Putin ainda não tem o que celebrar no Dia da Vitória

O Kremlin teve ganhos territoriais, mas paga caro cada palmo de terra. A batalha do Donbass será decidida em Kramatorsk, ponto essencial de abastecimento, enquanto Azovstal resiste.  

As forças do Kremlin ganham terreno no Donbass, pouco a pouco. Vão chegando à linha da frente soldados desgastados, ainda marcados pela perda de tantos camaradas na batalha por Kiev, marchando às ordens de Vladimir Putin, que sonha com uma vitória a celebrar no Dia da Vitória, 9 de maior, avaliam serviços secretos ocidentais. É um dos mais importantes feriados russos, marcando a vitória sobre os nazis na II Guerra Mundial, coincidindo às mil maravilhas com o discurso do Kremlin, que descreve a sua invasão como uma ‘operação especial’ para ‘desnazificar’ a Ucrânia.

Por agora, após dois meses de guerra, Putin não conseguiu muito que celebrar. Nesta última semana, as suas forças lá obrigaram tropas ucranianas a recuar, debaixo de pesados bombardeamentos aéreos, barragens de artilharia e mísseis. Mas têm pagado caro por cada palmo de terra conquistado (ver infografia). Kreminna foi tomada, rumo à retaguarda da linha da frente ucraniana em Lugansk. Tropas russas foram filmados a patrulhar o centro da cidade vizinha de Rubizhne e tomaram posições nos subúrbios Severodonetsk, que tinha uns cem mil habitantes. Enquanto isso, os russos avançam em força de norte para sul contra Slovyansk, nos arredores de Kramatorsk, para cercar as unidades ucranianas no Donbass, tentando tornar a região numa espécie de gigantesca Mariupol.

Kramatorsk já fizera manchetes pelo mundo fora quando a sua apinhada estação de comboios, foi atingida com mísseis, há duas semanas, num massacre onde se registaram mais de cinquenta mortos, incluindo duas crianças, e quase uma centena de feridos. «Pelo nossos filhos», lia-se num dos mísseis, segundo a agência France Press, um slogan recorrente dos separatistas russos. Fora escrito num Tochka-U, carregado com as infames ‘bombas de fragmentação’. Ou seja, um míssil que lança outros explosivos mais pequenos, algo utilizado de forma devastadora contra civis.

No entanto, Kramatorsk não era só um dos principais pontos de passagem para refugiados em fuga do leste. Também é um dos pontos de abastecimento mais essenciais para as unidades ucranianas que defendem a linha da frente contra os separatistas russos desde a guerra civil. As tropas aqui estacionadas, com um efetivo estimado entre os 40 e os 60 mil, formam o grosso das forças profissionais ucranianas, os combatentes mais bem treinados e equipados – a corajosa defesa de cidades como Kiev, Kharkiv, Cherniiv ou Mykolaiv acabou por ser levada a cabo sobretudo por batalhões de voluntários recém-alistados.

As forças em Donbass têm conseguindo ir mantendo a rede de fortificações, bunkers e trincheiras que construíram desde 2014, apesar de serem constantemente bombardeados desde o início da invasão russa. Analistas apontam que o Kremlin, bem consciente que uma assalto frontal com forças mecanizadas e infantaria contra estas posições teria um custo elevado, vai desgastando as forças ucranianas em Donbass a partir do ar, enquanto tenta cortar os seus abastecimentos.

Apesar dos avanços que foram conseguindo nas últimas semanas, lançando ataques ao longo de toda a linha da frente, as forças do Kremlin «ainda não criaram as condições para uma operação ofensiva a larga escala», lia-se num relatório recente do Instituto para o Estudo da Guerra, um think tank sediado nos EUA. Notando a ânsia de Putin em conseguir uma vitória significativa até 9 de maio, e que «a pressa e preparação parcial do ataque russo provavelmente vai minar a sua eficácia e pode comprometer o seu sucesso».

