Guggenheim Bilbao. Velocidade gloriosa

Uma exposição em Bilbau junta a alguns dos mais belos carros do mundo obras-primas da pintura, escultura, arquitetura e fotografia. Norman Foster, o comissário, chama-lhe ‘um requiem para a era da combustão’.

O que fazem 38 carros estacionados no interior do Museu Guggenheim de Bilbau? Desde que o MoMA de Nova Iorque colocou numa montra um par de esferográficas Bic, não deveríamos estranhar encontrar, no interior altamente seleto e elitista destas instituições, objetos industriais do quotidiano. Ainda assim, a presença das 38 máquinas no museu de arte moderna basco pode levar alguns dos mais puristas a franzir o sobrolho.

Há cerca de 70 anos, a propósito da exposição 8 Automobiles no MoMA (1951), o comissário Arthur Drexler dizia que «os automóveis são esculturas sobre rodas». Mas Motion. Autos, Art, Architecture, a exposição que Norman Foster comissariou para o Guggenheim de Bilbau, e que estará patente até 18 de setembro, vai muito além disso. «À medida que avançamos pelas galerias ocorre-nos a palavra emoção», explicou o arquiteto britânico na inauguração, na passada quarta-feira.

«Vemos estes objetos extraordinariamente belos a coexistir, ao mesmo nível, com grandes obras de arte e arquitetura. Há uma sinergia cultural, e isso opõe-se a uma mentalidade compartimentada segundo a qual ‘isto é uma obra de arte, aquilo é apenas um carro’. Não, não é [apenas um carro], é um artefacto cultural relevante de pleno direito». Foster, note-se, é ele próprio um apaixonado por automóveis e 11 dos exemplares exibidos – desde um Fiat 500 azul-bebé, de 1957, até um soberbo Bentley R Type Continental, de 1953 – pertencem à sua coleção.

«Não é por acaso que esta exposição está neste museu. Todos sabem que o setor automóvel está no ADN da indústria da região», começou Juan Ignacio Vidarte, diretor-geral do Guggenheim Bilbao. «Creio que este é o projeto mais complexo dos 25 anos de vida do museu. Apresenta uma panorâmica da história do automóvel, desde a sua invenção, em finais do século XIX, com os âmbitos paralelos da pintura, da escultura, da fotografia, desenho, arquitetura, e por isso, além dos 38 extraordinários veículos que se pode admirar nas salas do museu, pela sua beleza, inovação, pela visão de futuro, vamos encontrar obras fantásticas de artistas como Brancusi, Moore, Calder, Chamberlain, Warhol, Hockney, Rosenquist. Esta exposição questiona também os habituais nichos de separação entre disciplinas, mostra a inter-relação permanente, tanto do ponto de vista visual como do ponto de vista cultural, que existe entre as diferentes disciplinas da criatividade humana», rematou o responsável.

O arquiteto corrobora este ponto de vista: «Houve extraordinárias exposições sobre a obra de artistas, sobre a obra de arquitetos, e houve exposições extraordinárias de automóveis. Mas que eu tenha conhecimento nunca houve uma exposição que juntasse todas estas disciplinas e que criasse, como esta cria, um fórum onde podemos estar a falar de energia, do futuro, de mobilidade, de poluição».

Automóveis a galope

Se hoje, como nota Foster no texto de abertura do catálogo da exposição, o automóvel «se converteu no vilão urbano» (ao ponto de muitas cidades históricas, em particular em Itália, limitarem a sua circulação), ao início esta máquina trazia consigo uma promessa de higiene e salubridade. «Na primeira galeria vê-se a forma como o automóvel é um cavaleiro branco, embeleza e limpa a cidade», recordou o arquiteto. «Ninguém tem memória do mau cheiro do esterco, das doenças provocadas pelas carcaças de cavalos a apodrecer. Um dia, surge o automóvel e a cidade é bela outra vez».

Motion. Autos, Art, Architecture propõe uma viagem que começa em 1886, com o Benz Patent Model Car, de três rodas, que Foster descreve como «uma carruagem a que só faltam os cavalos» (e cuja imagem surge multiplicada numa serigrafia feita por Andy Warhol cem anos depois – Benz Patent Motor Car, de 1986). Do ano seguinte ao veículo criado por Karl Benz é exibida uma sequência célebre de fotografias captadas por Eadweard Muybridge, que revelaram pela primeira vez a posição das pernas de um cavalo a galope, algo que escapava ao olho nu.

