Wim Mertens. “Queria criar uma rutura, só assim poderia começar do início e criar algo novo”

Em entrevista ao i, o compositor belga Wim Mertens fala sobre o seu novo disco, Heroides, e como foi um desafio refrescante.

Um dos nomes mais importantes da música clássica contemporânea, o compositor belga, Wim Mertens, de 68 anos, decidiu no seu sexagésimo sexto disco criar algo que nunca tinha feito antes.

Inspirado na obra do poeta romano, Ovídio, Heroides, o compositor criou um disco, com o mesmo nome, onde cada música é influenciada por cada carta que compõe a obra, onde, em cada uma destas passagens, o poeta veste a pele de heroínas da mitologia grega e da romana, que, de alguma forma foram maltratadas, negligenciadas ou abandonadas, e escrevem aos seus amantes

Contudo, o “twist” aplicado por Mertens é que neste álbum duplo as músicas surgem repetidas, mas com versões diferentes. Na primeira são interpretadas na integra pela sua voz e piano, enquanto na segunda surgem tocadas por uma banda com os mais diversos instrumentos. 

“Foi um exercício que me desafiei a fazer”, disse ao i o compositor, numa entrevista onde ainda aproveitou para explorar o início da sua carreira, como um disruptor da música clássica contemporânea, e para falar sobre as suas passagens por Portugal, onde explicou como um episódio em que provou ovos moles inspiraram a capa de um dos seus discos.

Quando é que decidiu criar este seu mais recente disco, Heroides?

É importante explicar que, com o passar dos anos, especialmente depois de trabalhar em diversas produções musicais que contenham muitos instrumentos diferentes, sinto que é importante, enquanto compositor, voltar a este formato de fazer música, neste caso, com uma forma não-instrumental de cantar e de tocar. Quis regressar a uma atmosfera mais íntima, que me permitiu fazer correções e voltar a uma certa atitude, especialmente na primeira parte do disco, composta pela fórmula de piano e voz.

Foi por essa razão que dividiu o disco em duas partes, uma em que as canções foram reproduzidas com voz e piano e outras com banda?

Sim. Esta foi a primeira vez que decidi apresentar o mesmo conjunto de canções com duas “visões” diferentes. Tomei esta decisão porque nas versões tocadas na primeira parte do disco a voz funcionava a solo, como o elemento que carregava toda a peça, e queria saber se, de certa forma, conseguiria compor um álbum instrumental onde conseguiria mudar as hierarquias instrumentais da música. Por exemplo, algumas das partes cantadas, no segundo disco são transferidas para uma harpa ou para o violoncelo. Foi importante quebrar a hierarquia tradicional e isso é que me motivou a criar este segundo disco. 

Daí ter decidido tocar as mesmas músicas duas vezes, em vez de criar composições novas no segundo disco?

Foi um exercício que me desafiei a fazer. Queria criar uma impressão completamente diferente quando a audiência ouvisse as músicas, mesmo não tendo alterado a estrutura das músicas em ambas as versões, que acabam por ser quase iguais. Algo que me traz muito prazer na música é investigar certos elementos, como a relação entre versões instrumentais e cantadas, por isso, o trabalho final trouxe-me muito prazer. E existe ainda a ligação ao trabalho que inspirou o disco, Heroides, uma coleção de quinze poemas pelo autor romano Ovídio, por isso, temos alguém que está a escrever estas letras para alguém que não existe. É por essa razão que existem estes dois elementos base que me permitiram apresentar o Heroides com estas duas faces.

O que é o levou a interessar-se tanto pelos poemas de Heroides?

Este disco nunca existiria sem este trabalho. Durante longos anos, estes textos foram interpretados de forma errado. Nestas quinze cartas, Ovídio está a colocar-se no papel das mulheres, por isso, existe uma ligação entre um homem latino e romano com as Heroides, as heroínas da mitologia grega e romana. Recentemente, começamos a tocar estas músicas ao vivo com as mais variadas formações, tentámos mudar e adicionar novos instrumentos. Isto é algo refrescante na cena musical porque os compositores tradicionais tendem a escolher uma formação específica e não a alteram, mas já há muito tempo que tinha esta obsessão de mostrar as mesmas composições, mas com uma organização diferente.

