A Justiça de Daniel Proença de Carvalho

Há quem lhe tenha chamado ‘Advogado do Diabo’ (também pela sua fisionomia, e particularmente pelo seu rosto com bigode e barba em pera, sempre cuidadosamente aparada, e pelo sorriso peculiar) ou ‘Maquiavel à moda do Minho’ (José Mensurado escreveu-o num jornal e a ‘ousadia’ valeu-lhe ter sido corrido da RTP presidida por Proença de Carvalho).

Daniel Proença de Carvalho é uma das personalidades marcantes das últimas décadas do século passado e da primeira do novo milénio em Portugal.

Delegado do Ministério Público após ter concluído o curso de Direito, na década de 60, foi depois inspetor da Polícia Judiciária antes de abraçar a advocacia, passando pela direção e pela administração de jornais e de grupos de media, foi presidente da RTP, entre inúmeros outros cargos em assembleias-gerais ou conselhos de administração de incontáveis empresas e outras pessoas coletivas (associações, fundações e o que mais houver), além de ter estado sempre intimamente ligado à política – chegou a militar no PS em 1974, foi ministro da Comunicação Social de Mota Pinto (então líder do PSD convidado a formar Governo por iniciativa do Presidente Ramalho Eanes), diretor de campanha de Freitas do Amaral, mandatário de Cavaco Silva, e foi em sua casa que Mário Soares e Mota Pinto selaram o acordo para a formação do primeiro e até agora único Governo de Bloco Central, no início dos anos 80.

Tem, pois, um currículo absolutamente impressionante, que elevou a sua influência muito além das fronteiras de Portugal e da Europa, com especial incidência nos continentes africano e sul-americano.

E a sua experiência nos fora da Justiça é vastíssima. Não por ter tido aquela passagem pelo Ministério Público e pela PJ ou por ter defendido na barra os mais influentes e poderosos deste retângulo à beira do Atlântico.

Mas por ter sido amigo ou conselheiro de primeiros-ministros e ministros do burgo, da Justiça e não só, além de Presidentes da República, líderes e dirigentes partidários, deputados, banqueiros, empresários, ou seja, tanto de decisores como de lobistas.

Foi, de facto, advogado de muitos daqueles que se viram a braços com as teias da Justiça e defendeu-os sempre com inegável saber. Desde muito jovem – como no caso da Herança Sommer, que lhe valeu injustas acusações por ter vindo do MP e da PJ, mas cujo ganho de causa o celebrizou – até à passagem de testemunho na advocacia para o filho Francisco, já nestes últimos anos.

Há quem lhe tenha chamado ‘Advogado do Diabo’ (também pela sua fisionomia, e particularmente pelo seu rosto com bigode e barba em pera, sempre cuidadosamente aparada, e pelo sorriso peculiar) ou ‘Maquiavel à moda do Minho’ (José Mensurado escreveu-o num jornal e a ‘ousadia’ valeu-lhe ter sido corrido da RTP presidida por Proença de Carvalho).

No seu escritório no sétimo andar da torre 3 das Amoreiras – antes de se transferir para o Marquês de Pombal aquando da fusão da sua sociedade com a igualmente poderosa Uría e Menéndez e que ocupei com José Marquitos quando passou a ser a sede da administração da sociedade então detentora do jornal SOL – na sala de reuniões onde recebia os seus clientes ou as partes contrárias tinha na parede da cabeceira da longa mesa de madeira maciça um quadro com a imagem do… Diabo (que se vê na fotografia que se reproduz e que circula na internet). Proença de Carvalho deixou ficar praticamente a mobília toda do seu escritório, incluindo aquela bonita mesa, mas o quadro levou-o.

Daniel Bettega Proença de Carvalho, nasceu na Soalheira (Fundão, Beira Baixa) em 1941 e lançou esta semana o livro Justiça, Política e Comunicação Social – Memórias de um Advogado, na Fundação Champalimaud, com a presença de Marcelo Rebelo de Sousa, António Ramalho Eanes, Eduardo Ferro Rodrigues, Manuel Alegre, Leonor Beleza, entre muitas outras influentes personalidades da nossa praça.

Do autor disse, e bem, o Presidente Marcelo que se trata de uma das figuras políticas, sem cargo, «mais relevante das últimas décadas», acrescentando que «como alguém que é excecional», Proença de Carvalho «suscitou grandes admirações, ataques e incompreensões».

Confesso que este livro, assinado por quem o assina e com aquele sugestivo título, me suscitou a maior das curiosidades e apetência de leitura.

Mas eis que logo as primeiras notícias sobre a obra revelam que o advogado não fala sobre dois seus notáveis constituintes e amigos – Ricardo Salgado e José Sócrates – e atribui grande parte da responsabilidade pelo estado a que a Justiça chegou na democracia portuguesa a um procurador-geral da República de enorme e justa reputação, Narciso da Cunha Rodrigues.

A Justiça portuguesa está pelas ruas da amargura, pela lentidão, pela falta de meios, por muitas decisões incompreensíveis, por muitas das razões, e exemplos, que enuncia na sua aliás douta obra escrita e agora lançada.

Mas, com a devida vénia, Dr. Daniel, a culpa pode ser de muitos magistrados judiciais e de seus ex-colegas do Ministério Público, mas é com toda a certeza muito maior daqueles que, nos sucessivos Governos, deixaram chegar os tribunais à penúria em que se encontram, ou dos fazedores das leis (sobretudo processuais) que muito contribuíram para impedir que se faça Justiça (que já nem se pode dizer que seja ‘costumada’) e sobretudo daqueles muito poucos que, sem cargo mas sempre gravitando nas esferas daqueloutros, os souberam influenciar.

A Justiça que hoje temos, infelizmente, está e foi feita à medida destes últimos, que tanto tiraram proveito dela.