‘Toda a esfera da estética é um único continente encantado’

Considerado um dos maiores pianistas do século XX, Alfred Brendel passou pela capital, onde recebeu o grau de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Lisboa. Em entrevista, recorda os anos da II Guerra Mundial e explica como o piano se tornou ‘um amigo de confiança’ e um ‘parceiro muito querido’.  

Com 91 anos completados em janeiro, há mais de uma década que Alfred Brendel abandonou as salas de espetáculos, das quais se despediu num concerto memorável com a Filarmónica de Viena, em 2008. Mas a sua atividade intelectual nunca parou: continuou a dar palestras, a escrever ensaios, a participar em happenings que juntam a música e a poesia.

Grande intérprete de Haydn, Mozart, Beethoven e, em especial, de Schubert, Brendel soube acomodar e incorporar na sua arte a sensibilidade moderna, por exemplo através dos seus poemas, que diz surgirem naquele estado intermédio entre o sono e a vigília.

O sentido de humor (que considera uma defesa contra o absurdo do mundo) é outro dos traços marcantes do seu carácter – dedicou-lhe inclusive o ensaio ‘Must Classical Music Be Entirely Serious?’ (‘Terá a Música Clássica de Ser Completamente Séria?’).

Alfred Brendel costuma recordar que nunca imaginou vir a ser um pianista de sucesso, mas o seu estatuto lendário é atestado pelo facto de a coleção ‘Great Pianists of the 20th Century’, que ele próprio tem em alta conta, lhe ter dedicado três dos cem álbuns duplos que a constituem. Como ele próprio admitiu no documentário Man and Mask, da BBC, teve um percurso atípico. «Não fui um menino-prodígio; tanto quanto sei não sou judeu; não nasci no Leste; os meus pais não eram músicos, não havia música em casa; tenho uma boa memória, mas não fora-de-série; não sou bom a ler pautas à primeira vista», confessou.

Nascido em Wizemberk, atual República Checa, a 5 de janeiro de 1931, a primeira experiência musical de que se recorda deu-se ainda na década de 1930. Na época, os pais estavam a gerir um hotel na ilha de Krk, no Adriático, e o pequeno Alfred punha discos numa grafonola para entreter os hóspedes.

Em seguida, como conta ainda no documentário da BBC, o pai tornou-se diretor de um cinema em Zagreb, e ele ia todos os fins de semana ver os filmes que lá passavam, alguns deles de propaganda nazi. Foi em Zagreb que começou a ter aulas de piano, aos seis anos, tendo mais tarde estudado no conservatório de Graz, cidade no Leste da Áustria onde a família se instalou depois da II Guerra Mundial.

Na juventude, ao mesmo tempo que estudava piano e composição, dedicava-se ao desenho e à pintura, e chegou a fazer uma pequena exposição. Mas quando decidiu que faria a sua carreira na música pediu a um amigo que lhe destruísse todos os trabalhos. Anos mais tarde Brendel foi surpreendido ao reencontrar em casa do amigo essas pinturas, que considerou «medonhas». O gosto pelas artes plásticas haveria porém de acompanhá-lo ao longo da vida e atualmente as paredes da sua casa de Hampstead, Londres, cidade onde reside desde 1971, estão repletas de pinturas, gravuras, máscaras primitivas, fotografias.

Estreou-se a 26 de abril de 1948, com um recital em Graz que incluía uma composição sua. No ano seguinte venceu o 4.º prémio da Competição Internacional Busoni em Bolzano, Itália.

Depois da guerra, Viena tornou-se uma cidade onde várias pequenas editoras discográficas norte-americanas viram uma oportunidade para fazer registos com músicos de qualidade dispostos a trabalhar por pouco dinheiro. Brendel – que, segundo o professor e pianista Leopold Marksteiner, «chegou a Viena como um extraterrestre musical» – fez assim as primeiras gravações, e a sua carreira internacional começou a arrancar aos poucos.

«Um dia estava a tocar um concerto de Beethoven em Londres, no Queen Elizabeth Hall», recordou em Man and Mask. «Era um programa muito impopular. Eu próprio não gostava muito do concerto. Mas no dia seguinte recebi propostas de três editoras discográficas importantes. Pareceu-me uma coisa grotesca». Comparou essa rápida ascensão à «água numa chaleira elétrica que ferve e de repente começa a borbulhar».

Hoje, passado cerca de meio século, já não é possível vê-lo atuar ao vivo, mas as inúmeras gravações disponíveis no YouTube e em DVD mostram-no a tocar sem pauta, de olhos quase sempre semi-cerrados, a testa franzida, o rosto assumindo diferentes expressões, do sorriso subtil da ironia à mais séria gravidade e ao júbilo. Os movimentos dos dedos envoltos em pensos são acompanhados por pequenos estremecimentos de prazer intelectual – e porventura também físico.

As suas interpretações já foram acusadas de ‘cerebrais’ por alguma crítica, mas Brendel gosta de monstros e de figuras mitológicas, e tem num fragmento de Novalis um dos seus aforismos favoritos: «Numa obra de arte, o caos deve tremeluzir através do véu da ordem».

Esta quarta-feira, dia 20 de abril, o pianista e pensador esteve na capital portuguesa para receber o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Lisboa. A propósito desta distinção, o Nascer do SOL teve a oportunidade de colocar-lhe um máximo de dez questões por escrito. Destas, Brendel só não quis responder a uma, acerca da sua relação com a música popular e o que acha de bandas como os Rolling Stones ou os Beatles.