Na prática, «os russos não tiveram tempo suficiente para reconstituir as forças retiradas da batalha por Kiev e prepará-las adequadamente para uma nova ofensiva no leste», continuava o relatório. Esse desespero tem obrigado o Moscovo a ir buscar tropas onde quer que as consiga recrutar. Seja entre os quase 135 mil jovens russos chamados esta primavera para cumprir o seu serviço militar obrigatório – o próprio ministro da Defesa, Sergei Shoigu, deu a sua palavra que não seriam «enviados para nenhum hotspot», ainda que jovens recrutados pelos separatistas tenham acabado por ser lançados na linha da frente em Donbass, quase sem receber treino e armados com espigardas Mosin-Nagant, do séc. XIX, avançou a Reuters – ou além fronteiras.

Aliás, na última semana foram avistados pela primeira vez as tropas que a Rússia tem andado a recrutar na Síria, com apoio do seu aliado Bashar Al-Assad, cujo regime sobreviveu à guerra civil graças a uma intervenção militar russa. Sírios combateram em Popasna, uma cidade cercada, que costumava ter cerca de 20 mil habitantes, parecendo estar integrados nas unidades da Wagner, uma empresa de mercenários famosa por fazer o trabalho sujo do Kremlin, registou o Instituto para o Estudo da Guerra.

Até na Etiópia se têm feito filas de gente desejosa de combater na Ucrânia, no seguimento de rumores que a Rússia pagava dois mil dólares por mês. «Viver na Etiópia está difícil», explicou à Reuters um vendedor de rua, um dos muitos etíopes à porta da embaixada russa em Addis Ababa, levando consigo comprovativo do seu serviço militar, num país que está no meio de uma brutal guerra civil, onde as tropas federais são acusadas de limpeza étnica e de usar a violação como arma.

 

Mariupol resiste, por agora

Na ótica de Putin, apresentar a tomada de Mariupol como vitória a 9 de maio seria ótimo. Não só se trata de uma cidade estratégica, a chave para controlar o mar de Azov e criar um corredor terrestre entre o Donbass e a Crimeia, como era o quartel-general do batalhão Azov, um grupo nacionalista ucraniano acusado de atrocidades contra russófonos, de inspiração neonazi, coincidindo bem com o tema do feriado. No entanto, os defensores de Mariupol, entrincheirados no seu último reduto, Azovstal, insistem em estragar os planos de Moscovo.

Essa dor de cabeça não impediu o Kremlin de celebrar ter tomado controlo a cidade, ao mesmo tempo que Putin, numa reunião do seu conselho de segurança, cancelava o ataque que prometera em Azovstal, ordenando que fosse imposto um bloqueio, de maneira a que «nem uma mosca» consiga cruzar as linhas russas.

Afinal, falamos da maior metalurgia da Europa, um enorme labirinto de túneis, caves e fornos, onde não falta sítio para as forças ucranianas se esconderem. O Kremlin – que se gabou da rendição de mais de mil fuzileiros ucranianos em Azovstal nas últimas semanas – tem perfeita noção que, após mais de 40 dias cercados, o grande inimigo dos defensores é a sede, fome e falta de munições. E está consciente que as tropas russas que tivessem a tarefa ingrata de tomar de assalto a metalurgia sofreriam perdas pesadas.

Apesar de não haver qualquer esperança de vitória para as forças ucranianas em Mariupol, a sua resistência não tem sido em vão. Os 12 Grupos Táticos de Batalhão empregues pelos russos na batalha de Mariupol – a unidade operacional do exército grupo, contando com artilharia, defesas anti-aéreas e forças mecanizadas próprias, de maneira a ser flexível e independente, contando com entre 800 a 900 efetivos – sofreram perdas pesadas, avaliou o Penágono. Abdicando do prometido assalto a Azovstal, Putin liberta parte das suas forças para as lançar na ofensiva em Donbass, mas parte destes 12 Grupos Táticos de Batalhão terão de ficar para trás, de maneira a manter o bloqueio.