Ruy de Carvalho. “Enquanto cá estiver, vou sempre a tempo!”

Estava sentado no fundo da sala de vidro do restaurante do Hotel Lawrence, em Sintra, quase como se olhássemos para uma fotografia daquelas que congelam um momento único. Recebeu-nos com um sorriso. Ruy de Carvalho tem 95 anos, trabalha há 80. Considera-se um amador profissional e, sobretudo, um servidor. Com os olhos repletos de histórias,…

80 anos de carreira e continua a dar entrevistas…

A partir de certa altura, não acabaram… Devo ter feito dois milhões de entrevistas [risos] Estou a exagerar, claro. 

Aos 95 anos, o que é que ainda o ‘alimenta’?

O meu trabalho. Sem sombra de dúvidas! É aquilo que eu mais gosto. Já viu a sorte de se fazer uma coisa que se gosta durante tanto tempo? Gosto de dizer que sou um amador profissional. Esse é o meu ideal. E gosto sempre de ser um cidadão normalíssimo. Não tenho mais direitos do que os outros por ser um cidadão com algumas qualidades numa especialidade. Tenho muito respeito pelo cidadão Ruy de Carvalho, que, na verdade, se chama Ruy Alberto Rebelo Pires de Carvalho. 

Já disse em algumas entrevistas que o que envelhece é o exterior, porque dentro de nós nos sentimos sempre jovens. Isso quer dizer que dentro de si continua a existir aquele menino aventureiro que viajava com o pai?

Sim! Exatamente! Tem 18 anos esse menino. Não o deixo sair de dentro de mim. Mantenho-o bem vivo. E porquê? Porque, realmente, com 18 anos posso entrar em toda a parte. Comecei a ser adulto e, nessa altura maravilhosa, um adulto era, ao mesmo tempo, um menino de 18 anos [risos].

Adaptava-se bem às mudanças? Quando regressou de África, o que é que sentiu?

Quando cheguei era muito pequenino, mas fiquei com uma paixão muito grande por África. Fiz dois anos em Luanda, em 1929. Depois voltei lá muitas vezes. Como ator, como turista… Fica sempre um grande desejo de regressar. Gosto muito de África! Gosto muito dos seus naturais. Não tenho nada dentro de mim que seja racista. Gosto de homens bons e tento modificar os que são mãos. É aquilo que eu tenho feito em toda a minha vida. Portanto, sinto-me um homem feliz. 

Foi na Covilhã que se começou a ver envolvido no teatro. Como é que se deu esse contacto? Foi um amor imediato?

Os meus irmãos eram atores. A minha mãe era pianista e gostava muito de teatro… Quando acompanhávamos o meu pai, que era oficial do exército, levava o piano atrás. Era por isso uma família de artistas. Era uma grande pianista a minha mãe! E eu gosto muito de música. Continuo a gostar muito e foi ela que plantou este amor pela arte. Aliás, casei-me com uma bailarina, formada em História e Filosofia… Acho que qualquer homem deve procurar na cultura o seu alimento espiritual. A cultura alimenta-nos espiritualmente e é quase tudo aquilo que nos rodeia. Até quem fez estes sofás onde nós estamos sentados, praticou cultura! Pensou na comodidade das pessoas, para estarem sentadas a repousar. Tudo foi pensado para bem do espírito, portanto. E, às vezes, o espírito é pouco usado pelas pessoas. A parte material da vida é muito boa, é saudável, mas o espírito…

Quando pisou o palco, aos 7 anos, para fazer o papel de mosquito ‘Na História da Carochinha’, o que é que sentiu? Essa criança já sentia o peso da responsabilidade que é pisar as tábuas de madeira?

Eu senti-me homenageado pela pessoa que me escolheu, até porque a minha mãe estava a colaborar nesse espetáculo. Estava a ensinar a parte musical e quiseram que eu fizesse de mosquito. Tenho uma história engraçada: a senhora que fazia de vigia, como estava com medo que eu estivesse nervoso, deu-me uma medalha de Nossa Senhora da Conceição para eu ter na minha mão. Enquanto estive com ela, mordi-a. E quando entrei em cena, dei-lha. 60 anos depois a medalha veio-me parar novamente às mãos. Deram-ma quando regressei à Covilhã e fui à atual Casa do Menino de Deus. Agora tenho-a comigo, em minha casa. Isso é muito bonito. 

Porque é que essas coisas são tão importantes? Fazem-no viajar?