Estava a falar sobre os seus mais recentes concertos, acha que com o passar dos anos o interesse das pessoas para com a música clássica contemporânea tem se alterado?

Existem muitos tipos diferentes de música contemporânea, mas é importante perceber que mesmo trabalhando com instrumentos clássicos, devemos criar músicas que possam ser ouvidas atualmente, apesar de toda a bagagem musical, temos que estar atentos aos elementos que nos rodeiam e que influenciam a forma como nos comportamos. Estamos a viver um período em que, em termos de música clássica, existe muito mais música reproduzida do passado, como o período das eras clássicas, do que músicas escritas atualmente e que podem ser compreendidas pelas audiências mais jovens. 

Sente que as gerações mais jovens têm uma ligação forte com a sua música?

Tenho tido várias experiências, nomeadamente em Portugal, em que sinto um encorajamento por parte da audiência para continuar a trabalhar nas minhas composições e para me concentrar em novas produções ou concertos.

Costuma consumir música moderna, tanto para o seu lazer como para encontrar novas inspirações?

Sim e, no meu caso, em que já trabalho durante tantos anos, nada me garante que amanhã irei desenvolver um trabalho. Por isso, em qualquer ocasião de criação musical, até para os concertos, tenho que ser inspirado por algo único. Isto é algo particular deste formato, não é como uma pintura ou um livro depois de ser lido, que existe de uma forma estática, a música pode existir em vários formatos e ser interpretada de forma diferente ao vivo. É por isso que músicos são artistas que têm de se sentir excitados, desafiados e precisam de sentir desconforto. 

Existe algum artista novo que seja particularmente fã?

Não queria partilhar nenhum nome em particular, mas tento sempre ouvir música cantada em holandês ou de artistas belgas, apesar de não me fechar a artistas internacionais. Tenho observado que a cada três ou quatro anos surgem novas vozes que se vão destacando, isso quer dizer que a cada geração temos uma renovação de valores, mas também a flexibilidade e a necessidade urgente, muitas vezes através do canto, de expressar estes novos sentimentos através de música, seja pop, jazz, contemporânea ou eletrónica, e que nos ajudem a mover para a frente. 

É interessante pensar que, apesar de ser influenciado e de ter conhecido mestres como o John Cage ou o La Monte Young, continua a existir novas fontes para refrescar a sua música.

Mas ao mesmo tempo é também possível criticar o meu trabalho apontando para a forma como tem sido estático ao longo do tempo. Esta estética que não se tem alterado durante os meus lançamentos é tão importante como o efeito surpresa, uma vez que demonstra que estamos atentos ao nosso corpo e à nossa mente e sabemos reconhecer o que temos desenvolvido ao longo dos anos. Claro que também deve existir algo surpreendente em cada composição, tendo sempre introduzir elementos novos na minha música que mostrem que existe uma evolução, apesar deste ser um conceito um pouco exagerado pelas culturas ocidentais. 

O que é que considera que se manteve inalterado ao longo da sua discografia?

Podem ser elementos rítmicos ou melódicos que se vão mantendo em torno de uma área cinzenta. Esta foi a problemática do meu disco do ano passado The Gaze of the West (o olhar do ocidente), que falava sobre a forma como o Ocidente olha para o que está a acontecer no mundo, nomeadamente para a evolução e o desenvolvimento e as consequências que trazem aos elementos mais estáticos da realidade. 

É interessante estar a falar sobre como o seu trabalho tem sido estático, porque o seu primeiro disco, For Amusement Only – The Sound of Pinball Machines (1980), é altamente fora da caixa uma vez que foi criado inteiramente com o som de máquinas de Pinball, sente que agora está menos ousado?

