40 mil portugueses sofrem de afasia, o diagnóstico que Bruce Willis tornou visível

A semana passada terminou com a triste notícia de que as telas de cinema se vão despedir do ator Bruce Willis, graças a uma doença que lhe começa a afetar a linguagem, memória e capacidade de compreensão. Quem lidava com ele foi vendo os sinais. Mas afinal o que é a Afasia? 

Na semana passada o universo da sétima arte foi marcado por acontecimentos que chocaram, dividiram e entristeceram o mundo. Ambos com protagonistas com rostos bastante conhecidos do público em todos os cantos do planeta, ambos abrindo diálogo e dando visibilidade a doenças de que pouco se fala.  Primeiro, no início da semana, a polémica em torno do ator Will Smith, que no meio da cerimónia do Óscares, agrediu o comediante Chris Rock, após este ter feito uma piada com o facto da mulher, Jada Pinkett-Smith, estar careca, consequência de sofrer de Alopécia Areata – uma doença caracterizada pela perda de cabelo, que afeta homens e mulheres. Já no final da semana, o choque com o anúncio por parte da família do ator Bruce Willis de que este não voltaria a representar por sofrer de Afasia – uma doença neuronal que impede a comunicação em qualquer uma das suas vertentes, escrita, falada ou por sinais, bem como a sua compreensão – após mais de 40 anos de grandes sucessos nas salas de cinema.

“Para os incríveis fãs, e como família, queríamos partilhar que o nosso amado Bruce está a passar por alguns problemas de saúde e recentemente foi diagnosticado com afasia, o que está a afetar as suas capacidades cognitivas. Como resultado disso, e com muita consideração, o Bruce vai afastar-se da carreira que significou tanto para ele”, começa por explicar o comunicado da família. “Este é um momento realmente desafiante para a nossa família e estamos muito gratos pelo vosso amor, compaixão e apoio contínuos. Estamos a passar por isto como uma família unida e queremos alertar os seus fãs, porque sabemos o quanto ele significa para vocês, assim como vocês significam para ele”, conclui o texto assinado pelas cinco filhas do ator atualmente com 67 anos, Rumer, Scout, Tallulah, Mabel, e Evelyn, pela sua atual mulher, Emma Heming, e pela ex-mulher, a atriz Demi Moore.

 

Os primeiros sinais

Apesar desta poder ter sido uma decisão inesperada para todos os seus admiradores e alguns colegas do artista, a verdade é que quem trabalhava de perto consigo já havia notado que algo “não estaria bem”.

Stuart F. Wilson, por exemplo, o duplo do ator, com quem Bruce trabalha há 17 anos, revelou em declarações ao The Sun que havia notado algumas “mudanças” no comportamento do ator das últimas vezes em que trabalhou e esteve com ele. Segundo o mesmo, os dois trabalharam juntos pela última vez na segunda semana de dezembro de 2021 e foi precisamente aí que o duplo o achou “um pouco distraído”. “Quando falavas com ele, ele parecia distraído”, lembrou ao jornal britânico. Essa “distração”, provavelmente foi um dos primeiros sintomas da patologia, mas dado ser um homem muito ocupado, “os colegas não lhe deram muita importância”.

Na verdade, a equipa só se apercebeu de que algo poderia estar a acontecer tendo em conta o facto de “estar a ser submetido a uma bateria de exames”: “Percebemos porque ele estava a fazer exames, mas na altura não sabíamos exatamente o que era”, explicou Wilson, realçando que foi assim que começaram a suspeitar que poderia estar a pensar “em fazer uma pausa na carreira”. Além disso, o duplo de cinema contou que voltou a cruzar-se com Bruce Willis há duas semanas, altura em que diz ter notado algumas diferenças ligeiras na sua aparência física. “Ele estava um pouco mais magro, mas não esquelético. Sempre esteve em grande forma”, sublinhou.

Mas, ao que parece, os sinais já tinham aparecido há mais tempo. Segundo o LA Times, em junho de 2020, Mike Burns, realizador do filme Out of Death, enviou um email ao guionista com um pedido urgente: reduzir o papel do ator no filme. “Parece que precisamos de diminuir as páginas do Bruce para cinco. Também precisamos de abreviar um pouco os diálogos dele para que não existam monólogos, etc…”, escreveu Burns, acrescentando que as linhas deviam ser “curtas e simples”.

Portanto, o declínio das capacidades cognitivas do ator já era, em 2020, bastante notório. De acordo com o jornal, Willis tinha mesmo um ator que viajava com ele e que lhe dizia o texto através de uma escuta. No que toca às cenas de ação – principalmente as que envolviam disparos – começaram a ser filmadas sempre pelo seu duplo. Além disso, revela a mesma publicação, durante as filmagens de Hard Kill, nesse mesmo ano, o artista terá mesmo disparado acidentalmente uma arma carregada com pólvora (mas sem bala) na altura errada. Apesar de ninguém ter ficado ferido, o incidente deixou atores e equipa “fragilizados”.

