O Amor em Tempos de Perestroika: I Parte

O amor entre Amir e Masha não resiste à Perestroika. Ela é arménia e cristã, ele é azeri e islâmico. No Azerbeijão, os arménios começam a ser massacrados.

por João Cerqueira

 

Baku 1991

Oiço as pancadas na porta e sei que estamos perdidas. Abraço a minha mãe e aninhamo-nos num canto da cozinha. Não nos tentamos esconder ou fechar à chave num quarto porque não vale a pena. Eles devem ter trazido marretas pois parece que estão a deitar a casa abaixo. Os pratos e os copos abanam, a lâmpada do tecto tremeluz. Subitamente, ouço o estrondo da porta a cair no chão. A minha mãe agarra o seu crucifixo como se assim os pudesse afastar, mas estes vampiros só temem os tanques russos. Eles avançam soltando urros e partindo tudo o que podem. De repente, chegam à cozinha. O cheiro a suor é intenso. Levanto a cabeça e vejo cinco homens armados. Reconheço um deles, o mais velho: era instrutor dos Pioneiros. Ele aponta para mim e dá a ordem.

– Levem-na para um quarto.

Mas eis que ouço passos, alguém a correr pelo corredor e, de súbito, o Amir entra cozinha.

Baku 1979

Hoje, no liceu, a professora de Geografia mostrou-nos imagens das quinze repúblicas socialistas que compõem a União Soviética e disse-nos que o nosso país é duas vezes e meia maior do que os Estados Unidos e que representa um sexto da superfície da terra. A professora ensinou-nos ainda que na União Soviética vivem mais de cem grupos étnicos em harmonia, ao contrário dos Estados Unidos onde os negros e os índios continuam a ser discriminados; esta é uma das muitas provas da superioridade do Socialismo sobre o Capitalismo. A minha prima Nádia recordou o assassinato de Martin Luther King como exemplo desse ódio racial e foi elogiada pela professora. 

Quando chego a casa vou ter com a minha mãe à cozinha. Este é o nosso cantinho: temos um fogão, uma mesinha, um armário e um frigorífico. De madrugada ela tinha estado várias horas na fila para conseguir vegetais frescos e peixe seco e está a preparar um prato especial. Os seus olhos estão semicerrados e as suas pernas estão inchadas, mas ela nunca se queixa. Dou-lhe um beijo e começo a ajudá-la. Dali a uma hora, o meu pai chega do trabalho e queremos agradar-lhe. Ela mete lenha no fogão e verifica as panelas; eu descasco beterrabas. 

– Tem cuidado Masha, não cortes os dedos. 

O meu pai trabalha como engenheiro numa fábrica de armamento e costuma chegar atrasado por causa da guerra do Afeganistão. Ele nasceu na Rússia, estudou em Moscovo e, quando terminou o curso, foi enviado para o Azerbaijão. Foi aqui que conheceu a minha mãe que viera da Arménia com os pais quando tinha dez anos. A minha professora diz que eu sou uma verdadeira soviética, filha de pais de etnias diferentes que vivem numa república onde não nasceram. Na escola, embora haja azeris, arménios, lezguianos e talysh, todos pertencemos a um único país.  

A minha mãe acordou-me às cinco horas da manhã porque tenho de estar na Sede do Movimento dos Pioneiros dentro de uma hora. Os Pioneiros englobam toda a juventude da União Soviética desde os dez aos quinze anos e são a nossa segunda família – os instrutores dizem até que são mais importantes do que os nossos pais. Fazemos acampamentos nas montanhas, praticamos desporto, entramos em competições e, acima de tudo, aprendemos a servir a nossa pátria.

Hoje, os Pioneiros vão levar ao campo um grupo com idades entre os catorze e os quinze anos para vermos como funcionam as cooperativas agrícolas e para ajudarmos os agricultores. Sinto-me contente por contribuir para o desenvolvimento da União Soviética e, sobretudo, porque vou estar o dia todo ao lado do Amir. A Nádia é a única pessoa a quem contei que gosto dele.

