União Europeia dividida sobre a Palestina

João Gomes Cravinho, ministro dos Negócios Estrangeiros, é um dos 15 signatários de uma carta que insta Olivér Várhelyi, o comissário para a Vizinhança e o Alargamento, a avançar com o pagamento do apoio financeiro europeu à Autoridade Palestiniana.

A Autoridade Palestiniana ainda não recebeu o pagamento da mais recente tranche de apoio financeiro garantido pela União Europeia (cerca de 200 milhões de euros), que desde o ano 2000 já entregou ao território mais de 827 milhões de euros em ajuda humanitária.

Por trás dos atrasos está uma condição que alguns membros querem ver incluída no plano: uma redução do valor financiado caso não se comprove a alteração de determinados conteúdos ‘antissemitas’ alegadamente difundidos em alguns manuais escolares da Palestina.

Numa carta enviada a Ursula Von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, a que o i teve acesso, 32 eurodeputados fizeram o pedido de “incluir a possibilidade de redução de financiamento caso a Autoridade Palestiniana continue a recusar-se a fazer as alterações necessárias nos livros didáticos”.

Em contrapartida, 15 ministros dos Negócios Estrangeiros europeus, liderados pelo irlandês Simon Coveny – e entre os quais se conta o homólogo português, João Gomes Cravinho – enviaram uma carta a Olivér Várhelyi, o Comissário Europeu para a Vizinhança e o Alargamento (e promotor da cláusula de redução do financiamento caso não haja prova de remoção dos conteúdos antissemitas), a pedir que o dinheiro seja enviado de uma vez por todas para a Autoridade Palestiniana.

“Desejamos reiterar a nossa preocupação com o atraso contínuo no desembolso da assistência da UE à Palestina para 2021 devido às propostas da Comissão para condicionar o financiamento à reforma do setor da educação”, pode-se ler no início da carta, assinada também pelos ministros dos Negócios Estrangeiros da Bélgica, Chipre, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Polónia, Espanha e Suécia.

“Como sabem, a Autoridade Palestiniana encontra-se numa situação difícil e está a passar por uma grave crise fiscal, agravada ainda mais pela inflação dos preços do petróleo e do trigo causada pela guerra na Ucrânia. O objetivo da UE e o objetivo da comunidade internacional devem ser fortalecer a Autoridade Palestiniana. O atraso contínuo na entrega da assistência da UE arrisca ter o efeito oposto. É essencial que libertemos o financiamento o mais rápido possível”, pedem os ministros, acusando “a introdução da condição numa altura em que a Autoridade Palestiniana já está empenhada num programa ambicioso de reforma educacional” de correr o risco de “minar, ou mesmo reverter, progressos alcançados até à data”, bem como “prejudicar o diálogo em curso com os palestinianos sobre esta e outras questões”.

“Além disso, é imperativo que façamos todos os possíveis para capacitar vozes moderadas vis-à-vis atores mais radicais”, concluem os 15 ministros europeus.

A carta enviada a Olivér Várhelyi ecoou nos diferentes cantos de uma Europa que neste momento se encontra a ferro e fogo. Ana Santos Pinto, professora universitária e especialista em Relações Internacionais, nota que o conflito na Ucrânia não deve fazer esquecer o que se passa no resto do mundo.

“Apesar das atenções dos media e das opiniões públicas europeias estarem centradas na guerra na Ucrânia, a política internacional continua a ser composta por muitos outros temas, noutras áreas regionais, que exigem medidas políticas. Outras questões de política e segurança internacional não desapareceram com a guerra na Ucrânia”, defende, apontando o dedo ao atraso na transferência de financiamento da UE à Autoridade Palestiniana, “que faz parte da política externa da União há várias décadas e inclui, por exemplo, apoio ao pagamento de salários”, há cerca de dois anos.

“Este apoio é condicionado ao cumprimento de uma série de critérios, em múltiplas áreas, sendo um dos mais importantes a promoção da paz e conciliação entre os dois povos (israelitas e palestinianos). É este o centro da discórdia entre vários elementos do sistema político da UE (Parlamento Europeu, Estados-membros e Comissão Europeia), uma vez que, apesar do compromisso da Autoridade Palestiniana para reforma dos conteúdos pedagógicos dos manuais escolares, estes mantêm textos e imagens que alguns consideram incitar à violência”, continua.

E deixa um alerta: “A prolongar-se o atraso na transferência do apoio financeiro da UE à Autoridade Palestiniana, existe o risco de funcionários ficarem sem salário – e, portanto, sem recursos para garantir a sua subsistência e das suas famílias – o que, à semelhança do que aconteceu noutras ocasiões, tem o potencial de gerar tensões internas e escalada do conflito. É por isso surgem pressões para solucionar a questão, que se torna mais grave com o aumento generalizado dos preços dos produtos básicos, como, por exemplo, cereais e combustíveis, sentido em todo o mundo e, também, nos territórios palestinianos.”

Sobre a verdadeira ‘importância’ da condição imposta pela União Europeia, a professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa acredita que “a forma como a História e a realidade social é transmitida às crianças e jovens é central para a sua perceção do mundo e da realidade que os rodeia e, portanto, para a forma como se comportarão no futuro”. Daí que “o conteúdo dos manuais escolares é considerado tão relevante”. “No caso do conflito israelo-palestiniano, são décadas de construção de memórias de confrontação e rivalidade entre os dois povos”, nota.

Portugal vive, atualmente, um período de especial tensão relativamente a Israel, muito graças à polémica em torno da Lei da Nacionalidade. Agora, urgindo a União Europeia a completar o pagamento do apoio financeiro à Palestina, sem necessariamente cumprir a condicionante da reforma educacional, teme-se um agravamento das relações entre os dois países.

Mas Ana Santos Pinto recorda que “a subscrição desta carta segue a posição que tem sido assumida por Portugal e que não se deve confundir com a concessão da nacionalidade aos descendentes de judeus sefarditas de origem portuguesa”.

“Portugal tem seguido uma linha de continuidade, na sua política externa, em relação ao conflito israelo-palestiniano, designadamente no reconhecimento da importância da UE enquanto financiador do desenvolvimento institucional da Autoridade Palestiniana”, conclui.