A humilhação da ONU

Na primeira vez em que os seus poderes foram verdadeiramente testados, com um país a invadir outro em pleno continente europeu, a ONU falhou de forma estrondosa.

Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, foi ontem a Kiev, na companhia do responsável dos Negócios Estrangeiros da UE, Josep Borrell.

Na semana passada, fora a vez de lá ir a presidente do Parlamento Europeu, Roberta Metsola.

Antes, tinham viajado até à capital ucraniana os líderes da Eslováquia, da República Checa e da Eslovénia.

E entretanto o Presidente norte-americano, Joe Biden, foi à fronteira da Polónia com a Ucrânia.

Não há personalidade internacional que não vá àquela região.

E o mundo pergunta-se: e o secretário-geral da ONU, António Guterres?

Por onde anda?

Não deveria caber-lhe um papel crucial neste momento?

Não foi exatamente para isso que a ONU se fez?

A ONU foi criada em 1945, no rescaldo da II Guerra Mundial, com o objetivo de precaver novas guerras.

A ideia era constituir um fórum onde os representantes dos países se encontrassem e debatessem as questões que os dividiam, evitando o recurso à violência.

Um lugar onde as guerras verbais substituíssem as guerras a sério.

Onde a diplomacia dissuadisse o uso da força.

Foi esta a ideia que levou à criação da ONU.

E durante 80 anos funcionou.

Mas na primeira vez em que os seus poderes foram verdadeiramente testados, com um país a invadir outro em pleno continente europeu, a ONU falhou de forma estrondosa.

E falhou porquê? Porque está amarrada internamente.

Porque os seus estatutos conferem aos três países potencialmente mais imperialistas – os Estados Unidos, a China e a Rússia (a par do Reino Unido e da França) – o direito de veto, podendo bloquear todas as resoluções.

Qualquer desses países poderá desencadear uma ação militar contra outro, por mais brutal que seja, sem receio de ter de enfrentar uma condenação ou uma interposição da ONU.

Foi com essa certeza que a Rússia invadiu a Ucrânia.

António Guterres não foi (nem irá) a Kiev, porque é um homem de mãos e pés atados.

Como figura máxima da ONU, ele representa a vontade da organização – e portanto, também, o ponto de vista da Rússia.

Por paradoxal que pareça, Guterres tem neste conflito um pé num lado e um pé no outro.

E por isso não pode fazer mais do que apelar à paz, como o Papa inutilmente tem feito (apesar do enorme eco da sua palavra).

A voz de António Guterres conta hoje, neste conflito, pouco ou nada.

Contam muito mais as vozes de Joe Biden, de Ursula von der Leyen, de Emmanuel Macron, do chanceler alemão Scholz, do secretário-geral da NATO Stltenberg, do secretário-geral dos EUA Blinken, de Boris Johnson, de Borrell e mesmo de Merkel, que já não tem cargo nenhum; além da de Zelensky, evidentemente.

António Guterres, basicamente, prega no deserto.

O facto de a ONU estar manietada tem-se visto em todas as vertentes desta guerra.

Não tem tido qualquer papel nas conversações de paz, que são mediadas pela Turquia.

Não tem tido qualquer papel no socorro às populações, área em que a Cruz Vermelha, a Igreja ucraniana e grupos organizados ad hoc por todo o mundo têm conseguido, apesar das dificuldades, fazer alguma coisa.

Não tem tido sequer qualquer papel no estabelecimento de corredores humanitários para a evacuação de populações sitiadas (os quais resultam de acordos bilaterais entre a Ucrânia e a Rússia, aliás frequentemente violados).

Na Ucrânia, a ONU falhou em toda a linha nos próprios fins específicos para que foi criada.

Revelou-se uma estrutura puramente formal, muito burocratizada, que servirá sobretudo para gastar dinheiro e dar emprego.

Os milhões e milhões que consome destinar-se-ão mais a suprir as suas próprias despesas de funcionamento do que a resolver problemas no mundo.

Nesta guerra, a ONU está a ser humilhada.

E se continuar por este caminho está inapelavelmente condenada.

O direito de veto das principais potências inutiliza-a, retira-lhe qualquer capacidade para garantir a paz onde quer que seja.

Dói muito estarmos hoje a assistir à chacina de um povo aqui mesmo à frente dos nossos olhos e não haver nenhuma força capaz de a travar.

É desesperante assistirmos à devastação de um país e não haver nenhuma organização com poder para impor e fazer cumprir a lei.

Os vindouros terão muita dificuldade em perceber como uma coisa destas foi possível.