Rembrandt. O mago está de visita a lisboa

Célebre em vida, venerado por Van Gogh, Rembrandt é considerado o mestre dos mestres, o príncipe dos pintores. Um dos seus 40 auto-retratos pode ser visto na Gulbenkian até setembro.

Rembrandt. O mago está de visita a lisboa

«Não há pintor que não se tome por um Rembrandt», terá dito um dia Pablo Picasso à sua companheira Françoise Gilot. De facto, o genial holandês tornou-se um arquétipo do artista – talentoso, intenso, irascível, um pouco excêntrico e, no final, profundamente infeliz.

É este convidado ilustre que o Museu Calouste Gulbenkian acolhe até 12 de setembro – nada mais, nada menos do que Rembrandt Harmenszoon van Rijn, aqui representado por Auto-retrato com Boina e Duas Correntes, de cerca de 1640, emprestado pelo Museu Thyssen-Bornemisza, de Madrid.

«Esta pintura passou por muitas peripécias», assinala Luísa Sampaio, comissária da mini-exposição que junta a esta obra visitante as duas pinturas atribuídas a Rembrandt da coleção Gulbenkian. «A mais antiga proveniência que conhecemos é do Eugène de Beauharnais, príncipe de Veneza, enteado de Napoleão, filho de Josefina, por volta de 1805. A pintura chega às mãos do Barão Thyssen em 1975, depois de sair da Rússia, passar pelo mercado holandês, inglês, etc.». No país dos czares, o quadro terá sido cortado para caber numa moldura nova. Não é caso único em Rembrandt – pensa-se que a Ronda da Noite passou pelo mesmo e que o artista terá serrado com as próprias mãos a maior das suas obras, A Conspiração de Claudius Civilis.

Vendo de perto o auto-retrato do Thyssen, poder-se-á notar, sobretudo na face direita, a ausência da técnica empastada característica do mestre holandês. A pele parece demasiado lisa e rosada, como se tivesse passado pelo filtro de um software de edição de imagem.

Essa particularidade deve-se muito provavelmente à circunstância de a pintura ter sido sujeita a repintes e procedimentos de limpeza demasiado diligentes, e levou a que a autoria fosse posta em causa. Porém, especialistas chegaram à conclusão de que este é um Rembrandt legítimo – e o facto é que esta pintura não apenas exibe a semelhança, como emana uma presença especial, típica do mestre holandês.

Rembrandt van Rijn (‘do Reno’, como explica Luísa Sampaio) nasceu em Leiden, Holanda, em 1606, o mais novo de pelo menos dez filhos. «O pai dele era moleiro, mas era um homem abastado. E a mãe era filha de um padeiro, que era também um homem abastado», continua a comissária. Os pais «proporcionaram-lhe uma educação excelente, ele frequentou a universidade de Leiden, onde estudou latim». Porém, a sua inclinação natural era para a pintura, claro, e face à falta de interesse pelas letras, foi colocado como aprendiz na oficina de Jacob Isaacsz. van Swanenburg, onde cedo deu mostras do seu talento. Segundo o seu primeiro biógrafo, passou ainda pelo ateliê do reputado Pieter Lastman, para aperfeiçoar a sua técnica. Ali ficou apenas cerca de meio ano, tendo decidido estabelecer-se por conta própria, e o sucesso que conheceu deu-lhe razão. Logo em 1628, os seus dotes atraíram a atenção do Príncipe de Orange.

Um rosto ‘feio e plebeu’

«Rembrandt pintou uma obra que achamos vastíssima, de tal maneira é importante, mas não é tão vasta assim em termos quantitativos. Durante 40 anos, a Stitching Foundation fez um estudo profundo – os falsos, os que não eram falsos, os que ‘voltaram a ser’ Rembrandts -, e sobraram 300. Rembrandt tem uma carreira de cerca de 40 anos, portanto não pintou assim tanto, fez cerca de sete pinturas por ano», nota Luísa Sampaio. Destas cerca de 300 obras, quarenta são auto-retratos. «Leva-nos a pensar que Rembrandt esteve preocupadíssimo com a sua imagem ao longo desses 40 anos». Mas não se pense que o artista os fez por vaidade.

«Rembrandt, em pessoa, era muito diferente de todos os outros homens», escreveu o biógrafo Filippo Baldinucci, em 1686. «O rosto feio e plebeu com que foi brindado era acompanhado por roupas sujas e desleixadas, uma vez que tinha o hábito, enquanto trabalhava, de limpar os pincéis a si próprio, e de fazer outras coisas de natureza semelhante».

Mas, pelo pincel de um grande artista, até um «rosto feio e plebeu» pode tornar-se algo de extraordinário. Mais concretamente, uma das maiores proezas da história da pintura. «Rembrandt conseguiu pôr mais no rosto do que qualquer outro antes ou depois dele, porque via mais», declara David Hockney, um dos maiores pintores da atualidade. «Os chineses dizem que são precisas três coisas para fazer uma pintura: a mão, o olho e o coração. Acho essa observação muito, muito boa. Duas não chegam. Um bom olho e [um bom] coração não bastam, tal como não basta uma boa mão e [um bom] olho. Isto aplica-se a cada desenho e pintura feitos por Rembrandt. A sua obra é um grande exemplo da mão, do olho – e do coração».

