôs-se aos Estados Unidos durante a Guerra do Vietname e à União Soviética após a invasão do Afeganistão. Países que o lado negro dos Estados Unidos viria a decapitar, gerando uma onda de mortes e o caos em muitos deles, empurrando outros para a esfera soviética ou instalando regimes fascistas militares. 

Quando o diretor e fundador do Le Monde Diplomatique, Claude Julien, veio a Portugal para o lançamento do primeiro número do jornal, Snu Abecassis reuniu-nos num jantar inesquecível. 

Contei então a minha história de Macau, a advertência dos guardas vermelhos aos soviéticos, que tanto nos espantara, para a qual não encontráramos explicação e nos parecia não fazer sentido. Claude Julian respondeu-me com uma experiência igualmente surpreendente: 

«Quando estive na China a convite do Governo chinês, pela mesma altura, levaram-me a visitar autênticas cidades subterrâneas, armazéns enormes cheios de todo o tipo de utensílios, máquinas e produtos, cereais e armamento. ‘Para o que é isto?’, perguntei. ‘Para enfrentar a invasão da Rússia’, responderam-me»!!! 

O temor não eram os EUA – aliados da China em todas as guerras, aliás – mas a Rússia, o inimigo, a ameaça de sempre.

Foi com a Rússia o primeiro tratado de paz assinado pela China, para pôr termo à sua primeira e única guerra – antes e depois das Guerras do Ópio! – com um país do Ocidente. Tomás Pereira foi um dos dois jesuítas portugueses que integraram a delegação chinesa que negociou com êxito esse Tratado (de Nerchinsk), assinado com a Rússia czarista a 27 de agosto de 1689, que durante 171 anos delimitou a fronteira entre os dois Estados.*

Nunca um soldado chinês pisou armado o solo europeu. Nunca o exército da China vandalizou Versailles, como o exército francês vandalizou o Palácio de Verão de Pequim. Refiro-o por ser verdade histórica. E ser metáfora. 

* Redigido em latim, língua franca dos jesuítas, e traduzido para o idioma russo e o mandarim.