Curiosamente, na época colocava-se já uma questão que hoje adquire especial premência: qual o tipo de energia mais apropriado. «Nestes primeiros anos a indústria ainda não sabia quem ia vencer a batalha: se o motor elétrico, se o motor a vapor, se o motor a combustão», aponta Manuel Cirauqui, curador do museu, numa visita guiada à imprensa. Exemplo disso é o Elektrischer Phaeton, Modell Nr. 27, System Lohner-Porsche, de 1900, um modelo tão ‘maneirinho’ que faz lembrar os atuais carrinhos para passear bebés.

«Em 1900, as vendas de carros novos nos Estados Unidos eram de 40 por cento a vapor, 38 por cento elétricos e apenas 22 por cento a gasolina. Nesse mesmo ano, 98 por cento das viagens entre cidades norte-americanas realizava-se de comboio», recorda Jonathan Glancey no texto ‘Mudando de velocidade: do arranque à aerodinâmica’, incluído no catálogo da exposição.

A primeira grande mudança dá-se com o aparecimento do Ford-T, o primeiro carro produzido em série (a partir de 1913), cuja proliferação, nas palavras de Cirauqui, «altera completamente o ambiente urbano». Nem todos os automóveis, porém, são tão democráticos, como mostra um imponente Rolls Royce Alpine Eagle, de 1914, com 7428 cc e capaz de acelerar a uns impressionantes 130 km/h.

A revolução seguinte dá-se com as pesquisas de Paul Jaray no domínio da aerodinâmica. Este engenheiro francês, que colaborou com Gustave Eiffel, candidatou-se a um lugar na empresa alemã Zeppelin, que produzia dirigíveis, e acabou por ser aceite. Jaray conseguiu convencer a empresa a construir um túnel de vento para fazer pesquisa e acabou por chegar à conclusão de que a forma da gota de água era a que oferecia menos resistência ao vento, ou seja, permitia atingir maiores velocidades com menor consumo. Progressivamente, os automóveis foram deixando de ter as linhas estáticas das carruagens para adquirirem as formas arredondadas esculpidas pela aerodinâmica.

Pela mesma altura em que Paul Jaray fazia os seus testes nos túneis de vento na Alemanha, um artista em Paris chegava às mesmas formas mas por um processo de apuramento dos volumes. De Constantin Brancusi – um romeno que segundo a colecionadora Peggy Guggenheim gostava de aparecer nos restaurantes dos hotéis mais elegantes de França vestido como um camponês e pedir os pratos mais caros – são exibidas as esculturas Peixe, de 1926, e Pássaro no Espaço, de 1932-40, com a sua estética elementar.

É esse justamente o título da segunda sala – Esculturas –, onde se apresentam alguns dos pontos altos da exposição. Manuel Cirauqui aponta para «um dos carros mais caros e cobiçados do mundo», um Bugatti Type 57SC Atlantic. Considerado também um dos mais belos de sempre, em 2010 um dos raríssimos exemplares foi vendido por mais de 30 milhões de euros.

«A maior parte destes carros não foram produzidos em série. De alguns deles existem apenas um, dois ou três exemplares, de outros existem, quatro cinco, que eram oferecidos a figuras de grande poder, comprados por magnatas, famílias reais… Estes carros sim, são industriais, mas são também grandes obras de trabalho artesanal. Nesse sentido, parecem-se com esculturas», continua o curador.

«Lembro-me de um amigo artista passar a mão pelo aileron traseiro do meu Bentley R Type Continental de 1953 e ter declarado que era igual a acariciar uma obra de Constantin Brancusi ou Henry Moore», evoca Norman Foster no Catálogo.

Também no catálogo, Matthew Foreman escreve que o Bugatti Atlantic constitui «o zénite da forma escultural nos automóveis». «O amplo capô curvo e os pára-lamas dianteiros alongados combinam perfeitamente com a exótica traseira ovalada. As elegantes portas estendem-se até o teto para que o passageiro possa entrar mais facilmente. A atraente barbatana dorsal de alumínio rebitado é puramente estética […] mas contribui para a ideia do carro como um grande felino pronto para atacar». E, tal como certos animais selvagens em vias de extinção, esta é uma daquelas máquinas quase impossíveis de avistar.

