O Senhor Presidente regressa a Lourenço Marques

Uma ‘selfie’ com Putin, seguida de um mergulho nas águas de Cascais e uma mudança de calções simultânea talvez fossem suficientes para acabar com a guerra…

por João Cerqueira

O Senhor Presidente da República Doutor Marcelo Rebelo de Sousa é o mais popular dos políticos nacionais. Com a inteligência que se lhe reconhece, deu início a uma nova forma de desempenho do excelso cargo que ocupa que se caracterizou por tirar selfies com cadastrados, mudar de calções de banho à frente dos jornalistas e, ante os sucessivos escândalos políticos, garantir que, desta vez, irá ser tudo, tudo, tudo esclarecido.

Desde a implantação da República, já houve muitos Presidentes, mas, salvo o Almirante Américo Tomás, apenas o Doutor Marcelo Rebelo de Sousa conseguiu tamanha popularidade nas suas visitas pelo país. O Almirante Tomás cortava fitas, o Doutor Marcelo tira selfies. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, permanece a vontade de servir a Pátria.

O povo, os intelectuais de esquerda e a classe média que vê A Guerra dos Tronos e frequenta outlets estão rendidos. Sua Excelência o Presidente Marcelo desceu dos olimpos da academia e do comentário político e voga entre as forças vivas, brutas e anestesiadas da nação. A todos escuta com atenção, dá um conselho sábio e, sempre que pode, tira uma selfie. Por muito que lhe custe, a popular apresentadora de televisão Cristina Ferreira não conseguiria fazer melhor.

Recentemente, o Senhor Presidente da República visitou Moçambique, país irmão com o qual Portugal e a Europa estão em crescente sintonia. Por exemplo, Moçambique absteve-se na votação nas Nações Unidas que condenava a invasão russa da Ucrânia com o argumento de que «é preciso dar espaço ao diálogo». Portugal votou a favor da condenação, mas também acredita que é preciso dar espaço ao diálogo. De facto, o diálogo, a paz e a sorte dos ucranianos foram realmente atirados para o espaço sideral. Logo, fez muito bem o Senhor Presidente da República em não empolar o assunto pois as duas posições são praticamente iguais. Aliás, uma selfie com Putin, seguida de um mergulho nas águas de Cascais e uma mudança de calções simultânea talvez fossem suficientes para acabar com a guerra.

 

E como a guerra na Ucrânia não interessa muito a Moçambique, não se falou mais no assunto. Numa visita a um resort ecológico, o Senhor Presidente da República surpreendeu a assistência ao usar uma linguagem bucólica adaptada à realidade africana. Num momento de rara poesia protocolar, convidou os futuros turistas a dialogar com o elefante, a trocar impressões com a girafa, a momentos românticos com os pássaros e, para ‘os muito marítimos’, as mesmas intimidades com os peixes. Ora desde que São Francisco de Assis dialogou com os animais, a irmã flor e o irmão sol que não se ouvia nada semelhante. E se na altura os habitantes de Assis ficaram surpreendidos, há uma semana os moçambicanos não deverão ter ficado menos estupefactos.

Porém, há um problema: que se saiba, o Senhor Presidente da República ainda não faz milagres. Por isso, se São Francisco de Assis foi capaz de amansar o lobo que aterrorizava a cidade de Gúbio com a promessa de que cuidaria dele caso o bicho não comesse mais ninguém, talvez o Senhor Presidente não tenha tanta sorte com as feras africanas. Imagine-se que inspirados pelo seu discurso incautos turistas resolvem mesmo entrar na selva para dialogar com o elefante:

– Ó amigo elefante, és a favor ou contra a invasão da Ucrânia?

A pergunta é legitima, faz sentido, mas nunca se sabe ao certo o que vai na cabeça de um elefante – geralmente andam de trombas. Assim, como estes paquidermes têm a tal memória de elefante, podem recordar-se do tempo da guerra civil em que eram abatidos a tiros de Kalashnikov para alimentar os exércitos da Frelimo e da Renamo ou, mais recentemente, de que Moçambique é um dos países onde mais se abatem elefantes como desporto. Assim sendo, o conselho do Senhor Presidente da República pode resultar num incidente diplomático: o turista, em vez de dialogar, é pisoteado e atirado ao ar pelo elefante. É claro que o Senhor Presidente diria logo que era preciso ‘esclarecer tudo, tudo, tudo’, mas, mesmo assim, o turista já estaria morto e o resort sem hóspedes.

E quanto à sugestão de momentos românticos com pássaros e intimidades com peixes, as consequências podem ser igualmente graves para o futuro das relações entre os dois países. Porque nem toda a gente entende as subtilezas da poesia bucólica onde os pastores vivem em harmonia com a natureza, tangem rebanhos dóceis e tocam flautas para as suas amadas. Por isso, este convite a intimidades com a bicharada pode dar azo a práticas nada poéticas semelhantes às de alguns pastores que trocam as leituras de Virgílio por momentos de zoofilia romântica com as suas ovelhas – com a agravante que também poderão tirar selfies durante o ato. Ora o Senhor Presidente da República não quer estar associado as estas coisas.

Seja como for, na visita a Moçambique a inspiração literária do Senhor Presidente brotou como capim depois da chuva. Passando da poesia bucólica à ficção científica, o Senhor Presidente deixou claro que não tinha saudades do passado, só do futuro. Todavia, quando associou Moçambique a feitiços e aos mencionados animais da selva, Sua Excelência pareceu reduzir o país aos estereótipos coloniais que a cultura do cancelamento tanto condena. Algo semelhante a Paul Gauguin quando pintou as nativas da Polinésia a dançar diante ídolos pagãos ou em poses contemplativas numa fantasia primitivista e exótica de exaltação do bom selvagem. Nessas alturas, quiçá inconscientemente, o Senhor Presidente parecia julgar que ainda se encontrava em Lourenço Marques.