Marcam a nossa vida, minha filha. Aliás, a Covilhã está no meu coração. O meu país todo, na verdade. Tenho uma paixão muito grande pelas pessoas. 

E do que é que sente mais saudades dos anos em que estudou no Conservatório Nacional? O que é que esta escola lhe deu?

Acho que me deu a parte material da minha vida. O jeitinho já eu tinha. O conservatório ajudou-me tecnicamente e teoricamente. Estudar arranja-nos, compõe a nossa vida, não é? A nossa qualidade… Tal como ela é fotógrafa, tu jornalista… Tenho uma filha jornalista e um filho ator, estão na área da comunicação, têm amor à arte e à cultura. Eu digo, normalmente, que a grande riqueza de um povo é a sua arca da cultura. É lá que lá estão as coisas todas. Tudo vai melhorando, tudo se vai modificando com o andar da vida. Desde que se melhore, que se esteja a construir. Serve-se o país em que se vive. 

E aos 15 anos quando se estreou numa verdadeira sala de espetáculos dirigido pelo mestre Ribeirinho, já tinha consciência disso? Foi nessa altura que se começou a construir o ator?

Sim! E foi precisamente nessa altura que se começou a construir o ator! Sobretudo com um profissional como era o Ribeirinho. Era uma pessoa extremamente competente, um grande encenador e um grande diretor de atores. 

Mas ficou chateado consigo durante muito tempo…

[risos] Sim. Trabalhei com ele durante muito tempo. Ele era duro! Era um belíssimo camarada na vida, mas no trabalho era de uma dureza enorme. Às vezes até era ofensivo. Mas tive uma grande recompensa no final de tudo. Pouco tempo antes de morrer pediu-me desculpa e perguntou-me se tudo tinha valido a pena. 

A passagem pelo Teatro do Povo foi crucial?

Foi sim! Era trabalhar em público…Trabalhei para milhares de pessoas do país todo. Era um teatro desmontável. Estávamos cerca de dois dias em cada terra e tínhamos esse contacto com as pessoas, com a terra. Montávamos e desmontávamos o palco. Era muito engraçado, foi um trabalho muito bonito. Fico triste por ter acabado. Agora deviam existir teatros do povo. Há muitas coisas para fazer teatro na rua, para levar ao país todo! Aliás, dava trabalho aos artistas! 

Depois disso, o ano 61, levou-o a viver aquele que diz ser «um dos mais belos sonhos da sua vida»: O Teatro Moderno de Lisboa. Porque é que era um sonho?

Porque havia censura, minha filha! E nós lutámos contra ela. De tal maneira que até acabámos. A censura teve mais força do que nós. 

Como é que se geria isso nessa altura? Como é que se fazia a escolha do reportório?

Geria-se muito mal. Tínhamos de fazer um ensaio para a censura. Depois ou cortavam a peça toda ou cortavam bocados. Mutilavam uma obra de arte, a obra de um escritor. E, claro, o trabalho que cada um de nós tinha feito… Para cada um a sua verdade, há várias interpretações do Shakespeare. São liberdades literárias. Um escritor, quando escreve, sabe que vai ter quem goste e quem não goste da sua escrita. Tirar-nos essa liberdade? Foi muito difícil, minha filha. 

Lembra-se de algum momento mais marcante relacionado com esse período?

O que mais me vem à memória são as censuras pedidas pela público. Isso amargurou-nos muito. Eu estava a fazer uma peça com a Laura Alves, chamada ‘A Margarida da Rua’, e havia alguém que telefonava à censura a dizer que a viam a lavar-se no bidé. Era mentira, nem havia bidé em cena. E era assim… Tínhamos depois de fazer o tal ensaio… Há muita gente que gosta de censura… Ainda hoje há. Hoje assistimos a muitas. Há censuras partidárias, que são autênticas polícias. Não devia existir nada disso. 

Porque na arte não pode realmente haver censura?!

Não! Não há cor política. A arte é arte. O que é bom na arte é sempre bom na arte, venha de onde vier. 

E que magia é que existe no Teatro? Porque é que esta arte é tão importante?

Eu tenho-a. Tenho essa magia. Gostava que toda a gente a tivesse. Essa necessidade tão grande, quase dever, de estar presente, ser espectador. O espectador faz parte do espectáculo. O que vê televisão, o que vê teatro. Mas claro que o que vê teatro sente mais calor humano, há uma proximidade muito grande. Aquilo que um estádio de futebol faz num dia, serve para fazer teatro num ano, ou mais. As 60 mil pessoas que um estádio leva, podem ser divididas por muitos teatros. As pessoas deviam ir ao teatro, deviam pensar nisso. Ajudarem-nos.