Visto a saia azul, a camisa branca e ponho ao lenço vermelho a pescoço. O Amir diz que é às raparigas loiras de olhos azuis como eu que o uniforme fica melhor. Ao sair de casa, descubro o céu alaranjado e os primeiros raios de luz a atravessar uma nuvem. 

Quando chego à Sede vejo-o e o meu coração desata a bater. Os instrutores fazem-nos alinhar, contam-nos e só então entramos nas três camionetas. Tenho de me sentar ao lado da Nádia porque as raparigas são separadas dos rapazes, mas o Amir consegue arranjar um lugar paralelo ao meu na outra fila de bancos. Os assentos estão rotos e têm molas soltas, o motor ronca, as bagageiras tremem.

De repente, o autocarro arranca e todos batemos palmas. A viagem dura três horas e, durante esse tempo, os instrutores vão explicando como o nosso país está a construir um mundo melhor enquanto os Estados Unidos desejam a guerra nuclear; felizmente, temos mísseis e satélites mais avançados que nos protegem e o Capitalismo está prestes a acabar. Depois saudamos o nosso líder, o camarada Brejnev, prometemos dedicar a nossa vida à construção do Socialismo e denunciar os inimigos do povo e, por fim, cantamos canções patrióticas. 

Enquanto cantamos, eu e o Amir vamos trocando olhares e, por vezes, ele atreve-se a pegar-me na mão. A Nádia faz de conta que não vê, os outros Pioneiros estão-se a divertir, os instrutores bebem vodca e, por isso, ninguém repara. Exceto o Micha, que está sempre a olhar para trás porque tem ciúmes. Há já algum tempo que ele anda atrás de mim. O Micha julga que por o seu pai pertencer ao Comité Central consegue conquistar todas as raparigas, mas eu não quero nada com ele. 

Já se vê a quinta. Há três casas pintadas de branco com telhado de colmo, um celeiro de madeira e, mais afastadas, duas construções em tijolo onde nos dizem que estão os porcos e as vacas. Do lado esquerdo há campos de trigo e do lado direito há plantações de vegetais. Sente-se um cheiro a estrume desagradável. Os autocarros atravessam o portão da quinta e estacionam perto da casa principal. Há cerca de trinta homens e mulheres à nossa espera. Os nossos instrutores são os primeiros a sair e um homem de barbas vem ter com eles e abraça-os.

Depois leva-os até junto dos camponeses e parecem inspecionar alguns deles: apalpam-lhes os braços e mandam-nos abrir as bocas. Só então nos deixam sair do autocarro e fazem-nos alinhar de novo. Esperava que as pessoas do campo fossem jovens e fortes, mas estes camponeses parecem-me velhos e cansados. As mulheres têm lenços na cabeça e os homens usam uns bonés como os do meu avô. Nunca tinha visto pessoas com um rosto tão triste. Será que alguns deles são inimigos do povo e estão aqui para serem reeducados?

O homem de barbas volta-se para nós, cerra o punho, faz-nos um discurso sobre a honra de colaborarmos na construção do Socialismo e, no fim, diz-nos que vamos apanhar tomates. O sol começa a queimar-nos a cabeça, a luz cega-nos, temos sede, mas um pioneiro nunca se queixa. Depois, entregam-nos cestos e mandam-nos seguir um grupo de camponesas. Os nossos instrutores e o homem de barbas dirigem-se para a casa grande dando gargalhadas. 

O Amir aproveita para se pôr ao meu lado enquanto caminhamos para os campos de tomate e voltamos a dar as mãos. Ele tem quinze anos e é um ano mais velho do que eu, mas temos quase a mesma altura; contudo, como é moreno e tem o cabelo encaracolado e os olhos negros, não podia ser mais diferente de mim. 

Agora reparo que as camponesas não são tão velhas quanto pareciam, apesar da pele enrugada e dos ombros caídos. A Nádia, com a sua postura atlética, pele brilhante e olhos verdes, fá-las parecer servas diante de uma princesa. Talvez por pena, tenta falar-lhes, mas ninguém lhe responde.

