Bucha. ‘Humanidade despedaçada’

‘O mundo inteiro está de luto’, declarou Ursula Von der Leyen, de visita a uma das valas comuns de Bucha.

Bucha. ‘Humanidade despedaçada’

À medida que retiravam à pressa do norte de Kiev, acossadas por tropas ucranianas, forças russas deixavam para trás vestígios de atrocidades em massa. Partiram sem ter tempo para esconder as provas, deixando o mundo chocado com as imagens do horror de Bucha. Entre a comunidade internacional, a grande dúvida é se Bucha foi um caso isolado, resultado de sucessivos crimes de soldados russos fora de controlo, com a disciplina e a moral quebrada; ou se foi algo ordenado a partir de altas instâncias, uma estratégia concertada com o objetivo de quebrar a resistência ucraniana.

Há cada vez mais indícios disso, e teme-se que outros horrores encontraremos escondido debaixo dos escombros. Sobretudo em Mariupol, a mais martirizada cidade ucraniana, particularmente odiada pelo Kremlin. Não apenas por estar no meio do corredor terrestre que Vladimir Putin sonha criar entre Donbass e a Crimeia, mas por ser o quartel-general de nacionalistas ucranianos como os neonazis do batalhão Azov, que este usou como pretexto para a sua invasão.

Entretanto, o clamor contra as atrocidades vai-se tornando cada vez audível. «Aqui em Bucha, vimos a nossa humanidade ser despedaçada e o mundo inteiro está de luto», garantiu a presidente da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen, esta sexta-feira, durante a sua visita a esta cidade nos arredores de Kiev, tomada logo nos primeiros momentos da invasão e apanhada no meio das manobras para cercar a capital. «Vimos aqui crueldade do exército de Putin», lamentou Von der Leyen, vestida com um colete à prova de bala, após ter sido levada a ver uma vala comum.

 

Trauma e ódio

Iryna Yarmolenko, uma mãe de 30 anos, eleita para o conselho municipal de Bucha, que teve a sorte de conseguir escapar no primeiro dia da invasão russa, não esquece o pesadelo que viveram os seus amigos e vizinhos. Escutou-os, sempre que havia rede, a contar como tinham medo de sair à rua, que os russos disparavam contra tudo o que mexia.

Em Bucha – onde foram encontradas centenas de corpos de que os invasores não se conseguiram livrar a tempo, imagens mostram um cadáver que ainda tentaram queimar com pneus, mas tão terminaram a tarefa – os invasores raptavam civis, torturavam-nos, executavam-nos, violando mulheres e saqueando casas.

«Eles até roubaram mobília das casas, as televisões, misturadoras, é de loucos», conta Yarmolenko em conversa por telemóvel ao Nascer do SOL, com a voz ainda notoriamente abalada. «Isto é terrorismo. As chefias militares deles permitiram-lhes comportarem-se assim. Parece que lhes disseram: ‘Podem fazer o que vos apetecer’. Eles bebiam muito, talvez achassem que era divertido. É horrível».

Se qualquer exército tem a sua quantidade de monstros, de gente atraída pela violência, que se não for mantida com rédea curta deixa para trás um rasto de destruição, não parece ter sido apenas isso que se sucedeu. Os serviços secretos alemães intercetaram conversas por rádio entre tropas russas em Bucha, em que conversavam tranquilamente sobre os seus crimes, revelou esta quinta-feira o Der Spiegel. «Primeiro interrogas os soldados, depois disparas contra eles», recomendava um militar russo a outro, numa destas comunicações.

A suspeita do Serviço Federal de Informações (BND, na sigla alemã) é que os massacres «não foram atos aleatórios», avançou o jornal alemão, mas sim que «o assassínio de civis se tornou um elemento padrão da atividade militar russa. Potencialmente até parte de uma estratégia mais ampla».

Nem que fosse por motivos operacionais. Testemunhas têm contado como, à medida que a ofensiva do Kremlin ia perdendo o seu ímpeto inicial, permitindo até às forças ucranianas contra-atacar, tropas russas estavam aterrorizadas que a população não-cooperante com que se depararam comunicasse as suas posições aos militares da Ucrânia. No início dos massacres as forças russas «provavelmente inicialmente estavam à procura de informação que a pudessem usar para a ocupação», considera Yarmolenko. «Mas também tiraram telemóveis, para que não se soubesse de nada».

No entanto, claro que atrocidades à escala do que vimos em Bucha requerem um ódio muito particular. «Eles falavam de nós como se fossemos selvagens. Como se a nossa nacionalidade tivesse de ser eliminada, não gostam da nossa pronuncia», lamentou a conselheira municipal de Bucha. Que até tem familiares próximos a viver na Rússia, dando com eles praticamente sujeitos a uma lavagem cerebral da propaganda difundida pelos media russos, controlados com mão firme pelo Kremlin.

Talvez tenha sido isso o motivador para as atrocidades cometidas pelas tropas russas em Bucha. «Quando Putin diz que a nação da Ucrânia não existe, é claro que eles o ouviram. Acham que são privilegiados e que nós somos cidadão de segunda categoria», explica Yarmolenko.

«Mas nós ucranianos temos uma alma muito especial, que nos faz combater. Temos uma história dura, mas sempre protegemos a nossa independência, a nossa cultura», assegura. «Tenho muito orgulho em nós. Mas eles não percebem isso».