Segundo o LA Times, em apenas quatro anos, o ator fez 22 filmes, um deles, Out of Death, no qual trabalhou com o realizador Mike Burns que “era uma das poucas pessoas que sabia que o ator estava a lidar com problemas de memória”. “No primeiro dia de trabalho com o Bruce, pude ver isso em primeira mão e vi que havia um problema maior e que tinha sido por isso que me tinha sido pedido para encurtar as suas falas”, afirmou Burns, que explicou que acabou por condensar as 25 páginas de diálogo num dia de filmagens.

No outono passado, os dois voltaram a encontrar-se no filme, Wrong Place, após ter havido uma garantia por parte dos assessores do artista de que este “estava bem melhor do que no ano anterior”. “Não penso que ele estava melhor. Penso que ele estava bem pior. Quando acabámos, disse: ‘Acabou. Não faço mais nenhum filme com o Bruce Willis’. Estou aliviado por ele estar a tirar uma folga’”, admitiu Burns.

Para além de Burns, Jesse V. Johnson, que realizou o filme White Elephant e que durante décadas trabalhou como duplo do ator, afirmou que notou que a condição de Bruce Willis se estava a deteriorar no último ano.

Ao LA Times, o também realizador, contou que, quando se encontrou com o ator em abril do ano passado, este “não era o Bruce” de que se lembrava, mas que quando falou com a equipa que gere a carreira de Willis (e assegurava que as filmagens se limitavam sempre a dois dias) estes garantiram que ele estava bem: “Eles afirmavam que ele estava feliz de estar ali, mas que era melhor se pudéssemos acabar as filmagens com ele pela hora de almoço para que ficasse livre cedo”, relembrou, acrescentando que Willis chegou a questionar “porque estava ali”. Depois desta experiência, Johnson também acabou por tomar a decisão de que não voltaria a trabalhar com o ator.

 

A Afasia

Mas afinal que patologia é esta? “Em primeiro lugar, acho essencial esclarecer que a Afasia não é uma doença! A Afasia é uma sequela de uma lesão cerebral. Normalmente é provocada por uma lesão cerebral súbita – um AVC, um traumatismo crónico acefálico ou tumor cerebral, por exemplo. É, portanto, sempre tudo no cérebro, especialmente no hemisfério dominante – o esquerdo – onde estão as áreas da linguagem”, começa por explicar ao i Luna Barreto, terapeuta da fala do Instituto Português de Afasia.

Segundo a especialista, a Afasia afeta as áreas que são aquelas que nos permitem “compreender o que os outros dizem, expressarmo-nos através da fala, pode também comprometer a escrita, a leitura”: “Atividades que antes não exigiam grande esforço, em que a pessoa tinha facilidade em fazer, podem-se tornar muito difíceis”, apontou. Contudo, “cada caso é um caso”, há pessoas que “compreendem muito bem o que leem, mas percebem pior a fala”, por exemplo. Outras pessoas “expressam-se bem, mas não compreendem tanto”. E outras, “têm a compreensão mantida, mas não conseguem dizer quase nada”. “Depende muito da lesão”, elucida Luna.

No caso Bruce Willis, a especialista acredita que nos encontramos perante um caso de uma “Afasia Degenerativa”, que se chama “Afasia Progressiva Primária”: “Essa Afasia é mais parecida com um processo demencial. Há a lesão do cérebro, claro, mas é uma lesão que começa pequenina, devagarinho e que vai crescendo e afetando, especialmente as tais áreas da linguagem”, conta, reforçando que a afasia “é quase sempre crónica, em qualquer um dos casos”. “Normalmente quando é por lesão súbita, a pessoa pode ficar muito mal, mas há sempre uma recuperação espontânea da componente neurológica. Uma melhoria! No caso da Afasia Progressiva Primária, não há uma melhoria. A pessoa vai piorando”, lamenta. 

Luna Barreto afirma que a terapia da fala e a neuropsicologia – que trabalham as partes cognitivas -, “ajudam a retardar a evolução e a preparar a família e a própria pessoa para o que aí vem”. “No fundo, preparar a pessoa para arranjar estratégias alternativas à fala, ajudas, suportes que a ajudem a conversar, suportes escritos, etc. É preciso preparar as pessoas para isso”, alertou. No caso da Afasia Degenerativa, “a pessoa vai sempre chegar a um ponto onde efetivamente não compreende nada do que lhe dizem e praticamente não se consegue expressar”. “Normalmente este é um processo que demora alguns anos, mas, mais uma vez, depende do caso. Se for detetado mais cedo, é possível retardar mais, mas, mais cedo ou mais tarde, vai sempre atingir essa fase”, explicou. Além disso, a especialista acredita que, antes deste anúncio, “quase ninguém sabia o que era a Afasia”: “As pessoas estão finalmente a perceber que ela existe. 40 mil portugueses sofrem desta patologia. Um terço das pessoas que têm um AVC, fica com Afasia…É um problema social! Está na hora de lhe darmos atenção!”, remata.