Ali ao lado, para sublinhar as afinidades, foram integrados dois clássicos da escultura moderna. «A de Henry Moore [Figura Reclinada, 1956] é escultura modernista no seu melhor. Vemos a pureza de formas e estruturas, sem pormenores ou rostos específicos. É apenas a estrutura, composição, a compensação de pesos, os volumes», refere Cirauqui. Suspenso do teto como um lustre, vemos um mobile de Alexander Calder – tal como um automóvel, uma escultura em movimento.

Le Corbusier e o engenheiro roubado por Hitler

Se a primeira secção é dedicada aos primórdios do automóvel e a segunda a um punhado de exemplares excecionais, a terceira fala da popularização do automóvel. Poderíamos começar pela Voiture Minimum, um projeto do arquiteto suíço Le Corbusier, de 1936, que pensou muito a relação do carro com a cidade e colaborou profusamente com o construtor de automóveis Gabriel Voisin.

«O carro tinha-se tornado não apenas um objeto de design, de fantasia e tecnologia, tinha-se tornado um campo de experimentação relativamente ao que era mesmo necessário, ao que era crítico nas cidades e nas nossas vidas», explica Cirauqui. «Le Corbusier abordou isto com grande clareza: qual será o mínimo para obter eficiência máxima, em termos energéticos, materiais e físicos? O que faz neste carro é retirar todas as componentes desnecessárias, e deixa o que é mais importante. O mais importante para as pessoas é o espaço».

Outro caso abordado por esta secção é o do Carocha e de Josef Ganz, o engenheiro judeu que o criou. «Ganz teve a ideia e, quando a tentou vender, não apenas não lha compraram como foi roubada por Hitler, para fazer o Volkswagen, o carro do povo. Quem depois concretizou o design foi Ferdinand Porsche», revela Cirauqui.

Se as estrelas aqui são claramente os automóveis – que na sua variedade e multiplicidade nos trazem à memória os desenhos infantis do ilustrador Richard Scarry – nas paredes há também muito para ver, como uma magnífica pintura de David Hockney, não tanto relacionada com o automóvel, mas com «a reconfiguração da paisagem em função do transporte de massas», A estrada que atravessa os Woulds, de 1997.

A possibilidade do desastre

Segue-se o núcleo Desportivos, dedicado às corridas. «Estes carros podem ser produzidos em grande escala, mas são carros de luxo, na maior parte», nota o curador. Falamos do Mercedes 300SL, ‘asas de gaivota’, do Aston Martin de James Bond, de um Ferrari 250GTO, de 1962, outro daqueles exemplares raríssimos (em 2018 um semelhante atingiu em leilão o valor-recorde de 41 milhões de euros). «São também luxuosos no potencial: podem atingir altas velocidades, que nem sequer são legais – mas isso pouco importa», ironiza Cirauqui. «É um elemento da fantasia».

Por isso também o perigo e a possibilidade do desastre não foram deixados de fora. Algo que foi de certo modo evocado pelo norte-americano John Chamberlain (representado na secção Americana) nas suas esculturas de chapa retorcida. Mas até um acidente de automóvel pode ser um acontecimento fecundo. Pelo menos para Filippo Tomaso Marinetti, o arauto do movimento futurista, que fez a apologia da guerra e da velocidade.

Segundo ele, «um carro de corridas, com a sua traseira adornada com grandes tubos, quais serpentes de hálito explosivo, um carro rugidor que parece funcionar com metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia». Em outubro de 1908, Marinetti vira-se envolvido num capotamento. «Quando saí de debaixo do carro, feito um trapo fétido e ensanguentado, senti que o ferro brilhante da alegria me rachava – deliciosamente – o coração!», descreveu.

Chad McQueen filho do ator Steve McQueen (que chegou a participar nas 24 horas de Le Mans) também não lamentava as consequências de um acidente brutal que o deixara com sequelas na coluna e no pescoço. No documentário de 2015 Steve McQueen: o Homem e a Velocidade, o herdeiro do lendário ator confessava: «Parti tudo o que havia no meu corpo. Mudaria alguma coisa? Não. Não há nada melhor. Os desportos de velocidade são a droga mais poderosa do mundo».

