Quando o mundo muda, nem sempre as pessoas mudam com ele

Se os anos 1920 do século XX foram loucos, os anos de ‘1990, 2000 e 2010 representaram um momento singular na história da humanidade. Milhões saíram da pobreza, outros milhões (novos) viajaram e, outros tantos milhões foram esquecidos ou engrossaram as fileiras do descontentamento (como tão bem Stiglitz descreveu).

Osistema internacional da globalização deu às atuais gerações um mundo aberto, de poucas ou nenhumas fronteiras. Associado a uma evolução tecnológica sem paralelo, foram abertas possibilidades como antes não se conheciam.

Se os anos 1920 do século XX foram loucos, os anos de ‘1990, 2000 e 2010 representaram um momento singular na história da humanidade. Milhões saíram da pobreza, outros milhões (novos) viajaram e, outros tantos milhões foram esquecidos ou engrossaram as fileiras do descontentamento (como tão bem Stiglitz descreveu).

São esses milhões que votaram pelo Brexit, elegeram Trump ou Bolsonaro e, recentemente, assustaram a Europa com a possibilidade de eleger Marine Le Pen. Estes eleitores livres escolhem entregar o seu mais importante vínculo de confiança, o voto, a quem pode pôr em causa a sua liberdade, o seu modo de vida.

Estes eleitores, como os russos que apoiam Putin, são faces de uma mesma moeda, são os descontentes com um mundo que acreditam não estar de acordo com as suas crenças e não corresponder às suas expectativas.

As expectativas das pessoas, ao contrário do que acreditávamos quando o slogan ‘é a economia, estúpido’ imperava, não estão apenas relacionadas com o bem-estar económico, mas também com uma visão do mundo que não os serve. Há, claramente, visões culturais que se confrontam, e que os políticos populistas sabem instrumentalizar.

O mundo cosmopolita e global, assente em valores comuns universais, não é o mundo no qual muitas dessas pessoas querem viver. E não é o mundo que as potencias revisionistas atuais pretendem. O padrão liberal, saído da vitória do modelo ocidental na guerra-fria, e a sua ordem internacional, é sentido como uma imposição.

Há, na interpretação da realidade, comentários que denunciam um anacronismo analítico interessante. Lula da Silva, que muitos olham como a esperança no Brasil, contra as trevas que Bolsonaro representa, diz que «bastava ter dito que a Ucrânia renunciava à OTAN para ter evitado a guerra». Como se uma nação soberana pudesse ser impedida de seguir a sua autodeterminação e como se a igualdade soberana fosse um conceito oco.

A Rússia entende ter direito a uma esfera de influência no seu estrangeiro próximo. Entende que os países da sua vizinhança são seus vassalos, e que os seus governos são meros administradores, sem direito a seguir uma via política própria.

Independentemente do resultado da guerra na Ucrânia, o sistema internacional que virá não será tão aberto como o que conhecemos nas últimas décadas. A confiança, fator essencial nas relações, perdeu-se. Demorará largos anos a ser reconquistada.

Se a confiança entre atores do sistema internacional estará em crise, também está dentro dos países, entre eleitores e eleitos. Quando os eleitores franceses votam largamente na extrema-esquerda e na extrema-direita, a culpa não é dos eleitores. A culpa é dos políticos que não os ouvem, que, como Hillary Clinton, trata as pessoas como deploráveis. 

O mundo que aí vem será certamente menos aberto e tolerante. Os conflitos culturais serão mais intensos, com os interesses de grupo (ou de tribo) a sobreporem-se ao interesse geral e, mesmo, a direitos individuais.

Vivemos em sociedades que estão, em grande medida, desnatadas, com elites distantes, sem real preocupação com o povo. O mundo muda, era bom que, com ele, as cabeças também mudassem.