Porque o teatro tem um poder?

Claro! Tanto poder que até a censura o cortava. O teatro ajuda-nos, obriga-nos a ‘trabalhar’ dentro de nós. Torna-nos mais críticos, a ter a nossa própria opinião… Isso é um símbolo de liberdade.  

Isso significa que existe uma missão intrínseca à profissão de ator?

Claro! Claro que tem. E isso não quer dizer que sejamos professores! Mas somos exemplos de muita coisa. De maldade, de egoísmo, de bondade, generosidade, mudança de temperamento. Há pessoas bipolares, um ator é quase um bipolar. Vai mudando de personalidade. É isso. 

Como é que o Ruy se ‘desdobrou’ em tantas personagens ao longo de todos estes anos?

Não quer dizer que me desdobre sempre, que consiga sempre fazer isso. Muitas vezes pensam em mim para fazer uma coisa. Mas acho que essa é precisamente a maior riqueza do trabalho de um ator. Essa capacidade. Há coisas que não nos acontecem enquanto estamos a representar. Não espirramos, por exemplo. Se adormecermos não estamos a representar. Temos de estar sempre acordados a fazer de conta que estou a tremer, doente, cheio de saúde. Os soluços, por exemplo [imita soluços], temos de fazer de conta que temos soluços quando não os temos. Eu só tenho soluços quando bebo cerveja! [risos]  

Sente que tem alguma técnica específica para se aproximar de cada personagem? Ou são sempre processos diferentes?

É um processo de busca. Há grupos de pessoas: grupos de avarentos, de pessoas cínicas… Tento aproximar-me delas, percebê-las. 

E já sentiu alguma dificuldade em depois de cada trabalho, se afastar das personagens?

Assim que acaba o espetáculo ou o projeto, volto logo a ser o Ruy de Carvalho cidadão, minha filha. Não é preciso nada. Às vezes a única coisa que tenho de fazer é limpar a maquilhagem! [risos] Vou saindo do personagem à medida que a tinta desaparece. Agora na peça A Ratoeira, tenho o bigode pintado de cinzento, por exemplo. 

Fez parte do aparecimento do teatro em televisão com o Monólogo do Vaqueiro, de Gil Vicente. Como é que a sociedade portuguesa assistiu ao aparecimento do teleteatro? E quais as grandes diferenças para o teatro em palco?

As pessoas gostaram muito. Depois fiz muitos anos de teatro na televisão, que infelizmente acabou. Mas representar é sempre igual. Tem é técnicas diferentes. Na televisão, um grito que é dado não é para ser ouvido na geral. É para ser ouvido ‘aqui’. No teatro temos de tentar parecer também que é ‘aqui’. O grito é igual, só a ‘aparelhagem’ que está a captar o som é que tem de ter cuidado (grita: «Pare, Deus!»). Nós gritamos com a qualidade sonora. No teatro é preciso ter voz, ter preparação física, é preciso saber andar no palco. Já entraste num palco? Não ficas nervosa? Eu já não fico nervoso, mas tenho sempre muito respeito. Quando estou a entrar num palco, estou a tentar cumprir o meu dever de servidor. Acredito que é isso que sou. Eu sou um servidor e acho que tenho servido bem!  

E tendo feito tantas coisas diferentes em televisão: o teatro, telenovelas, séries. Como tem assistido à sua evolução? Pode falar-me um bocadinho da sua opinião sobre a formação dos atores?

A televisão tem ajudado muito no aparecimento de caras novas. Muitos deles gostam muito de fazer teatro e há muita gente com muito talento. A formação, quando a fazem, melhor! Os atores podem ser atores sem serem alunos do Conservatório, mas se fizeram o curso, só lhes faz bem. É bom ter uma preparação teórica de uma profissão. Saber mover-se em cena, estar em cena. 

Isto porque às vezes parece que não damos espaço aos que realmente estudaram…

As pessoas que estudaram e querem ser atores de bengala, como eu sou, não querem só mostrar a cara e ter o nome no jornal. Eu sou amador profissional. Gosto daquilo que faço! Agora, isto só para ter fama, não vale a pena. Para servir e criar no público o amor por nós e pelo nosso trabalho, não pode ser assim. É o que me acontece a mim e sou um homem muito feliz nesse aspecto. Tenho a retribuição do público e em vida tenho tido algumas compensações. Algumas bastantes! Tanto do meu profissionalismo, como da minha forma de estar na vida. 