Cápsula do tempo

Talvez por motivos de conveniência ou aproveitamento do espaço das galerias, o Fórmula 1 Mercedes-EQ surge na galeria dos Visionários. Para Cirauqui, trata-se de uma espécie de «grau zero» do design, uma vez que tudo no seu formato é determinado pela velocidade.

«Se recuarmos mais de 2 000 anos até à Roma antiga, os circuitos fechados dos circos, com suas arquibancadas escalonadas para o espetáculo de corridas, têm uma notável semelhança com as corridas de cavalos contemporâneas e as competições da Fórmula 1», escreve Norman Foster no catálogo. «Por exemplo, no Circo Máximo, construído em Roma no século 6 a.C., realizavam-se corridas de sete voltas, ou seja, uma distância de 3,6 quilómetros. As carruagens puxadas por cavalos, com as suas equipas e pilotos, têm muito em comum com a história do Grande Prémio: tanto uns como outros eram perigosamente rápidos e tinham elevadas taxas de mortalidade».

Na mesma galeria, sobressai o Dymaxion #4 de Buckminster Fuller, um teórico e visionário do design, criador da cúpula geodésica. «Fuller era muito amigo de Henry Ford e arranjava qualquer peça da Ford com um desconto de 33%», recordou Foster na conferência de imprensa. «O Dymaxion pode ser comparado com o Ford Sedan, porque tem a mesma transmissão, o mesmo motor. Mas graças à sua forma aerodinâmica, andava mais depressa, com menos combustível e levava mais pessoas. Tive o privilégio de trabalhar com o ‘Bucky’ nos últimos 12 anos de vida dele, portanto é uma espécie de homenagem a um mentor, um mestre». O exemplar em exposição é uma das poucas réplicas existentes, e foi reconstruído pelo próprio Norman Foster.

Naquela época, «as pessoas queriam que o carro fosse também um veículo para o futuro, queriam chegar mais depressa ao futuro», nota Manuel Cirauqui. «Os anos 50 e 60 foram uma época em que se se perguntasse às pessoas o que ia ser futuro provavelmente falariam em viagens supersónicas, teletransporte… Hoje, quando perguntamos aos estudantes como vai ser o futuro, eles não falam do espaço, não falam de viagens supersónicas, só pensam em sustentabilidade. Por isso esta galeria é uma espécie de cápsula do tempo, da época em que as pessoas alimentavam ideias extremas relacionadas com a velocidade e a forma». 

Além da carrinha Dymaxion, alguns dos melhores exemplos disso são o Alfa Romeo Bat Car 7, de 1954 – «para mim, um dos mais belos da exposição», confessa o curador – e os protótipos Firebird desenvolvidos pela General Motors na década de 1950, veículos futuristas cujas formas bicudas não andam muito longe das de um Concorde.

«O que acabamos de ouvir é um projeto de som desenvolvido com Nick Mason, o baterista histórico dos Pink Floyd, ele próprio colecionador e aficionado de automóveis», explica Cirauqui quando a sala fica totalmente submergida pelo ruído estrepitoso de um Fórmula 1. O som é uma das componentes importantes de um automóvel, «queríamos que este elemento de som imersivo fosse parte da exposição», prossegue.

Quase a terminar, entramos na sala Americana, onde pontifica um enorme Cadillac. O curador chama a atenção para uma escultura de John Chamberlain. «Ele pega nas carroçarias, torce-as e daí resultam estas formas coloridas, completamente abstratas. É um dos precursores da escultura minimalista». Na outra ponta da galeria vemos uma peça de Donald Judd, composta por um conjunto de dez ‘prateleiras’ de aço inoxidável e plexiglas sobrepostas. «Podemos pensar no minimalismo não apenas como o desenvolvimento radical destas formas na escultura: é também uma espécie de despedida da indústria americana e da sua hegemonia que durou três quartos do século XX».

Motion. Autos, Art, Architecture termina com 15 visões do futuro apresentadas por algumas das mais prestigiadas universidades e escolas de design de todas as geografias. De caráter mais ou menos utópico, as propostas repensam não apenas os meios de transporte, mas todo o ecossistema da cidade. O foco já não é a velocidade, mas a equação entre o urbanismo, a mobilidade, os consumos de energia e a sustentabilidade. Uma delas, do MIT, imagina uma cidade parada. «As coisas vêm ter connosco», nota Cirauqui. Infelizmente, parece tratar-se de mais do que um cenário de ficção científica ou de uma hipótese remota.