Quanto aos auto-retratos, não são todos iguais. «Rembrandt fez muitos auto-retratos em que está à procura não dele mesmo, mas a fazer estudos de expressão», explica Luísa Sampaio. «Fez muitos deles em gravura -, aparece espantado, com medo, zangado, alegre, um bocado palhaço, mendigo… de todas as maneiras». Um dos aspetos que a comissária desmistifica é que auto-retratos como o do Thyssen fossem meramente estudos introspetivos, de pura penetração psicológica, para fruição estrita do pintor. 

«Rembrandt é um pintor extraordinário, pinta o drama de uma maneira inigualável, mas é um homem muito pragmático, um homem a pensar no mercado o tempo todo. Ele age aliás como marchand de arte, faz uma coleção, vai um pouco à falência por causa da compra da coleção e dos seus gastos extraordinários, acaba por entrar em bancarrota, na década de 1660. Mas os seus auto-retratos são primeiro estudos de expressão, e depois vai fazer aquilo que se designa por auto-retrato à l’antique, à antiga». 

É aí que se inscreve o quadro que pode ser visto na Gulbenkian. «Este autorretrato parece-nos imediatamente uma figura do século XVII, mas não é exatamente». A chave é talvez o gibão debruado a pele, um adereço muito em voga nos séculos XV e XVI. «Há outra influência brutal na obra dele, que é fazer-se representar à maneira dos pintores renascentistas italianos que ele tanto admirou, como Ticiano ou Rafael», prossegue a responsável.

«Através dessas referências, o autor-etrato vai prestando homenagem aos grandes pintores. Mas ao mesmo tempo está a mostrar: ‘eu sou um deles, eu sou um dos grandes, eu vou ficar na história como os grandes pintores do Renascimento’».

O declínio

Rembrandt estava por esta altura – c. 1640 – no auge da sua fama. O auto-retrato com Saskia, de poucos anos antes (1636), mostra um casal jovem, alegre, a celebrar a vida. A sua obra mais célebre, A companhia do Capitão Frans Banning Cocq, mais conhecida por A Ronda da Noite, foi terminada em 1642. Mas a maré estava a mudar. Nesse mesmo ano, Rembrandt perdeu Saskia. Era o princípio do declínio – em termos sociais, bem entendido.

«Em 1656, quando tinha 50 anos, Rembrandt declarou bancarrota», registou Rudolf Wittkower. «As suas coleções, que tinham sido avaliadas em mais de 17 mil florins, tiveram de ser vendidas. Realizaram cinco mil florins. Dois anos mais tarde foi forçado a vender a sua casa palaciana com uma perda considerável e a mudar-se para um bairro pobre».

A coleção de Rembrandt dá uma ideia do seu universo – bem como do cosmopolitismo da Amsterdão da época. «Havia armas, trajes, taças e cestos do Próximo e Extremo Oriente», descreveu Seymour Slive. Havia até armaduras do Japão. «Uma secção consistia de curiosidades naturais, flora e fauna terrestre e marinha, minerais, chifres, uma pele de leão, uma ave do paraíso embalsamada […]. Não faltava escultura. Estão listados bustos de imperadores romanos, e é digno de nota que Rembrandt os tivesse arrumados por ordem cronológica».

A tudo isso Rembrandt teve de renunciar. Mas a queda social provavelmente não o preocupava muito: «Se eu quiser acalmar o meu espírito, não devo procurar honrarias mas liberdade»..

Além disso, o que ele perdia em fortuna a sua obra ganhava em profundidade. Foi no ocaso da vida que pintou, por exemplo, A Noiva Judia. Vincent van Gogh, que considerava Rembrandt «um mago», falou nestes termos sobre essa pintura: «Daria alegremente dez anos da minha vida para poder passar uma quinzena em frente a este quadro, apenas com uma côdea de pão seco para comer».

Também o comovente O Regresso do Filho Pródigo, a pintura mais famosa do Museu Hermitage, terá sido terminado no ano da sua morte, 1669. Na Gulbenkian não podemos ver essa, mas podemos ver, lado a lado com o auto-retrato do Thyssen, a Figura de Velho e a Palas Atena – ambas adquiridas pelo colecionador arménio precisamente ao museu de S. Petersburgo, em 1930.

A iniciativa obra-visitante, iniciada com este auto-retrato, vai prosseguir a um ritmo de três empréstimos por ano. A próxima obra convidada será, revelou António Filipe Pimentel, diretor do museu, um fragmento de uma tapeçaria de Giulio Romano, proveniente do museu Poldi Pezzoli, de Milão.