Do que é que as pessoas se esquecem quando não valorizam a cultura? Tem tido oportunidade de viver e trabalhar no meio. O que é que tem acontecido de ano para ano?

Meu amor… É simples. Quantas horas tens de futebol na televisão? Quantas horas tens de cultura? A cultura física também existe, claro. E quando é praticada também pelo espírito, melhor é. Quando se joga à bola, por gostar de se jogar, como o Ronaldo joga, está a construir-se uma vida. Ele tem hotéis, faz bem a muita gente, ajuda crianças. Tem sido um contribuinte enorme, tanto para o país como para aqueles que necessitam. Esse cumpre o seu dever. É um grande desportista, trabalha com o espírito e com o corpo. É esse exemplo que eu gostava de dar. Agora, quanto é que dá o orçamento de Estado aos atores e à cultura portuguesa? A ajuda não é muita. Aliás, a ajuda de Estado devia ser fomentar que o público fosse ao teatro. Os povos do Leste iam ao teatro e gostam muito de ballet e música. Até o público onde vive o Putin. O povo russo é muito culto. Era obrigado a ir ao teatro. 

E porque é que as pessoas não vão mais ao teatro? Esquecem-se?

Dizem que é caro… O futebol é que é caro! Agora no teatro, não. Pedir 20 euros por um bilhete de primeira ou segunda fila? Não é caro, minha filha. Pagar 50 para ir ver futebol, isso sim. Os ingleses vão ao teatro e vão ao futebol e ao andebol e ao basquetebol. Eu gosto disso tudo, gosto de montar a cavalo, fui cavaleiro… Tem de existir um equilíbrio.

Em 91 dizia que o ator tinha de provar sempre qualquer coisa, que tinha de provar ser um homem igual aos outros. Continua a ter essa opinião? 

Gostam de saber da nossa vida privada. Tanto que há revistas que só contam histórias da nossa vida. Se algum der um passo menos correto, vem logo uma revista. Um dia disse que fui casado com muitas colegas e colocaram no jornal que eu atraiçoava a minha mulher. Era mentira, só para vender. Isso é feio! Fizeram-me essa partida. Contar a minha vida erradamente. 

Acha que a sociedade ainda olha com algum preconceito para os artistas?

Um jornalista honesto não faz isso. E há muitos que são honestos. A minha filha é uma grande jornalista, muito honesta. E deixou de ser jornalista precisamente por causa disso. Da falta de qualidade de trabalho de algumas pessoas com quem trabalhava. O público adora saber da nossa vida. Tanto que há revistas só para isso. 

E como é que se lida com isso?

Mal! Ficamos muito tristes que isso aconteça. Não deviam fazer isso aos artistas. Quebrar-lhes a vida é sempre mau. Mostrem o que é bom! O que fazem, os que fazem por serviço. Não é por montra! Os que chegam para serem atores durante toda a sua vida profissional. Eu, neste momento, sou o ator mais antigo de Portugal. Tenho muitos anos de profissão. É possível que haja algum mais velho que eu, mas no ativo não. 

Sente que a sociedade portuguesa se tem esquecido das suas raízes? Do Teatro Português? O Gil Vicente era um grande escritor. Começou a escrever em espanhol porque queria apaixonar os portugueses, que não lhe ligavam nenhuma. Hoje é igual. Havia uma escritora portuguesa que, durante muitos anos, escreveu com o nome Mary Love. Vendia os livros todos. Assim que disse o nome dela, nunca mais compraram os seus livros. Enquanto escreveu com o nome estrangeiro, vendeu. Quando deixou de o fazer, desapareceu. Os portugueses gostam pouco de si próprios. Deviam gostar mais. Somos muito bons, construímos os países dos outros, fazemos grandes obras lá fora…  Somos um país que emigra e que constrói o país aos outros. A peça que estou a fazer agora é da Agatha Christie, mas ela é internacional. Escreveu para o mundo. Há escritores que escrevem só para eles, outros que escrevem para o mundo. O Shakespeare, o Gil Vicente… Se os lermos encontramos muitas coisas, muitas críticas à sociedade, tanto boa como má. Encontramos coisas extraordinárias. Há, por exemplo, um monólogo no Hamlet, que é o do coveiro, que te explica o que é a morte. O teatro é também uma escola de comparação. Quando o público está sentado, vê coisas que já lhe aconteceram, coisas que já pensou… O êxito da peça que estou a fazer é precisamente esse. Acontecem casos da vida real. 

