Excesso de falta de animação

“O sossego, a calma e a cascata temos nós o ano inteiro. Até chateia”.

por Paulo Romão
Designer

Caldas de S. Paulo. Próximo de Oliveira do Hospital. Não sei como estará agora este local que tenho saudades de revisitar. Nos anos 80 era um bocadinho de Portugal perfeito. A aldeia era pequena, com poucas casas e uma venda onde nos podíamos abastecer de “quase tudo”, desde que em pequenas quantidades, porque as gentes não eram muitas.

Podíamos descer por um caminho de terra batida até às margens do Alva. Um local onde o rio
descansava num pequeno açude, continuando calmo mesmo depois de passar por uma
refrescante cascata. Era ela que, em uníssono com o canto dos pássaros e o marulhar das folhas das árvores, compunha uma banda sonora tranquilizadora. Na sua margem podíamos desfrutar de um pequeno prado verde salpicado de bétulas que nos confortavam com a frescura da sua sombra.

Fui ali parar quando procurava um local para realizar um campo de férias para jovens. Um campo do “Mocamfe” (Movimento de Campos de Férias “Tempo livre”). Assim se chama o movimento que ainda hoje existe e continua a organizar acampamentos, noutras paragens, noutros locais.

O local era perfeito. Sombra e relva para montar as tendas. Rio seguro para tomar banho. Água corrente e um alpendre coberto, para montar a cozinha e nos acolher em dias de chuva. E, coisa rara hoje em dia, autorização da comissão de festas da aldeia, responsável e zeladora deste local.

Foi tudo negociado com o Sr. Carlos, responsável maior da comissão de festas. Muito simpático e acolhedor, cheio de dinamismo e energia, apesar da sua deficiência motora que o obrigava a
deslocar-se numa cadeira de rodas. Ainda hoje recordo com admiração a sua capacidade física para se deslocar naquele terreno íngreme e irregular, difícil até para nós, jovens e saudáveis. Nunca lhe ouvi um lamento. Estava sempre presente para nos ajudar e apoiar, ou para jogar uma partida de dominó na venda da aldeia, quando se conjugavam os nossos tempos livres.

Eram memoráveis essas sessões de dominó, acompanhadas com amendoins e com um refrigerante que só conheci naquele local. Chamava-se “Sorve”.  Disponível com sabor a laranja ou ananás, em garrafa e
sabor em tudo idênticos ao “Sumol”. As cascas dos amendoins tinham que obrigatoriamente ser atiradas para o chão, para serem varridas ao final do dia. Cascas em cima da mesa eram ofensa grave para o dono da venda.

O Sr. Carlos colocou-nos apenas duas condições para a cedência do local. Mante-lo sempre limpo e coexistirmos por um dia com a festa da aldeia, que se realizaria mesmo a meio do
acampamento. Quanto à limpeza não havia lugar a discussão, porque o Mocamfe sempre
respeitou muito os locais que o acolhem. A questão da festa era mais complicada. Iria alterar a dinâmica do acampamento, distrair os participantes e colocar alguns problemas de segurança pela presença de pessoas estranhas.

Concordamos que no dia da festa faríamos uma caminhada, retirando os miúdos do
acampamento e deixando o recinto livre para os seus convivas habituais. Tudo certo. Tudo
combinado. E assim se passaram os primeiros dias naquele paraíso. Apenas com o silêncio da cascata e dos pássaros, com o riso de alegria da miudagem e os acordes do nosso cancioneiro.

Até que um dia acordamos com um estridente 1, 2, 3, experiência, som… som!

Nunca nos ocorreu que os preparativos para a festa começariam dois dias antes, com a
montagem da aparelhagem sonora, iluminação, fornecimento de “minis”, etc., etc. Obviamente tivemos que nos adaptar. Eramos nós os intrusos. Foi doloroso perdermos o silêncio da cascata.
A Tonicha e o José Cid, entre outros, sobrepunham-se às tímidas guitarras do nosso cancioneiro. O Sr. Carlos desculpava-se, simpático. E genuinamente preocupado com o nosso bem-estar.

Foi numa dessas conversas com ele que surgiu o meu desabafo, origem desta história.

– Diga-me lá Sr. Carlos. Como é possível estragar esta paz e este sossego com tamanha barulheira? Com esta música tão alta e tão estridente que não nos deixa ouvir o rio? – perguntei eu, com alguma inocência e muita soberba citadina.

O Sr. Carlos olha para mim, impassível, apesar de ter matéria de sobra para se sentir ofendido com o meu comentário. Responde com a sua habitual calma e amabilidade.

– O sossego, a calma e a cascata temos nós o ano inteiro. Até chateia. Nesta altura o que
queremos é animação e música… e barulho. Para ver se conseguimos aguentar outro ano de calma.
Nós por aqui sofremos muito de excesso de falta de animação.

Só aí tomei consciência da minha falta de sensibilidade e de respeito por aquele senhor, por aquele local e pelas suas gentes. O Sr. Carlos tinha toda a razão. E no ano seguinte voltamos. Para outro acampamento. Com mais jovens. Mais guitarras. Para interromper, o mais possível, a calma daquele lugar.