Quando os livros eram bens preciosos

A Grande Mudança descreve a descoberta, em 1417, do poema. De rerum natura, num mosteiro remoto da Alemanha.

Poderá um livro fechado comunicar connosco? Claro que sim, a capa serve precisamente para isso. O tamanho do volume, o título, o nome do autor, etc., fornecem-nos alguma informação básica que nos permite avaliar se o descartamos de imediato ou se, pelo contrário, achamos que vale a pena dedicar-lhe algum tempo. Mas eu falava de comunicação a um nível mais profundo, uma espécie de telepatia, que faz com que certos livros nos lancem um apelo e não descansemos enquanto não nos apoderamos deles.

Aconteceu-me um dia destes, num centro comercial pouco movimentado. Tinha ido ao supermercado fazer compras para o jantar quando o vi de passagem na montra de uma papelaria. Nunca tinha ouvido falar daquele título nem do seu autor, mas apelou-me de imediato: A Grande Mudança, de Stephen Greenblatt (ed. Clube do Autor). Mais do que o título, foi o subtítulo que me seduziu: ‘Origem e história do pensamento moderno’. A capa exibe o desenho de um manuscrito aberto.

Uns dias depois, voltei de propósito ao local do crime mas já não vi o livro na montra. Alguém se teria adiantado? Entrei na papelaria e lá acabei por dar com ele, um exemplar único, perdido num mar de títulos não especialmente interessantes. Evidentemente resgatei-o ao duvidoso destino de ficar a definhar num negócio onde a maioria dos clientes procura raspadinhas e euromilhões.

A Grande Mudança conta a história verídica da descoberta, em 1417, do poema De rerum natura, do filósofo epicurista Lucrécio, num mosteiro remoto na Alemanha. Greenblatt argumenta que foi a visão essencialmente materialista de Lucrécio que fecundou os espíritos da época e deu à luz o mundo moderno.

O autor desta descoberta chamava-se Poggio Bracciolini (1380-1459), literato e um dos primeiros humanistas, que se encontrava então desempregado, depois de o Papa que ele servia, João XIII, ter sido deposto e preso.

Vendo-se sem ocupação, Poggio decidiu viajar em busca de manuscritos clássicos nas velhas bibliotecas dos mosteiros. A intuição levou-o à abadia beneditina de Fulda, no coração da Alemanha. Graças ao seu conhecimento do latim e dos clássicos, este detetive dos livros antigos conseguiu identificar o De rerum natura, que tinha sido louvado por Cícero mas nunca fora encontrado.

Terá sido realmente o poema de Lucrécio, que descreve um mundo composto por átomos em movimento, que pôs o Renascimento em marcha? Há quem considere exagerado atribuir a Poggio a responsabilidade por esta revolução. E talvez seja. Mas nem por isso o livro de Greenblatt é menos meritório ou encantador.

Poggio teve de recorrer à sua prática de escrita para copiar o De rerum natura, sempre sob a vigilância apertada dos monges. Os livros eram bens demasiado preciosos para poderem sair do mosteiro ou sequer serem deixados à mercê de um estranho sem supervisão. Os roubos não eram incomuns. «Àquele que rouba livros, ou que não devolve livros emprestados, que o livro se transforme em serpente na sua mão e o pique», dizia um manuscrito medieval citado pelo autor. «Que seja atingido por paralisia e todos os seus membros rebentem. Que definhe de dor, implorando por clemência, e o seu tormento não seja aliviado até que entre em decomposição». Não desejo tal sofrimento a ninguém mas… ó vós que pedis livros emprestados e não os devolveis, ponde bem os olhos nisto!