A quinta parece não ter fim e a terra começa a entrar-nos nos sapatos. Estou toda suada e ainda não comecei a trabalhar. 

O tomatal ocupa uma área maior do que um campo de futebol. As folhas verdes e os frutos vermelhos fazem um contraste muito bonito. O aroma é parecido com o da relva. Há pássaros negros a sobrevoar-nos e insetos brilhantes a rastejar. Ouvem-se grilos e cigarras. Então, uma das mulheres bate duas palmas – as suas mãos parecem as patas de um animal – e começa a dar-nos instruções.

– Atenção, em primeiro lugar estais proibidos de comer um só tomate que seja. O vosso trabalho é encher o cesto e ir descarregá-lo ali – e aponta para um grupo de carroças – mas tende cuidado para não os esmagar. Formais uma linha recta e avançais todos ao mesmo tempo. Estai atentos às cobras e aos lacraus porque aqui não há nenhuma enfermaria. Quem tiver sede, venha falar comigo. Toca a trabalhar.

Os Pioneiros espalham-se e o tomatal é agora uma mancha verde com pontos brancos e vermelhos. O arrancar dos frutos e o abanar das ramagens geram um farfalhar que abafa o canto dos insetos e o piar das aves. Todos se empenham no trabalho para serem louvados pela sua produtividade. A Nádia foi picada por uma vespa, mas, como tenta ser a melhor em tudo o que faz, aguenta a dor e já descarregou um cesto. 

Ao fim de uma hora doem-me as costas e tenho bolhas nas mãos, mas não quero mostrar fraqueza ao Amir. Quando estamos agachados ele encosta-se a mim e o suor dos nossos corpos mistura-se. Num desses momentos, apesar do calor, sinto arrepios nas costas, perco a força nos braços e deixo cair os tomates ao chão. Para compensar a minha falta de produtividade, ele enche também o meu cesto, acompanha-me até à carroça e ajuda-me a descarregá-lo. Duas das camponesas devem ter percebido que gostamos um do outro pois murmuram algo à nossa passagem. Quando as fitamos, baixam os olhos como se nos tivessem medo. 

Estou a sentir vontade de urinar e dirijo-me para uma zona com arbustos onde as raparigas vão. Faço as minhas necessidades sem ninguém notar, mas, no regresso, aparece-me o Micha. Tirou a camisa e está em tronco nu. Reparo que já tem alguns pelos no peito. Ele põe-se diante de mim, levanta os braços e contrai os bíceps.

– Apalpa os meus músculos.

– Não quero, deixa-me.

– Porquê? Achas-te melhor do que as outras?

– Não sejas estúpido. – E volto-lhe as costas.

Ele agarra-me pelo pescoço e começa a beijar-me à força. Tento soltar-me, mas ele é mais forte. Grito. O Amir vem a correr e dá-lhe um soco que o faz tombar. 

Ficamos os dois a olhar um para o outro, o Amir ofegante e eu a tremer, sem conseguirmos dizer uma palavra. 

O Micha foge. 

Então, avançamos um para o outro e abraçamo-nos. 

Dois dias depois, eu e o Amir somos chamados ao gabinete do diretor dos Pioneiros, o camarada Volkov. Ele é um herói da segunda guerra mundial que aos dezasseis anos se destacara na luta contra os nazis. Tinha perdido um pé e ficara com parte da cara queimada, o que infundia ainda mais respeito pela sua pessoa. Apesar de ele conhecer o meu pai, eu, tal como todos, morria de medo de um dia ter de entrar no seu gabinete. O motivo da chamada era geralmente uma denúncia contra nós, o que significava ser expulso dos Pioneiros. Alguém, então, nos havia denunciado e eu percebi logo que só poderia ter sido o Micha para se vingar.  

Uma funcionária leva-nos até ao gabinete, bate à porta e, assim que lhe é dada autorização, faz-nos entrar. Há um retrato de Lenine na parede e uma secretária onde o diretor está sentado a ler uns papéis – uma madeixa de cabelo esconde-lhe as cicatrizes da cara. Sem olhar para nós, começa a interrogar-nos.

