Guarda suíça do Papa. O mais pequenino (e grotesco) de todos os exércitos!

Vestem-se como arlequins mas são soldados e dos mais profissionais de todos. Desde o tempo do Papa Júlio II que são, oficialmente considerados, os defensores da liberdade da Igreja. O primeiro contingente chegou a Roma no dia 22 de Janeiro de 1506. Tal como não vai a Corinto quem quer, não é da Guarda Suíça…

Que o Papa tenha um relógio suíço, e dos bons, não seria para admirar. Afinal deve ter dinheiro para as suas extravagâncias, embora eu não faça a mínima ideia de qual é o ordenado limpo de um Papa, se beneficia ou não de alcavalas, se tem sequer salário, é um problema lá da Santa Sé, eles que o resolvam.

Se tivesse um canivete suíço, também não pareceria estranho, embora sejam uns instrumentozinhos do diabo com as suas intermináveis funções, dão jeito a toda a gente, por que não a Sua Santidade? Agora a Guarda Suíça já dá que pensar. Embora, claro, ela não tenha tombado do pico do Matterhorn na Praça de São Pedro por mero capricho da providência.

Em latim, que é língua divina, chamam-lhe Pontificia Cohors Helvetica. E dão nas vistas de forma descarada, com aquelas riscas amarelas e azuis, mais as mangas vermelhas e laranjas, num universo em que o Santo Padre veste de branco, os cardeais de encarnado e os padres de preto, tal como as freiras, que também as há à beira Tibre. Já lá vamos, à explicação de tão garrida vestimenta. Saliente-se que, ao serviço do país mais pequeno do mundo (apenas 0,48 km2), com uma população reduzida de 450 habitantes, o mais pequeno exército do mundo acaba por não ser tão pequeno como isso – 110 militares ao serviço. Mas, tal como não ia a Corinto quem queria, também não faz parte da Päpstliche Schweizergarde qualquer patego.

Há que ter, logo à partida, uma série de requisitos genéticos que faria um fanático igualitarista trepar paredes como se fosse uma lagartixa atrás de um moscardo. Por isso, aviso desde já os eventuais interessados que se não tiverem cidadania suíça ficam logo excluídos à partida. Depois têm de apresentar um documento assinado por um clérigo testemunhando que teve uma educação católica, apostólica e romana. Abaixo dos 19 anos e acima dos 30, também não valem. Nem pensar em ter menos de um metro e setenta e quatro.

Estudos: uma licenciatura ou, vá que não vá, algum curso profissional. Absolutamente solteiros – homens casados no Vaticano não são propriamente bem vistos. Treino completo feito no exército suíço acompanhado por uma declaração oficial de conduta irrepreensível. Depois, o tempo de serviço, pode ir dos dois aos 25 anos, sendo que o número de engajados não pode ultrapassar os 125. Pois, pois. Quem os vê todos vaidosos naquela fatiota grotesca mais própria de arlequins, não imagina o cabo dos trabalhos que tiveram de ultrapassar. O que, até certo ponto, é perfeitamente compreensível. Aquilo não é maneira de se sair à rua.

Não desprezemos, no entanto, totalmente as fardas. Para já porque são feitas à medida. E demoram, no mínimo, dois dias a ficarem prontas. A farda de gala, a tal da mistura de azul, amarelo e vermelho e laranja, absorve as cores dos Medici, a poderosa família italiana que forneceu dois Papas, Leo X (1513-21) e Clemente VII (1523-34). Tudo tem explicação, mesmo a mistura de tonalidades mais absurda.

Mas, por causa das coisas, os soldados da Guarda Suíça têm um outro uniforme, mais discreto, para utilizarem à noite ou no momento de controlarem a entrada massiva de gente no Vaticano, essa toda azul, sublinhando-se o facto, escrito numa das alíneas dos seus estatutos, de procurarem não provocar distrações no tráfego automóvel. Quanto às armas, se a espada é visível e tem um certo charme, não se deixem enganar: desde o atentado à vida do Papa João Paulo II, em 1981, são do melhor e mais eficaz que se encontra no mercado. Podem parecer soldadinhos de chumbo, mas a verdade é que têm chumbo para distribuir com a maior das prodigalidades.