Agora, com 95 anos, como é que se descreve enquanto ator?

O que é que tu estás a fazer, minha filha? A descrever a minha carreira, o meu trabalho, não é? É disso que se faz. É da forma como tu me vais descrever nesta entrevista. Cada pessoa há de me ver de uma forma diferente, consoante aquilo que sinta relativamente ao meu trabalho. 

Isso significa que o ator que é se descreve a partir do olhar dos outros?

O Álvares da Cunha, que também foi meu mestre, dizia uma coisa muito interessante: ‘Olha meu filho, quando tu estudares inteligentemente o personagem, o que é preciso é convicção, estupidez natural e não deixar cair os sinais. Convicção na maneira de dizer o texto, estupidez natural, não emendar o texto. Quando a gente se engana, não mostrar ao público que se enganou. Não deixar cair os sinais, para as pessoas perceberem tudo aquilo que a gente diz! Antigamente até havia quem dissesse da plateia: «Fala mais alto!». 

De que forma se relaciona com os trabalhos que fez durante toda a carreira? São como filhos para si? Coloca-os em gavetas, para conseguir arrumá-los?

Não… A gaveta está aqui! [aponta para a cabeça] A nossa cabeça é que tem a gaveta. Fiz a peça que estou a fazer hoje, há 60 anos. Era o galã, agora faço um velho com 80 anos. Na altura, fazia um jovem com 29 ou 30. Aliás, tinha um elenco ótimo. Já morreu tudo. Já morreu o Rogério Paulo, o Paulo Renato, o Amando Cortez, a Maria Dulce, eram todos meus colegas. 

Como é que se lida com tantas perdas?

Com muita saudade. Ainda está viva a Lili Neves, que está na Casa do Artista. 

Vivem dentro de si?

Vivem. Lembro-me da cara deles perfeitamente. É engraçado… Às vezes passo em revista por todos eles. Quando estou deitado e o meu corpo está repousado, relembro os meus colegas, a minha família. Tenho na memória tudo aquilo que vivi. 

É por isso que o amor é tão importante para si?

Exatamente. Amor e afetos. E o sorriso! O sorriso é extremamente importante. É o traço de união entre a boa disposição e a má disposição. Se fores recebida com um sorriso, ficas bem disposta, se fores recebida por uma cara feia, ficas triste. 

E o tempo?

O tempo? Enquanto cá estiver, vou sempre a tempo. Eu estou vivo, como vês não estou morto. A morte é um segundo, meu amor. 

E não lhe mete medo?

Medo, minha filha? A morte é certa. Medo de quê? Nós não sabemos é quando! É por isso que temos de viver. “Ai que eu estou muito mal!”, “Ai que me dói aqui”, “Ai que ninguém me liga!”. Não vale a pena! A gente tem é de viver…

Há alguma coisa que lhe tire o sono nesta altura?

Uma cama não ser fofinha! [risos] Se a cama é fofinha, durmo bem. Estou a brincar! Claro que com a idade tenho algumas coisas para gerir, não posso fumar, não posso comer muito… Mas não há nada que me perturbe.

Nem ver envelhecer o corpo, que é o instrumento de trabalho dos atores?

Para os que estão conscientes e ainda pensam, mas fisicamente já não podem, é muito doloroso. Os que estão com alzheimer ou outro tipo de doença, é doloroso, principalmente para aqueles que tomam conta. Há pessoas que têm um mau envelhecer, modificam a sua maneira de estar, de olhar para a vida, ou pensam que estão a morrer antes de morrer… Não vale a pena. 

E esse envelhecimento traz solidão? 

Solidão há várias. Há umas que queremos ter e outras que nos fazem ter. Solidão ou é agradável ou não. Há quem goste de estar só e há os outros que são postos em solidão. Não me sinto sozinho. Gosto pouco de me gabar, mas sou um sortudo! Não tenho já sítio para colocar as coisas em casa… Todas as homenagens que me têm feito. Tenho muita coisa que me honra muito e me faz ter cada vez mais respeito pela minha profissão. Tenho também amado cada vez mais os animais, tão grandes amigos que nós não devemos desprezar de maneira nenhuma. Animais irracionais que não são nada irracionais. Há pouco tempo soube que, afinal, os cães vêm com as mesmas cores do que nós… Pensei que só viam a preto e branco, mas não! Isso deixa-me tão feliz, minha filha! Fico muito satisfeito de também verem assim a beleza do mundo.