A sua infância e juventude foram atravessadas pela II Guerra Mundial. Continuou a tocar piano nessa altura? A música ajudou-o a ultrapassar esses dias sombrios?

Tinha catorze anos quando a guerra terminou. Quando o exército russo invadiu a Estíria [estado austríaco que faz fronteira com a Hungria], mudei-me com a minha mãe para o oeste da Áustria e só regressei quando a Estíria se tornou parte da zona [sob administração] Britânica. Durante vários meses estive sem piano. Por pouco não tinha idade para ser chamado a servir no exército. Conto o facto de nunca ter tido de ser soldado como uma das grandes sortes da minha vida. Mesmo sem ter participado ativamente, a experiência da guerra fez de mim um pacifista.

Conta-se que o compositor Hector Berlioz, ao ouvir Liszt a tocar piano, terá exclamado: ‘É verdade que Deus existe – pelo menos para os pianistas’. Alguma vez encontrou Deus numa partitura, numa sala de concerto ou num teclado?
Não encontrei Deus, mas também nunca o procurei. Ser religioso, tanto quanto sei, não faz parte dos deveres de um bom cidadão. Mas posso dizer que me interesso pela experiência mística.

Tocar piano foi sempre para si um prazer? Vê-o apenas como um instrumento ou ao longo da sua vida tornou-se uma extensão do seu corpo, um confidente, um amigo?
O piano nunca foi uma cruz que eu tivesse de carregar. Foi, em certos momentos, um enigma à espera de ser resolvido. Um excelente instrumento, com uma voz constante, a ação não demasiado resistente, podia ser um amigo de confiança e, nos períodos de férias, um parceiro muito querido.

Um destes dias, enquanto conduzia de regresso a casa, ouvi no radio uma fantasia para violino de Marc Olivier Dupin a partir das áreas da Traviata, de Verdi, e de um momento para o outro o cansaço deu lugar a uma enorme leveza. Sempre me questionei como as melodias podem alterar o nosso estado de espírito. Penso que aquela frase de Woody Allen resume bem a questão: ‘Não posso ouvir muito Wagner… começo a ficar cheio de vontade de conquistar a Polónia’. Ao longo das décadas em que foi pianista, mas também como pensador, encontrou pistas que o ajudassem a compreender esta força espantosa da música?
Não, quando oiço o Tristão [e Isolda, ópera de Wagner] não fico com vontade de conquistar a Polónia. É, quanto a mim, um erro confundir o homem com o artista. São esferas que não encaixam uma na outra. Mesmo um grande artista será sempre, enquanto pessoa, limitado como os seus semelhantes, enquanto o alcance de um grande compositor parece virtualmente ilimitado. Mozart o criador transcendente das óperas Da Ponte [As Bodas de Fígaro, Don Giovanni e Così fan tutte, assim conhecidas porque as três têm libretos de Lorenzo da Ponte] tinha pouco que ver com Mozart o homem. E será que se iluminam mesmo um ao outro? A propósito, um dos meus filmes favoritos é Zelig, de Woody Allen.

O escritor Marcel Proust considerava que a poesia é ‘a celebração dos nossos minutos inspirados’. Esta ideia aplica-se à música? Acredita na inspiração ou acha que é apenas o resultado de muita disciplina e trabalho árduo?
Há de tudo: disciplina e trabalho árduo, inspiração, abandono, escrutínio crítico, ingenuidade, ironia, humor, controlo, bem como momentos felizes em que a música parece tocar sozinha.

Vivemos numa época de grande especialização, mas o senhor sempre praticou e cultivou diferentes ofícios. A música, a poesia, a pintura, o humor… vê-as como áreas distintas, separadas, ou como atividades que se contaminam e enriquecem mutuamente?
Nietzsche disse que a melhor razão para a humanidade e o mundo existirem é a estética. Para mim, desde muito novo que toda a esfera da estética é um único continente encantado.

Talvez por ser, além de músico, também um escritor e um pensador, houve críticos que consideraram algumas das suas interpretações como ‘intelectualizadas’. É difícil para um pianista equilibrar entre a técnica, a emoção e o instinto? Além do lado racional, ‘cerebral’, existe também um lado mais ‘anárquico’, Dada, nonsense e brincalhão na sua personalidade?
Se ser intelectual significa que o intelecto domina completamente a pessoa, então certamente eu não o sou. Contudo, o Dada e o nonsense, por muito encantadores que sejam, também não fazem parte da minha prática musical.

Ainda toca piano diariamente? Como é um dia normal na sua vida?
Devido a várias maleitas, deixei de tocar há vários anos. Deixei de dar concertos aos 77 anos e iniciei uma carreira absorvente de aconselhamento e preparação de quartetos de cordas. Claro que há muitas décadas que a escrita é uma componente importante da minha vida.

Sessenta anos depois da crise dos mísseis de Cuba, a ameaça nuclear voltou a pairar sobre o planeta. Que música seria uma banda sonora adequada para o fim do mundo? O Crepúsculo dos Deuses, de Wagner, o Quarteto Para o Fim dos Tempos, de Olivier Messiaen? Ou algo mais luminoso?
A Sagração da Primavera, de Stravinsky.