Queda de carga fiscal até 2026 é ‘previsão irrealista’?

Especialistas ouvidos pelo Nascer do SOL fazem um raio-x ao Programa de Estabilidade apresentado pelo Governo mas divergem em opinião à carga fiscal. Revisão em baixa do PIB chega sem surpresas.

Com a atual incerteza vivida um pouco por todo o mundo – à qual Portugal não passa ao lado – o Governo apresentou o Programa de Estabilidade (PE), onde prevê que o Produto Interno Bruto (PIB) cresça 5% este ano, fixando-se 0,8% acima do nível pré-pandemia, e suba 3,3% em 2023, impulsionado pelo Programa de Recuperação e Resiliência (PRR). Para os próximos anos, o documento ainda apresentado por João Leão, perspetiva um crescimento de 2,6% em 2024 e 2025 e de 2,5% em 2026. a.

O valor de 5% agora considerado para 2022 constitui uma revisão em baixa face aos 5,5% que inicialmente o Governo previa para este ano e que já tinha admitido que iria rever, tendo em conta o cenário colocado pela guerra na Ucrânia.

Para os especialistas ouvidos pelo Nascer do SOL, a revisão em baixa chega sem grandes surpresas. «A maior parte das economias mundiais também estão a rever em baixa as projeções sobre o crescimento económico», começa por explicar Henrique Tomé, analista da XTB, acrescentando que «estas revisões surgem na sequência da guerra no Leste da Europa que está a agravar os problemas em torno da inflação, com o encarecimento dos preços de várias matérias-primas».

Ao Nascer do SOL, o analista explica ainda que «embora já se esperasse que, após o período do pico da pandemia, as economias pudessem abrandar o ritmo de crescimento, não se esperava que o cenário de guerra se concretizasse na Europa».

Paulo Rosa, economista do Banco Carregosa, garante que esta revisão é «penalizada pela subida das matéria primas, nomeadamente as energéticas, petróleo e gás natural». E deixa o alerta: «Entretanto, se os preços das matérias-primas continuarem a aumentar, os números poderão ser novamente revistos em baixa e os receios de estagflação aumentarão, estagnação económica associada a elevada inflação».

É por isso que o Governo apresenta dois cenários, lembra. Um central configurado na descida de 0,8 pontos percentuais do crescimento do PIB em 2022 para 5% e no aumento da taxa de inflação para 2,9%. «Num segundo cenário, tendencialmente mais próximo de uma estagflação, mais pessimista e sob condições adversas, a inflação poderia alcançar os 4,2% no final de 2022 e o crescimento económico baixar ainda mais para 3,8%», acrescenta o economista.

No caso do cenário adverso, Henrique Tomé deixa um exemplo. «Os últimos dados avançados pelo instituto alemão IFO, alertam para o facto de existirem riscos sobre a economia alemã, nomeadamente riscos sobre uma eventual recessão, dadas as atuais circunstâncias». No caso português «temos uma economia que não se pode comparar sequer com a economia alemã». E acrescenta: «Portugal também faz parte do grupo de países que corre o risco de entrar em recessão se nada se fizer neste momento, e isso poderá trazer novas medidas de austeridade para o país».

Sobre que consequências do cenário mais negativo para Portugal, Paulo Rosa destaca: «As metas iniciais de despesa e receita fiscal seriam mais difíceis de atingir e algumas contrariedades surgiriam em termos de equilíbrio orçamental em 2026 e descida mais robusta da dívida pública». 

Carga fiscal recua?

O Governo estima que a carga fiscal em percentagem do PIB recue de forma continua até 2026, atingindo nesse ano um valor de 34%. Segundo as previsões a carga fiscal descerá para 35,2% este ano, depois de ter subido para 35,6% no ano passado. A confirmarem-se estes valores, a descida inverte a tendência de crescimento dos últimos anos e é inferior ao valor provisório divulgado pelo INE e segundo o qual se terá situado em 35,8% do PIB, o mais alto de sempre desde 1995.

Já a receita fiscal deverá registar um crescimento médio de 4,5% ao ano entre 2022 e 2026.

