Um grande cemitério de nomes apagados

O romance de Proust era um cemitério onde várias figuras da sociedade parisiense ganhavam vida. Quanto a não se conseguir ler nos túmulos ‘os nomes apagados’, não seria bem assim…

N a primavera de 1922, ao fim de anos e anos a trabalhar no seu manuscrito de oito mil páginas, Marcel Proust chamou a sua governanta, Céleste Albaret, e mostrou-lhe o último caderno, aliviado: ‘Veja, Céleste, coloquei a palavra fim’.

Foi uma luta contra o tempo, uma batalha para terminar o seu livro antes de se despedir deste mundo. A máxima favorita de Proust, inspirada numa passagem do Evangelho de S. João, era «trabalha enquanto ainda há luz».

Consumido pela asma, sabia que lhe restavam poucos meses de vida. Os diagnósticos incoerentes, contraditórios, dos médicos tinham-no feito perder qualquer esperança na recuperação. Já quase não deixava a cama, e pedia à governanta para entregar dinheiro à vizinha para ela não fazer barulho. Muitas vezes recebia as visitas deitado, e de luvas nas mãos!

E numa das suas poucas saídas, na passagem de ano de 1921 para 22, Céleste ligou dez vezes para o conde de Beaumont de modo a certificar-se de que não havia correntes de ar e que o chá de ervas do seu patrão tinha sido devidamente preparado.

Jean-Yves Tadié aponta na sua monumental biografia que Proust hesitou muito antes de chegar ao título definitivo da sua obra-prima. Eis algumas das hipóteses que ponderou: As Estalactites do Passado, O Visitante do Passado, Os Reflexos do Tempo, Os Espelhos do Sonhos. Finalmente decidiu-se, como sabemos, por Em Busca do Tempo Perdido, que hoje nos parece quase inevitável.

Outro aspeto curioso é que o manuscrito do primeiro volume, No caminho de Swann, foi rejeitado várias vezes antes de Proust se dispor a pagar a Bernard Grasset pela publicação. As reações foram da perplexidade ao arrebatamento, e do elogio mais rasgado ao sarcasmo. «Ao fim de 712 páginas do manuscrito […] não se tem qualquer, mas qualquer noção do que se trata», escreveu Jacques Madeleine, editor da Calmette. A crítica do Mercure de France, que escrevia sob o pseudónimo de Rachilde, recusou ‘beber’ «este soporífero». E Humblot, diretor da editora Olledorff, comentou, apesar das altas recomendações de que o manuscrito vinha acompanhado: «Não posso compreender que um senhor possa empregar trinta páginas a descrever como se vira e se volta na cama antes de ficar com sono». O autor ficou indignado com tamanha falta de sensibilidade.

Um livro é um grande cemitério onde sobre a maior parte dos túmulos já não se consegue ler os nomes apagados», notou Proust. O seu era certamente um cemitério onde não apenas repousavam, mas ganhavam vida, várias figuras mundanas da sociedade parisiense já desaparecidas. Quanto a não se conseguir ler «os nomes apagados», não seria bem assim. Robert de Montesquiou, um dos modelos do perverso Barão de Charlus, ficou doente com a publicação dos três primeiros volumes. Laure Hayman, furiosa de se reconhecer em Odette, escreveu-lhe chamando-lhe «um monstro».

Ao contrário do que achavam os críticos como Humblot e Rachilde, Proust via na sua obra, não sem razão, um «concentrado» da experiência humana. Quanto ao livro de Tadié, nem sempre é propriamente entusiasmante – e os milhares de notas de rodapé não ajudam . «Se Proust não tivesse empregado todo este tempo a escrever, talvez tivesse levado uma vida mais interessante», justifica o autor logo nas páginas iniciais. É uma observação legítima. E, sejamos sinceros, uma péssima carta de apresentação.