O septeto do tempo perdido

Marcel Proust tentou pôr todas as artes no seu romance. Mas a música ocupa um lugar de excepção no universo do escritor.

Um destes dias, abrindo ao acaso o primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, deparei-me com uma longa – talvez demasiado longa, pareceu-me – passagem sobre a sonata de Vinteuil, uma composição ficcional para piano e violino que o narrador associa à paixão de Charles Swann pela vulgar Odette. «Tinha diante de si essa coisa que já não é música pura, que é desenho, arquitectura, pensamento […]. Desta vez distinguira nitidamente uma frase que se elevava durante alguns instantes acima das ondas sonoras. Desde logo ele lhe insinuara peculiares volúpias, que nunca lhe haviam ocorrido antes de ouvi-la, que só ela lhe poderia dar a conhecer, e sentiu por aquela frase como que um amor desconhecido.»

Proust, no seu enorme romance em sete volumes, além de encenar uma espécie de ‘comédia humana’ da sociedade parisiense, procurou também pôr lá dentro todas as artes. A da escrita é personificada por Bergotte, o personagem inspirado em Anatole France, que Proust considerava uma espécie de mestre. Quanto à pintura, ‘entregou-a’ a Elstir, um quase anagrama de Whistler, famoso pintor americano que viveu em Inglaterra e França. Depois, claro, há o protagonista do primeiro volume, o rico, inteligente e elegante Charles Swann (uma fusão de dois mundanos reais, Charles Haas e Charles Ephrussi), colecionador de objetos e de mulheres, crítico de arte, autor de um estudo sobre Vermeer. E, por fim, há muitas considerações a propósito da escultura medieval, que o autor foi buscar ao clássico de Émile Mâle sobre a arte religiosa da Idade Média em França.

No sentido em que convoca todas as artes – incluindo a da construção, precisamente através da arquitetura do romance em vários volumes – Em Busca do Tempo Perdido pode ser visto, sem exagero, como uma catedral: com um esqueleto estrutural, um revestimento de pedras esculpidas, frescos pintados, vitrais e até túmulos…

Mas a música ocupa um lugar à parte no universo de Proust. Embora não tocasse qualquer instrumento, desde cedo que o escritor a apreciava e, no final da vida, chegava a despender enormes somas para contratar músicos para concertos privados, por vezes a horas pouco habituais. Quase de certeza teria em vista não apenas o prazer de convidar os amigos ou de ouvir certas peças que lhe agradavam especialmente, mas sobretudo buscava material para o seu livro.

Há, neste campo, um aspeto intrigante que tem sido assinalado pelos especialistas. O primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido fala da célebre sonata em fá maior de Vinteuil (para a qual Proust se terá inspirado na música de Saint-Saëns e César Franck). Mais adiante, já é um quarteto. Depois um quinteto. E por fim um septeto.

Qual o motivo desta evolução, para não lhe chamar incongruência?

A resposta pode estar na própria estrutura do romance. Inicialmente, Proust tencionava escrever uma obra em dois volumes, uma espécie de díptico. Mas entretanto sobreveio a Grande Guerra, que adiou a publicação, e o manuscrito continuava a crescer a olhos vistos. Às tantas já estavam previstos quatro, depois cinco volumes. A contabilidade final estabeleceu-se, como sabemos, em sete.

Talvez seja por isso que a peça de Vinteuil começa como uma sonata – dois instrumentos, dois volumes – e acaba como um septeto: sete instrumentos representando os sete volumes. Vista sob este prisma, cada referência à composição de Vinteuil, como aquela com que me deparei quando abri ao acaso o primeiro volume, ganha um novo significado. Talvez se trate de uma metáfora do próprio romance. O que explicaria por que Proust se alongou tanto num tema – a música – que teoricamente nem lhe diria tanto quanto isso.