É interessante dizer que é uma ideia fora da caixa, porque, olhando para trás, sinto que ainda não estava pronto para escrever em instrumentos clássicos e tradicionais, por isso, queria criar uma rutura e uma provocação ao criar composições apenas com sons eletrónicos dessas máquinas. Comecei a trabalhar nesse disco em 1979, enquanto, ao mesmo tempo, juntamente com músicos de jazz e de rock, que tocavam baixo e bateria, estava a criar o At Home – Not At Home (1982), e, depois de serem publicados, fiz logo o Vergessen (1982) e o Struggle for Pleasure (1983). Com estes trabalhos fui desenvolvendo a minha própria música, não o meu som, porque uma composição não pode ser manchada tem que estar ligada a um só som. 

Como é que passa do som das máquinas de pinball para o seu som de música contemporânea?

Posso confirmar que é verdade que queria criar uma rutura, só assim poderia começar do início e criar algo novo. A dominância, naquela altura, de música avant-garde e contemporânea, com artistas como Karlheinz Stockhausen, John Cage ou Pierre Boulez, era demasiado forte para a minha geração, por isso, senti que deviam existir outras formas de criar música através da voz ou de outros instrumentos rítmicos. Os músicos da minha idade tinham uma necessidade fundamental de criar uma mudança que acabou por chegar no final dos anos 1970, também a estilos como o pop, o rock, mas não tanto ao jazz.

Estava a falar sobre a necessidade de criar uma disrupção com o restante mundo da música, uma das coisas que acho mais interessante no seu trabalho é o facto de ter criado uma linguagem própria para as suas composições Isto foi uma forma de romper com a música tradicional e de poder elevar a sua própria forma de expressão?

No meu caso, o termo “linguagem própria” tem um significado duplo, por exemplo, no caso do Heroides, estou a cantar na minha “própria linguagem”, mas, quando apresento este trabalho a um público internacional consigo verificar que as pessoas conseguem compreender o que estou a cantar apesar de não ser uma linguagem convencional. As letras… ou melhor, as não-letras das músicas são muito próximas da pura musicalidade. Isto é interessante porque este disco são diálogos fantasiados, por isso, é adequado utilizar também uma linguagem fantasiada, assim como uma interpretação inteiramente feita com instrumentos musicais. 

O que é que acha que conquistou de diferente com esta abordagem?

Esta música, para mim, não é uma retórica, não é sobre a vitimização destas mulheres, queria conceder-lhes a sua própria autonomia e as suas próprias linhas melódicas. Não é sobre relações negativas, mas sim sobre arte verdadeira, música verdadeira, cantar de verdade, para poder assumir uma postura em que não são dominadas por homens. Este é um dos mais importantes tópicos de Heroides de Ovídio, sobre uma verdade muito intima, não através de fórmulas retóricas. Isto é possível observar também através da capa, uma mulher independente armada só com uma caneta.

Agora que estamos a chegar ao final desta entrevista, uma vez que tem uma história tão longa com as salas do nosso país, será que podia partilhar algumas das suas memórias favoritas que tem de Portugal?

A primeira vez que visitei Portugal foi no início dos anos 1990 e fiquei impressionado pela força do Atlântico, lembro-me muito bem de estar na praia de noite e de estar completamente admirado. Fui recebido em ambientes muito alternativos para realizar os meus concertos, como discotecas, e, em todas as ocasiões, foi como se todas as pessoas reconhecessem aquilo que estava a fazer e existia um feedback muito forte que, honestamente, acho que nunca desapareceu. Também tive muitas oportunidades de apresentar discos em Portugal, mas também para realizar concertos mais pequenos e intimistas, só com voz e piano. Já viajei muito por Portugal e dediquei o disco Receptacle (2007) ao vosso país, com a capa a ser inspirada por uma viagem onde comi ovos moles. Em breve regressarei a Portugal para poder apresentar algumas das músicas de Heroides.