O saque de Roma

A Guarda Suíça do Papa já é velha como a noite dos tempos. Aliás, basta ver pela farda. Na Idade Média, os suíços ainda não eram conhecidos por terem bancos ou fabricarem relógios e chocolates. Tinham mais fama por serem soldados sem grandes escrúpulos, dispostos a combater por quem lhes pagava melhor. Mercenários, digamos. Os serviços prestados, tanto a Estados como a regiões ou cidades, tornou-se tão relevante, por via do absoluto profissionalismo, que poucos eram os que dispunham de dinheiro e não os contratavam para resolverem as suas questiúnculas ou defenderem as suas courelas. Podia dizer-se, com propriedade, glosando um velha frase do nosso Estado Novo, que os soldados suíços não eram tão bons como os demais: eram muito melhores. Bravíssimos!

Ora bem, cabe aqui dar espaço aos Estados Pontifícios, essa realidade nascida das doações à igreja feita pelos antigos imperadores cristãos, geralmente zonas territoriais e algumas de extensão muito razoável. A administração destes territórios foi colocada na mão dos Papas por uma decisão do imperador de Roma, Justiniano I, conhecida por Pragmática Sanção de 554. Ou seja, Suas Santidades, ao contrário de hoje, que só têm de se preocupar com a governação da Santa Sé e de Castelgandolfo (sobretudo nas férias), tinham largos nacos de terra sob a sua alçada. E, nestas coisas de controlar territórios, nada como possuir grupos de militares competentes e empenhados. Como os suíços, por exemplo, mesmo que se fizessem pagar e bem.

Foi exatamente isto que pensou o Papa Júlio II, mal se fez eleger em 1503. Tratou de recrutar um pelotão de guardas suíços e ficou tão satisfeito com o seu profissionalismo que, no ano seguinte, encomendou mais 150 soldados, fazendo deles a sua ala de segurança particular. Júlio era de certa forma suspeito: gostava muito de suíços. Afinal fora bispo de Lausana de 1472 a 1476. E, perante a ganância das coroas espanhola e francesa que ameaçavam continuamente a invasão dos tais territórios papais supracitados, os suíços com a sua militar teimosia ganharam ainda maior peso na sua já enorme consideração por eles.

É por esta altura que temos de falar do grande saque de Roma de 1527. Como de certeza já terão percebido, sucedeu no ano de 1527, mais precisamente no mês de Maio. Fartos de serem maltratados e mal pagos, um enorme bando de mercenários espanhóis, alemães (na sua maioria protestantes e aos quais chamaram Landsknechte) e italianos, invadiram a cidade de Roma e puseram-na a ferro e fogo. Roubaram tudo o que podiam, destruíram por simples prazer, raptaram cidadãos ricos para obterem resgates muito consideráveis.

Tinham sido empregados, chamemos-lhes assim, do imperador Carlos V, chefe do Santo Império Romano, mas amotinaram-se contra o patronato, foi uma grandessíssima chatice e o Papa da altura, Clemente VII, não fugiu a ela. Refugiou-se no castelo de Sant’Angelo e viu a sua Guarda Suíça ser barbaramente aniquilada pelos revoltosos. Depois teve de pagar um balúrdio para poder regressar à Santa Sé.

Ao fim de um ano, a miséria fez das suas. A fome e a peste reduziram a população de Roma de 55 mil habitantes para apenas 10 mil. Uma razia total! Mas o nome de um condottiero afixou-se para sempre na parede das memórias: Lorenzo dell’Anguillara que, vá lá saber-se porquê, preferia ser chamado de Renzo da Ceri. À frente de 5 mil homens – 189 da Guarda Suíça de Clemente, dos quais só se mantiveram vivos 46 – fez frente a um exército inimigo de 20 mil. Aguentou-se como pôde, mas era um assunto resolvido à partida.

Saiu da guerra derrotado mas com fama de herói, logo ele que tinha liderado a vingança de Clemente contra a família Colonna, também conhecida por Sciarrillo, ou Sciarra (em italiano sciarra quer dizer cicatriz), num daqueles conflitos típicos entre famílias com peso político muito forte dentro da igreja e que faziam tudo o que podiam para eleger um dos seus membros como Papa – os Colonna também tiveram um Papa, Martinho V.

