Os abusos na minha Faculdade

A maior instituição de Direito não pode ser incoerente em causa própria e não se pode eximir da elevada responsabilidade de ser um modelo na defesa dos direitos humanos

por Alexandre Faria
Escritor, advogado e presidente do Estoril Praia

 

Apesar de vivermos mais tempo em democracia do que em ditadura, depois de termos ultrapassado em anos de liberdade, recentemente, o período temporal autoritário que se prolongou até 25 de Abril de 1974, o decurso superior a 40 anos de corporativismo ainda se arrasta pelos nossos dias, deixando até hoje as suas marcas em certas mentalidades, profissões e em diversas instituições.

Mantemos uma tendência, talvez por esse motivo, para considerar vários organismos como nossos, imbuídos num sentimento impregnado de posse sem justificação plausível, ligando-os à identidade pessoal, cultural ou académica que nos distingue ao longo da vida.

Fundada em Junho de 1913, a caminhar para os seus 110 anos de vida, a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa é a minha faculdade. A instituição onde me licenciei, espaço académico de amizades imperdíveis, por quem concretizei projetos humanitários e culturais em países africanos de expressão portuguesa, tendo até dirigido o jornal universitário Lex Press e onde cresci para a profissão que exerço. É com essa legitimidade que repudio com a maior veemência os factos que têm surgido a público, não aceitando que a sua reputação centenária seja manchada por assistentes e professores que continuam a beneficiar de uma impunidade corporativa.

No meu tempo de estudante não sabíamos o que era assédio moral ou sexual, não era catalogado dessa forma e a sua proibição legal não estava consagrada da forma como, felizmente, agora sucede. Estávamos mais focados nas causas do momento, na luta contra o aumento das propinas ou na defesa da autodeterminação de Timor-Leste. Mas existiam abusos, evidentes para todos, dentro da velha máxima de só conhecermos alguém quando lhe é permitido poder, manifestado da pior forma pela prepotência, pelo sadismo e pela ridicularização em exames orais frente a quem parecia ser mais fraco. Pelo simples facto de ser africano ou brasileiro, por não ter um apelido sonante ligado ao Direito, por não ser fidalgo ou porque, pura e simplesmente, quem examinava detinha o temível poder da caneta, atribuindo notas consoante o estado de espírito do momento. Alguns examinadores chegaram a secretários de Estado ou a ministros neste país, o que também nos explica muito do que se tem passado nestes últimos anos.

Mas será sempre a minha faculdade, recordada com carinho pelos melhores momentos, razão pela qual me parece intolerável que a maior faculdade de direito portuguesa, responsável por ensinar aos seus milhares de alunos a defesa intransigente dos direitos, liberdades e garantias, uma instituição incontornável nos maiores momentos de afirmação da liberdade, não puna exemplarmente quem não se identifica com os princípios que tanto apregoa nas salas teóricas.

A maior instituição de Direito não pode ser incoerente em causa própria e não se pode eximir da elevada responsabilidade de ser um modelo na defesa dos direitos humanos. Como antigo aluno, espero com sinceridade que se investigue a fundo e, perante os casos provados, se faça justiça na principal casa onde é ensinada.