Arrumando a minha secretária

Quando dei por mim, já não conseguia movimentar o rato do computador sem entrar em conflito constante com a montanha de livros à minha direita.

D izem que nós, humanos, temos horror ao vazio. Os romanos, que em certa fase não deixavam um centímetro de pedra por esculpir nos seus monumentos, chamavam-lhe horror vacuis.

A minha secretária é um bom exemplo disso. Além do computador, uma lata com lápis, um candeeiro e o pequeno rádio que me faz companhia, está cheia de coisas desnecessárias: postais de pintura, facas para papel, caixas e caixinhas, uma moldura de acrílico com uma imagem enigmática, um pesa-papéis e uma figura de cerâmica que me foi oferecida por um artista de génio infelizmente já desaparecido.

Quanto ao espaço que ainda restava livre, aos poucos foi sendo colonizado por livros. Quando dei por mim, já não conseguia movimentar o rato do computador sem entrar em conflito permanente com a montanha de livros à minha direita.

Os vários volumes empilhados no tampo da secretária constituíam já uma pequena biblioteca dentro da biblioteca. Sem grande coerência, é certo – uma amálgama de temas clássicos, egípcios e napoleónicos – mas na minha imaginação formava uma espécie de sólida muralha contra a ignorância e o obscurantismo. Ao mesmo tempo, questionava-me se não corria o risco de me acontecer o mesmo que ao Zé das Medalhas, a personagem da novela Roque Santeiro, que por causa da sua ganância acabou soterrado por uma avalanche de medalhas.

Até que um dias destes me ocorreu que este espaço de trabalho ficaria muito mais acolhedor se tivesse um tapete.
O primeiro passo foi tirar tudo o que estava em cima da secretária. As caixinhas, os bibelôs e as pilhas de livros saíram. Só assim pudemos levantar a secretária e fazer deslizar o tapete por baixo dela. Não posso dizer que o resultado me tenha desagradado: o tapete contribuía de facto para o conforto e a visão do tampo desimpedido era uma lufada de ar fresco. Decidi improvisar uma mesa de apoio para libertar algum espaço. Em certa medida, parecia que tinha tirado peso não de cima da secretária, mas de cima dos meus ombros.

E foi então que me lembrei de uma frase de Stanley Kubrick. Embora fosse obsessivo com os pormenores, o realizador de Spartacus, Barry Lindon e The Shining  tinha uma desconfiança irremediável relativamente à arrumação. «Uma secretária arrumada é sinal de uma mente doente», dizia. A sua mulher queixava-se: «Cá em casa não procuramos agulhas, procuramos palheiros».

Depois de tudo organizado, olhei em volta para perceber até que ponto a minha mente estaria ‘doente’. Respirei de alívio: não muito, na realidade. Os bibelôs continuam em cima da secretária. Só que em vez de seis ou sete pilhas de livros, agora só há três – dir-se-ia um pequeno troço da antiga muralha, como aqueles vestígios da cerca fernandina que resistem nalguns pontos da cidade de Lisboa.

E tenho outra liberdade de movimentos. Já consigo mexer o rato à vontade sem chocar insistentemente com a montanha de livros à minha direita. Ou pelo menos até um pouco mais adiante…

Philip Roth – a biografia
Blake Bailey €33
D. Quixote
O crítico literário Harold Bloom considerava-o o maior contador de histórias americano depois de Faulkner, e o próprio Philip Roth, que não primava pela modéstia, não teria discordado. «No dia de Natal de 1997, Roth ia pela Columbus Avenue quando um jovem lhe gritou do outro lado do passeio, ‘É o maior escritor americano?’ ‘Vivo’, respondeu Roth». Uma biografia monumental e apaixonante que não deixa nada de fora:a infância em New Jersey, a educação religiosa, o êxito precoce, o conflito com a ortodoxia judaica, as relações tempestuosas com as mulheres, os fantasmas, as obsessões e, claro, os anos finais de cerco cada vez mais apertado pelos vigilantes do politicamente correto. Tudo isto Blake Bailey registou com uma espantosa fluência, numa obra tão rica em episódios picarescos como em saborosos detalhes. Por fim, o próprio biógrafo acabou ‘cancelado’, com a WW Norton a recusar publicar esta obra devido às acusações que sobre ele impendiam de abuso de uma menor. Uma decisão que acabou por constituir mais um ‘afrodisíaco’ para uma publicação que já era muito esperada. E que consegue superar as expectativas mais altas.

Os judeus de pio XII
Johan Ickx €24,99
Vogais
A atuação de Pio XII durante a Segunda Guerra Mundial continua a ser objeto de debate e uma espécie de pedra no sapato para os católicos e para a Igreja. Terá o Sumo Pontífice feito tudo o que estava ao seu alcance para tentar travar a tragédia que decorria na Europa nazi, ou, pelo contrário, terá sido sido conivente ou cúmplice por omissão? Em 2020 o Papa Francisco abriu os arquivos desse período para que a questão ficasse esclarecida de uma vez por todas. Na linha da investigação de Saul Friedländer, Johnaes Ickx, especialista em história da Igreja que trabalha há duas décadas nos Arquivos do Vaticano, conclui que nada há a apontar à atuação do Papa Pacelli: Pio XII opôs-se «a este plano diabólico [Holocausto], esforçando-se, em silêncio por proteger os mais ínfimos valores da vida humana». E apresenta casos de famílias salvas pelos seus esforços, reconhecendo, ainda assim, que «o número de pessoas que o papa e o Gabinete conseguiram salvar parece ser apenas uma gota num imenso oceano de horror e angústia».