Renzo sobreviveu onze anos aos saque de Roma. Morreria em 1536, já um bocado trôpego, tombando do alto da sua montada sem que o cavalo tivesse tido qualquer culpa no assunto. Basicamente, Lorenzo estava caduco.

A recruta do Papa Sisto IV

Regressemos um pouco atrás no tempo. Ao início do século XV. O Papa Sisto IV decidiu fazer uma aliança com a Confederação Helvética, preocupado que estava com os milhares de peregrinos que se instalavam a trouxe-mouxe nas ruas e ruelas de Roma. A solução, para segurança de todos, já que muitos desses peregrinos não eram propriamente de confiança, foi recrutar mercenários suíços, pois então, para manterem uma certa ordem naquele caos. Os anos que se seguiram foram dos mais confusos da História da península itálica e, por consequência, da Guarda Suíça.

Uma sucessão de guerras abalou a região de forma continuada. Primeiro a do Papa Inocente VIII contra o Duque de Milão, em seguida as engendradas pelos Bórgias na sua sede iníqua de poder que envolveram o Sacro Império Romano, a França e diversos Estados Italianos. As coisas tornaram tão confusas que, a certa altura, já havia mercenários suíços a combaterem contra outros mercenários suíços. Lealdade ao dinheiro, como está bem de ver. A tranquibérnia chegou ao ponto de vários milhares de guardas suíços integrarem o exército do rei Carlos VIII, de França, no seu avanço para sul com o objetivo de invadir o Reino de Nápoles que tinha, do seu lado, um forte contingente de guardas suíços.
Chegamos, então, ao ano já falado de 1503, quando o cardeal Della Rovere é eleito sob o nome de Júlio II.

E toma a decisão de exigir que se contrate para o seu serviço um corpo militarizado suíço que ganhará o nome de Guarda Suíça do Papa. Algo apenas possível pelo dinheiro posto ao dispor do papado por dois poderosos comerciantes da cidade de Augsburgo, Ulrich e Jakob Fugger, que haviam decidido investir na segurança do Papa em troca da sua bênção em diversos negócios com os Estados Pontifícios. E assim, em Setembro de 1505, o primeiro batalhão de 150 soldados suíços, comandados por Kaspar von Silenen, partiu em direção a Roma onde chegou no dia 22 de Janeiro de 1506, data que se fixou como a da fundação da Guarda Suíça do Papa. Feliz da vida, Júlio foi parco em palavras: «Eis que recebemos de braços abertos os defensores da liberdade da Igreja!» Até hoje.

1929, 11 de Fevereiro – é ratificado o Tratado de Latrão, assinado por Benito Mussolini e pelo cardeal Pietro Gasparri, Secretário de Estado da Santa Sé. Três documentos são aprovados. O primeiro reconhece a total soberania da Santa Sé sobre o Estado do Vaticano, assim apelidado por se encontrar na colina do mesmo nome, em Roma. O segundo trata-se de uma concordata regulando a posição da Igreja dentro do Estado.

O terceiro termina definitivamente com todas as reivindicações da Igreja sobre os seus antigos territórios, os tais Estados Pontifícios, em troca de uma indemnização a ser paga pela Itália. O Vaticano é, finalmente, um país soberano, mas reduzido à mais ínfima das suas proporções – para além do espaço ocupado pela igreja de São Pedro, tem direitos sobre o palácio de Castelgandolfo e sobre as igrejas de São João de Latrão, Santa Maria Maior e São Paulo Extramuros. 

Hoje, os aquartelamentos da Guarda Suíça do Papa ficam a norte da praça de São Pedro e existe uma capela (São Martinho) e um cemitério particular (Campo de São Teutónico). A hierarquia está estabelecida por um comandante, com a patente de coronel, três outros oficiais superiores, 23 oficiais de baixa patente, um capelão (era o que faltava que não houvesse!), dois tambores e 70 soldados. Todos são empregados da Santa Sé e pagos como tal. O que pode vir dar razão à velha pilhéria: quando alguém perguntou ao Papa Pio XII quantos homens trabalhavam no Vaticano, ele respondeu: «Cerca de metade». Dessa metade, metade são os Guarda Suíços com as suas farpelas grotescas.