Para Henrique Tomé não há dúvidas: «Acho que é uma previsão irrealista por parte do Governo e alerto para o risco de podermos vir a assistir a um aumento da carga fiscal em Portugal», diz o analista acrescentando que «as políticas monetárias expansionistas conduzidas pelo BCE deverão transitar para políticas mais restritivas, tal como já está a acontecer nos EUA, e Portugal é sem dúvida dos países mais prejudicados com esta transição».

Henrique Tomé diz que o país continua a contar com um nível de dívida «extremamente elevado (que se agravou com o período da pandemia) e um crescimento económico modesto, no qual o país tem registado ao longo dos últimos anos». Por isso, garante que «desta forma, torna-se difícil aplicar tais medidas».

Já o economista do Banco Carregosa tem outra opinião e diz que «é exequível a descida da carga fiscal em termos relativos nos próximos anos». E deixa exemplos: «Por exemplo, o Executivo projeta um crescimento do PIB nominal de 7,4% em 2022, ou seja, um aumento à volta de 15 mil milhões de euros. Este montante permite acomodar uma subida de quase 5 mil milhões de euros na carga fiscal em termos absolutos em 2022, mas mesmo assim em termos relativos há lugar a uma descida da carga fiscal de 35,6% em 2021 para 35,2% em 2022». E diz que o mesmo se aplicaria aos anos seguintes. 

Inflação continua a subir

Quanto aos preços, as subidas continuam. O ministério prevê que a taxa de inflação aumente para 2,9% este ano, uma revisão em alta de dois pontos percentuais face ao previsto antes. E prevê uma redução da taxa de inflação em 2023 e nos anos subsequentes até 2026, para 1,7%.

O analista da XTB diz que este «não era um ‘problema’ há relativamente pouco tempo. No entanto, devido ao aumento dos preços da energia e da alimentação, a inflação em Portugal também já está a subir a um ritmo preocupante». Alerta que, apesar dos aumentos do salário mínimo, «os portugueses estão claramente a perder poder de compra», e acrescenta: «A solução não pode passar por aumentar os salários mínimos à medida que a inflação continua a subir, porque pode atingir um cenário que é insustentável para o Governo. Por outro lado, a redução de alguns impostos em determinados bens e produtos poderia ser uma opção, mas infelizmente o Executivo continua a não querer considerar como uma alternativa viável».

Já Paulo Rosa diz que a inflação sobe em Portugal tal como sobe na restante Europa devido, principalmente, aos preços da energia. «No mix de energia primária, Portugal tem uma dependência energética do exterior à volta de 70%, nomeadamente do petróleo e do gás natural», lembrando que o Executivo aponta para uma cotação do petróleo de 92,6 dólares por barril em 2022. «O petróleo é uma variável exógena, cujo aumento subtrai riqueza ao PIB nacional, logo as empresas e o Estado português terão alguma dificuldade em repor o poder de compra dos portugueses via aumento do salário mínimo nacional, numa altura em que a aceleração da inflação é ditada, em boa parte, pela subida dos custos energéticos, nomeadamente dos combustíveis fósseis».

Outros dados 

O Governo prevê que a taxa de desemprego deverá ficar nos 6% este ano, valor inferior aos 6,5% previstos anteriormente e antecipa uma redução para 5,8% em 2023 e 5,6% em 2024, reduzindo-se para 5,4% em 2025 e para 5,2% em 2026. Já o emprego deverá crescer 0,7% em 2023 e 0,4% em 2024, 2025 e em 2026.

Quanto às exportações deverão aumentar 13,1% em 2022, impulsionadas pela componente dos serviços, e crescer 5,2% em 2023. As importações vão crescer 11,5% este ano e continuarão a subir nos anos seguintes – tal como as exportações – mas de forma mais modesta.

O Ministério das Finanças pediu ao Conselho das Finanças Públicas que avaliasse o Programa de Estabilidade que garantiu não ter «condições» para apreciar o cenário macroeconómico subjacente ao documento, justificando não ser «uma previsão por não incorporar as medidas de política a adotar». Henrique Tomé é da opinião que o CFP o deveria ter feito, «sobretudo nesta fase em que o país atravessa vários desafios económicos».