– Foram acusados de fazer propaganda capitalista e denegrir a vossa pátria. Confessam?

Ele espera uma confissão imediata, sem explicações nem desculpas, e eu estou prestes a fazê-la pois não tenho alternativa, quando o Amir dá um passo adiante. 

– Confesso, fui eu que denegri a pátria, mas ela está inocente. Não a castigue.

O diretor levanta a cabeça, a madeixa de cabelo desliza como uma cortina e as cicatrizes ficam à vista – a ausência da sobrancelha direita é o que mais me horroriza. Com aquele rosto terrível, começa a observar-me, da cabeça aos pés, e eu baixo os olhos – neste momento sou capaz de confessar ser uma espia americana. Depois levanta-se, coxeia até nós e dá um bofetão no Amir que o atira contra a parede. 

O Amir é expulso dos Pioneiros e eu sou suspensa durante uma semana. 

– Nunca deixarei que te façam mal – diz-me.

Baku 1986

Quando a última aula do curso de Matemática termina, vou de bicicleta até à cantina da faculdade de Economia para almoçar com o Amir. Eu estou no segundo ano, ele está no terceiro e, mal comecemos a trabalhar, vamos casar-nos. No nosso país, como o Estado garante educação, emprego, habitação e saúde a todos, é fácil os jovens constituírem família. 

Ao aproximar-me da cantina começo a ouvir uma inesperada algazarra, perto da entrada sinto o ar abafado e, então, descubro o espaço cheio de gente. As pessoas quase se empurram para tentar ver algo que ainda não percebi o que é.

Questiono uma rapariga e fico a saber o motivo de tanta curiosidade: é uma equipa de voleibol de Cuba. Vieram fazer uma digressão pela União Soviética e, antes do jogo de logo à noite, estão a mostrar-lhes a universidade. Quando consigo atravessar a muralha humana, usando o corpo como uma enguia, vejo doze negros altíssimos e um branco que deve ser o treinador. Usam fatos de treino vermelhos com o nome do país em letras azuis, falam uma língua cantarolada e estão muito animados. Nunca tinha visto gente tão estranha. 

Entretanto a comitiva começa a ir-se embora, a multidão persegue-os como se fossem criaturas exóticas e, por fim, descubro o Amir. Ele vem ter comigo a sorrir e dá-me um beijo na face – ele já me confessara que não consegue expressar afeto em público, apesar do orgulho que sente quando o vou ver à sua faculdade. Depois vamos buscar a comida – enquanto estamos na fila encosto-me ao seu corpo e vou-lhe acariciando os caracóis do cabelo. Quando nos dirigimos para as mesas, vejo a Nádia sentada com um rapaz – um novo namorado? Ela faz-me um sinal e vamos ter com eles.

O rapaz chama-se Ruslan e estuda História. Começamos a falar sobre os cubanos, recordando a derrota dos americanos na Baía dos Porcos e a coragem de Fidel Castro, mas, de repente, o Ruslan muda de assunto e conta-nos algo que vira nas notícias da noite anterior. 

– Parece que houve um acidente na Ucrânia, numa central nuclear chamada Chernobyl. 

– É grave? – pergunto.

– Não, nada de importante. É apenas um problema técnico qualquer que já está a ser resolvido pelos cientistas. O governo garantiu ter tudo sob controlo e não haver qualquer risco para as pessoas.

– Sim, nós estamos seguros. Esses desastres só acontecem nos Estados Unidos – diz o Amir.

– Three Mile qualquer coisa… – diz a Nádia.

– Island – completa o Ruslan. Houve uma fuga radioactiva e o governo americano tentou impedir que a população soubesse o que acontecera.

– Tenho pena do povo americano – diz o Amir.

– Nunca tenhas pena dos teus inimigos – diz o Ruslan, com o dedo levantado.

E, como a Ucrânia ficava tão longe, depressa esquecemos o assunto – o Amir já tem a mão na minha perna e o meu coração entra em fusão nuclear.